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Imigrante e o Nativo |
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Um renitente mito, que vem das gerações passadas, afirma que o "imigrante" é aquele sujeito que desembarca do navio sem um tostão no bolso, trabalha como um condenado, enriquece, desforra-se dos que o menosprezavam, e morre como patriarca de uma família grande e próspera. Tão renitente é o mito que cumpre investigar até que ponto é verdadeiro. De qualquer modo o assunto nos interessa, pois imigrantes sempre haverá - as correntes migratórias são fenômeno constante em toda a história da humanidade, e embora possam trocar de direção e sentido, não há qualquer sinal de que desaparecerão um dia. O mito do imigrante construtor de fortunas é forte sobretudo nos EUA, mas aplica-se também a nós. Alguns, de fato, enriqueceram. Mas estes em geral eram daqueles que já traziam algum capital consigo (como o Matarazzo). A maioria incorporou-se ao proletariado, tornaram-se operários e camponeses. Já outros nem chegaram ao termo da viagem - morreram doentes a bordo do navio. De fato, a história toda lembra a anedota do afogado e os golfinhos. Dizem que os golfinhos, se encontram alguém se afogando, empurram-no para a praia à força de valentes cabeçadas. Mas penso que o instinto animal apenas preocupa-se em afastar o obstáculo da passagem do bando, e eles podem empurrá-lo tanto para a praia quanto para o oceano. Só que aqueles que foram empurrados para a praia safam-se e passam o resto da vida a dizer maravilhas de seus salvadores - é o caso dos imigrantes bem-sucedidos. Quanto àqueles que foram empurrados para o oceano - bem, estes morrem e ninguém jamais fica sabendo a opinião que eles tem a respeito de golfinhos. Mas mesmo assim as evidências são muitas, e todo o mundo conhece um exemplo. De um jeito ou de outro, o imigrante sempre se dá bem - é lógico que isso acontece, pois do contrário o fluxo cessaria. Todos os fluxos migratórios da história são longos e constantes, podendo aumentar ou diminuir em caso de crise no país que envia ou no país que recebe, mas eles só cessam ou se invertem após a ocorrência de mudanças econômicas estruturais ou no balanço das pressões demográficas. Se o indivíduo emigra, é porque antes alguém o precedeu e deu certo. Outro sintoma desta tendência a se dar bem é a inveja que freqüentemente lhe é dedicada pelos nativos. Um bom exemplo são as anedotas que costumamos contar sobre os portugueses, esquecidos de que, apesar de alegadamente burro e ignorante, o português entre nós quase sempre é patrão e dono de seu próprio negócio, mesmo que seja um botequim ou padaria. Avaliando com justa medida, podemos afirmar que, dentre os imigrantes que se dirigiram para cá, poucos enriqueceram. Mas poucos, também, terminaram pobres. Na verdade, observa-se uma marcada tendência de inserção, não na classe rica ou pobre, mas na classe média, camada que praticamente não existia aqui até a chegada das primeiras levas de imigrantes. O imigrante é o próprio cerne da classe média brasileira, como pode facilmente observar qualquer um que circule em um meio de classe média, e conforme eu já observei em meus estudos A Classe Média Universal e A Pirâmide e o Sanduíche. Mas por que isso acontece? Por que o imigrante, aos poucos, melhora de vida, enquanto amplos setores dos nativos permanecem na penúria geração após geração? As poucas explicações já tentadas por aqui insistem no favorecimento e no racismo das elites. Afirma-se que o imigrante prosperou porque lhe foram concedidas terras, as mesmas terras que eram negadas aos negros e caboclos, e isto aconteceu porque a elite tinha um desejo fútil de "melhorar a raça" e embranquecer a população. De acordo com esta tese, a posse de um lote de terra seria o diferencial - quem a tivesse prosperava, quem não a tivesse estaria condenado à fome e à miséria. A forma como se trabalhava teria pouca ou nenhuma importância, o trabalho agrícola é visto como coisa trivial. Esta suposição, da parte de indivíduos criados em um meio onde se praticava uma agricultura primitiva, foi mais tarde encampada por intelectuais urbanos, igualmente ignorantes do trabalho rural. Ninguém concebe que, se for entregue um punhado de minério de ferro a um operário metalúrgico, ele devolverá um carro completo, mas muitos acreditam que, se for dado um lote a um sem-terra, ele se tornará um pequeno produtor rural. É necessário uma grande dose de generosidade ingênua para acreditar que um caboclo ou quilombola, se lhe fosse dado um lote, teria a mesma produtividade de (por exemplo) um imigrante nipônico, que tinha conhecimentos ancestrais sobre como produzir árvores anãs e frutas gigantes, ou como fazer a sexagem (diferenciar macho e fêmea) apenas apalpando o frango recém-nascido. Na verdade, apenas uma fração dos imigrantes recebeu lotes do governo, os demais eram mesmo assalariados dos fazendeiros. E os lotes que recebiam eram cobertos de floresta, em locais quase inacessíveis. E depois, o importante no Brasil nunca foi ter a posse legal da terra, mas sim a capacidade de mantê-la. Multidões de assentados pela reforma agrária do governo receberam seus lotes, e no entanto foram incapazes de produzir, e diversos assentamentos transformaram-se em favelas rurais. Pode-se mesmo afirmar que o governo, hoje em dia, tem que lidar com dois problemas sociais - os Sem Terra e os Com Terra. Não foi por acaso que isso aconteceu. Os lotes se encontravam em regiões pouco valorizadas, longe das vias de escoamento e sem mercado por perto. Foi precisamente por este motivo que os latifundiários deixaram aquelas terras improdutivas, razão por quê elas foram tomadas pela reforma agrária. Já conhecíamos o latifúndio improdutivo, agora conhecemos o minifúndio improdutivo. E além disso, é notória a falta de vocação de muitos dos assentados para o trabalho agrícola. Bem diferente foi o caso dos imigrantes. Sem auxílio nenhum do governo, eles desbastaram seus lotes sem fazer queimadas, plantaram sem esgotar a terra, tornaram-na produtiva, não a abandonaram, não a venderam a latifundiários, fundaram vilas e cidades ao redor e constituíram núcleos de agronegócio que até hoje abastecem a indústria alimentícia do sul do país. Temos aí, simplesmente, uma diferença de atitude: a vocação de uns era a política, a de outros era o trabalho árduo. Não é surpreendente que tenha sido assim no Brasil, pois é assim no mundo todo. Seja leste ou oeste, sul ou norte, a história se repete: os imigrantes sempre prosperam mais do que os nativos. Temos o caso dos chineses na Tailândia, na Malásia e na Indonésia, que constituem prósperas comunidades (e na Indonésia volta e meia são massacrados por fanáticos locais). Temos o caso dos indianos que foram levados para construir ferrovias na África, e hoje são bem mais ricos que a média dos africanos (a ponto de o ditador Idi Amin Dada confiscar suas propriedades e dá-las a apaniguados, que as arruinaram). Boa parte da indústria de informática nos EUA é capitaneada por indianos. É notório que muitos destes imigrantes são originários de países pobres, onde eram incapazes de prosperar. Mas é também notório que estes imigrantes mudam sua atitude ao chegar na nova pátria - os indianos, por exemplo, abandonam o sistema de castas. Temos aí que emigrar não é um somente um meio de livrar-se de maus governos, mas também, de más idéias. Tanta coerência só pode ter uma explicação: os imigrantes, seja qual for sua origem, partilham de algo que pode ser chamado a Cultura Universal do Imigrante, onde se destaca a tenacidade, o visionarismo, a disposição ao risco, a ausência de preconceito contra o trabalho braçal, a capacidade de adaptar-se a situações adversas e o hábito de não depender de favores do governo. Isto é de todo análogo a minha definição da Cultura Universal da Classe Média, que abordei em meu artigo A Classe Média Universal. Há uma relação óbvia entre ambas, e isto se percebe facilmente no Brasil, onde os imigrantes foram os grandes formadores de nossa classe média. Na verdade, esse é o grande motor da riqueza dos países do Novo Mundo. Os EUA devem sua arrancada aos 33 milhões de imigrantes que receberam no século XIX, os quais submergiram a antiga colônia de religiosos puritanos, revitalizando e de fato reinventando a nação inteira. Os imigrantes não se adaptaram à cultura norte-americana, a cultura norte-americana é que foi feita por eles. No Brasil, os 5 ou 6 milhões de imigrantes que recebemos na mesma época não foram capazes de operar uma transformação semelhante à ocorrida nos EUA, mas deixaram sua marca. A maneira como são encarados hoje em dia, entretanto, é bastante ambígua. Seus feitos são exaltados, eles tornaram-se bons personagens de novelas, mas raramente é reconhecido seu papel na formação do caráter nacional, que continua sendo visto como derivando unicamente de Macunaíma, o anti-herói que supostamente encarna a brasilidade. Economicamente, seu papel é importante, mas políticamente, é pífio. São poucos os descendentes de imigrantes que se dedicam à política. O que é uma pena, pois quando o fazem, costumam ser bem sucedidos. Reproduzo aqui trechos do artigo As façanhas do Zé Português, de Márcio Moreira Alves, publicado em O Globo de 22/06/2003: "É o prefeito de Gouvelândia, cidadezinha do sudoeste de Goiás (...) veio na terceira classe do navio Corrientes e passou a travessia a pão e maçã. (...) vieram para Quirinópolis e, depois, compraram uma terra no então distrito de Gouvelândia (...) Criado o município, o PMDB de Íris Resende ganhou as eleições por três vezes consecutivas, até Zé Português chegar à prefeitura, em 2002. Ao chegar ao poder com Lula, o PT e seus aliados falaram da 'herança maldita' de Fernando Henrique Cardoso (...) Herança maldita quem recebeu foi o Zé Português. Assumiu a prefeitura com a folha dos servidores atrasada em seis meses, as oito linhas de telefones cortadas por falta de pagamento, bem como a energia e a água. Seus antecessores tiveram seus direitos políticos cassados por desvio de recursos públicos. Um exemplo: o ônibus de transporte escolar estava abandonado há quatro anos em Quirinópolis, o que não impedia de ser abastecido todos os dias, conforme comprovavam as notas fiscais guardadas na prefeitura... Como foi que o prefeito conseguiu em um ano colocar a folha em dia, pagar o 13o na data do aniversário dos funcionários e ainda fazer os investimentos que mudaram a cara da cidade? (...) Simples: fazendo as contas de português de armazém: anota cada real da receita (...) e vigia cada tostão do gasto. Também, é claro, não roubando e não deixando roubar. (...) Todos os serviços da prefeitura estão interligados à rede de computadores. Há controle do que entra e sai do almoxarifado geral. (...) Foram construídas 100 casas populares em substituição a casebres de madeira e lona, demolidos. Em tempos passados, o PT diria que a administração do Zé Português seria um exemplo do 'modo petista de governar'. Acontece que o Zé Português é do PFL, e fez a campanha de Ronaldo Caiado, o líder da UDR, para deputado federal." |
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