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Classe Média Universal |
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No Brasil, a expressão "Classe Média" não tem muito prestígio. Em geral denota mesmice, um indivíduo que não é nem lá nem cá, um rico que não quer admitir que é rico, ou um pobre que tem vergonha de dizer que é pobre. Nas análises sociológicas, então, mal é mencionada. Todos querem frisar que somos uma sociedade muito desigual, dividida entre ricos e pobres, entre elite e povo, e a classe média surge mais como um detalhe acidental - é claro que entre o alto e o baixo existe o médio, mas que importa? Não há papel para ela nas modelagens que fazemos de nossa sociedade. O primeiro grande clássico de nossa sociologia chamou-se Casa Grande e Senzala, e nota-se bem, não é preciso ler uma única página - basta ler o título - para perceber que a classe média, ao autor, não só não interessava o mínimo, como ele sequer reconhecia a sua existência. No entanto, eu vejo na expressão Classe Média um sentido inuzitado. Longe de designar um apanhado de indivíduos prosaicos, eu a vejo como o próprio cerne da sociedade, a expressão de uma identidade que já não é social, mas nacional. O arcabouço moral e cultural da população do país X é o arcabouço moral e cultural da classe média do país X, e não uma média entre todas as classes, como se supõe a primeira vista. E vou ainda além - afirmo que existe uma Classe Média Universal, conceitualmente definida por diversos valores e costumes compartilhados por cidadãos da classe média de todos os países, mesmo por aqueles que são radicalmente diferentes em termos culturais. Concordo que estas afirmações parecerão estapafúrdias a muitos, mas tenho argumentos para fundamenta-las. Primeiro de tudo, trata-se de recuperar o sentido original do termo Classe Média, que pertence àquela categoria de expressões que todo o mundo sabe o que é, mas ninguém sabe definir em palavras. De modo geral, afirma-se que pertencem à classe média os indivíduos ou famílias cuja renda situa-se em um patamar entre o valor X e o valor Y. Mas quem ditou estes valores X e Y? Se em um mês a renda cair um tanto abaixo de X, aquela pessoa estará automáticamente rebaixada à classe pobre, mesmo que psicológicamente ainda pertença à classe média? Se no mês seguinte a renda subir um tanto acima de Y, aquela pessoa estará mágicamente transportada à classe rica, mesmo que não saiba nada a respeito do estilo de vida desta classe? Se a comparação for feita entre países diferentes, estes parâmetros perdem de vez o pouco sentido que tem. Dependendo da cotação da moeda e do custo de vida local, um cidadão da classe média do país A pode ser classificado como pobre no país B ou como rico no país C, muito embora ele continue sendo apenas aquilo que é - um cidadão comum da classe média. A classe média só pode ser efetivamente conceituada de forma subjetiva: por definição, ela é "média", entre os extremos rico e pobre, mas que "médio" é esse? Foi por acaso que tantos indivíduos atingiram este padrão "médio"? Ou existe um atrator? A melhor explicação que encontro (na verdade, a única) consiste de definir a classe média como um estado terminal considerado "digno" de acordo com os padrões culturais da sociedade onde ela se encontra inserida: diz-se que um indivíduo atingiu a classe média a partir do instante em que ele deixa de sentir incontrolável ânsia em melhorar de vida, passa a considerar aquele patamar aceitável para si e para sua família, e planeja que seus filhos tenham aquele mesmo nível quando se tornarem adultos. Desta forma, a classe média é um estado terminal estacionário: ela tende a reproduzir-se a si própria, geração após geração, e os indivíduos que se inserem nela tendem a permanecer nela. Havendo um quadro de estabilidade econômica, a longo prazo a classe média tende a absorver mais e mais indivíduos da classe pobre (e eventualmente perder um ou outro para a classe rica) até compreender quase a totalidade da população do país. É precisamente este o quadro social nas nações consideradas de primeiro mundo, e vê-se agora o quanto é artificial arbitrar que "país de primeiro mundo" é aquele que possui renda acima de X - o primeiro mundo é, simplesmente, o conjunto de países onde quase todos os cidadãos pertencem à classe média (e não à classe rica, como seria de se imaginar para um país "rico". A classe rica existe tanto no primeiro quanto no terceiro mundo, mas tanto em um quanto em outro, compreende apenas uma minúscula percentagem da população). Neste caso, em que a classe média é numéricamente dominante, não se discute a premissa que coloquei a priori, de ser a classe média o arcabouço moral e cultural do país inteiro. Mas e quanto ao resto? Como pode a classe média representar um país onde ela só tem 5% da população? Nota-se que a definição que dei à classe média - estado terminal estacionário para onde converge toda a população - produz duas conseqüências que valem tanto para o país rico quanto para o pobre. A primeira delas é: apenas a classe média fixa os valores morais e a cultura de um povo. Pois o indivíduo que está satisfeito com o seu modo de vida, certamente deseja conservar tudo aquilo em que acredita, e que julga ser o agente causal de ele haver conseguido atingir o patamar onde se encontra. Deseja também transmitir aos filhos aquele mesmo sistema de crenças e valores, para que eles, no futuro, tenham o mesmo tipo de vida "satisfatório". Mas e as outra classes, os ricos e os pobres? Não podem ter cultura própria e valores diferentes? Certamente que podem, e de fato os tem. Mas eu descarto a ambos, baseado nas razões que explicarei. Descarto a classe rica como formadora da cultura nacional, em primeiro lugar porque ela é numéricamente pequena, e em segundo lugar (e mais importante) porque, por suas características, a classe rica tende à globalização e não à particularização. O rico tem recursos que permitem-lhe prescindir da solidariedade de vizinhos, do auxílio da comunidade onde vive e do amparo dos órgãos de assistência do governo; ele pode ir estudar no exterior e abeberar-se de numerosas fontes de cultura; via de regra fala mais de uma língua e viaja com freqüência; pode residir e sustentar-se onde desejar, pois o capital é essencialmente apátrida. Assim sendo, os ricos tendem a ser mais cidadãos do mundo do que cidadãos de seus países. Isto não é novo. No século XIX (bem antes do termo globalização entrar na moda) não havia quase diferença nenhuma entre um aristocrata brasileiro e um aristocrata francês. Ambos tinham a mesma formação, falavam a mesma língua, circulavam nos mesmos ambientes. Por conseguinte, ao se procurar um exemplar que tipifique os cidadãos de seu país, um indivíduo da classe rica necessáriamente é um exemplo mal escolhido. Descarto igualmente a classe pobre como formadora da cultura nacional, por um motivo bastante simples: a classe pobre, como parte de seu esforço para sair de sua situação de carência, está constantemente a renegar sua própria cultura. Muitos detestarão ouvir isto, mas é fato. Isto ocorre porque a cultura não é uma escolha aleatória ou mera questão de preferência, mas algo ligado indelévelmente ao modo de vida, inclusive a nível material. Concorde-se ou não, melhorar de vida significa abandonar determinados hábitos culturais e adquirir outros. A insistência em manter um modo de vida "tradicional" mesmo após enriquecer conduz a casos singulares e patológicos, como a elite árabe-saudita dos dias de hoje, que é riquíssima mas vive de acordo com costumes arcaicos que foram inclusive atenuados por outros países árabes não tão ricos. Via de regra, para um pobre melhorar de vida, ele tem que abandonar parte de sua identidade e cortar boa parte dos vínculos que o ligam a sua comunidade de origem. E a maioria faz isso, até, com prazer, pois não tem motivos para estar satisfeita com a vida que leva. Um modo de subir na vida é através do estudo. Podemos imaginar uma comunidade de pescadores no interior, onde um menino consegue completar a escola. Este menino, mesmo que ainda resida no local, certamente não terá muito diálogo com seus avós analfabetos, nem muito interesse por seu modo de vida. Outra maneira de subir é pelo deslocamento em direção a comunidades mais ricas - a migração do campo para a cidade, de uma região para outra, ou de um país para outro - mas o indivíduo que se desloca, necessáriamente abandona parte da cultura de sua comunidade de origem, e adota parte da cultura de sua nova comunidade. Em conseqüência disto tudo, a contribuição do pobre para a formação de uma identidade cultural nacional é duvidosa. É difícil, mesmo, definir o que seria a cultura da classe pobre, pois trata-se de uma cultura mutante, indistinta, mixto de costumes arcaicos e modernos. Estudar uma cultura em mutação (se não em extinção) pode ser interessante do ponto de vista da Antropologia e da História, mas é pouco prático. Seria como tirar uma foto de uma multidão onde algumas pessoas estão em rápido movimento, e outras estão paradas. Como todo fotógrafo sabe, as imagens em movimento sairão borradas, e as imagens estáticas sairão nítidas. As pessoas que estão imóveis neste hipotético retrato são a classe média do país - a única que fixa os valores e os costumes, e que paulatinamente confere feições definitivas ao país inteiro. A segunda conseqüência devida a este caráter específico da classe média a que me referi - ser um estado terminal em cuja direção converge a população inteira, adotando uma mesma bagagem de valores e costumes - é a gestação daquilo que chamarei de A Classe Média Universal, fenômeno já em andamento, e que tem em seu corolário a refutação definitiva da tese do relativismo cultural (idéia que, paradoxalmente, está muito em voga nos tempos atuais). Uma coisa que pode ser fácilmente observada - até mesmo ao se ligar a televisão e assistir a um seriado norte-americano sobre a Família X - é o notável grau de semelhança entre as classes médias de diversos países. Em termos de hábitos de consumo, é sempre a mesma coisa: a família tem uma casa, um carro, o pai tem um emprego, viajam nas férias, as crianças estão na escola, o filho tem uma guitarra ou coisa parecida, a filha tem pelo menos algumas roupas de grife, etc. etc. etc. São pessoas que não vivem do capital, e sim do trabalho, mas que possuem um conjunto de bens considerados imprescendíveis a uma vida "digna". Isto vale para a classe média dos EUA, da Índia ou do Brasil. A diferença está na qualidade intrínseca da cada um destes ítens: a marca do carro, o tamanho da casa, qual o pacote turístico nas férias, o prazo do financiamento imobiliário, a qualidade da escola, do hospital, etc. De resto, tudo é muito análogo. A Índia, país multicultural onde convivem diversas etnias, não obstante a isto tem uma classe média bastante homogênea. No Brasil, boa parte da classe média descende de imigrantes de diversas origens, o que não impede que a nossa classe média também seja bastante homogênea, como confirmará qualquer um que resida por um tempo em São Paulo. Esta similitude eu noto em minha própria experiência de viagens a países mais ricos. Via de regra tenho diálogo fácil com indivíduos da classe média local - eles tem o mesmo nível cultural que eu, estudaram as mesmas coisas, até os problemas são semelhantes - mas não tenho assunto para conversar com um operário brasileiro por mais do que uns poucos minutos. E não obstante, a diferença de rendimentos entre eu e um típico operário brasileiro, calculada em moeda, é muito inferior à diferença de rendimentos entre eu e um típico representante da classe média de um país de primeiro mundo. Mas as analogias vão além dos padrões de consumo: pode-se mesmo falar de uma cultura universal de classe média, parafraseando a cultura universal dos pobres de Oscar Lewis. Estudando as famílias pobres do México, em seu clássico "Cinco Famílias", Oscar Lewis observou a ocorrência de padrões que se repetiam, tanto em um local como em outro, tanto no passado como no presente. Chamou a isto de A Cultura dos Pobres, frisando que não se tratava de povos primitivos "que possuem uma cultura relativamente integrada, satisfatória e que se basta a si mesma" (eu diria que estes povos primitivos constituiam uma classe média segundo seus próprios padrões, posto que estavam satisfeitos com seu modo de vida). Os pontos recorrentes, assinalados por Lewis, eram "(...) a luta constante pela vida, o subemprego, o desemprego, os baixos salários, uma variedade de empregos não-especializados, o trabalho de crianças, a ausência de poupança, uma penúria crônica de liquidez monetária, ausência de reserva de alimentos na despensa, hábito de comprar pequenas quantidades de comida várias vezes ao dia, à medida das necessidades, a penhora de bens pessoais, o endividamento a agiotas". Cada um destes tópicos tem um contraponto na classe média:
Desta "cultura de classe média" emerge aos poucos a Classe Média Universal, processo que tende a acelerar-se nestes tempos de globalização. Os que se opõem à globalização, aliás, são os mesmos que consideram os ideais da classe média como mediocrizantes (haverá coisa mais aborrecida do que um pai dia e noite insistindo para que o filho estude e tenha uma boa profissão?). A adoção, da parte de comunidades de diversos países, etnias e ambientes culturais, de um mesmo conjunto de hábitos e princípios (só querem imitar o que vêem na televisão, dizem) denota que os hábitos culturais nativos não são intrinsecamente equivalentes: alguns são melhores do que os outros; uns devem ser abandonados, e outros adotados por todos. Os hábitos culturais podem favorecer ou não à formação da Classe Média Universal; em outras palavras, podem contribuir ou não para que o indivíduo atinja um nível de consumo que lhe seja satisfatório. Não é por coincidência que todo indivíduo classe média é parecido. Sem dúvida, isto irrita aos que defendem os particularismos regionais e o relativismo cultural. No Brasil, a classe média ainda é rala e desprovida de influência política (praticamente não há candidatos que se disponham a representa-la). O grande elemento formador da classe média brasileira foi o imigrante, que já trazia consigo uma cultura de classe média, a qual propugnava a melhoria de vida mediante o trabalho, o planejamento, a poupança e a aquisição de cultura (ideais que contrastavam com o patrimonialismo do país colonial). Outro elemento formador da classe média foram famílias ricas cujos filhos tradicionalmente tinham um diploma superior (mero adorno) mas que, com o tempo, foram perdendo o patrimônio, de modo que a profissão tornou-se a única fonte de renda dos descendentes. Este extrato é fácilmente reconhecido por cultivar símbolos que reportam à classe rica de onde provieram, tais como empregados domésticos e o "canudo" indispensável, sem o qual não se é "doutor". Em geral dedicam-se a profissões "tradicionais" e a empregos públicos, enquanto que o extrato derivado dos imigrantes dedica-se à iniciativa privada (por vezes enriquecendo). A transição dos pobres para a classe média tem sido muito lenta, devido às poucas oportunidades disponíveis, mas também ao pouco prestígio que a classe média brasileira desfruta (o pobre em geral sonha em ascender à classe rica, não à classe média). O traço mais flagrante desta falta de auto-estima é a insistência dos cidadãos de classe média em identificar-se com as outras classes: ou se tenta parecer um rico, imitando seu comportamento e seus hábitos de consumo, ou se solidariza com os pobres, abraçando ideais contrários ao capitalismo, à iniciativa privada e à propriedade privada - e assim ajuda a fabricar a corda que irá enforcá-lo. Não creio que a classe média brasileira florescerá enquanto seus integrantes não tiverem um mínimo de orgulho de pertencer a ela. |
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