O Sucesso das Nações
 
 

O assunto que abordei em meu artigo A Cultura e a Riqueza das Nações está longe de se esgotar. Na verdade, penso que apenas arranhei a superfície. Identificar a verdadeira causa do sucesso de uns e do fracasso de outros significa obter, ao menos, uma pista para explicar porque esta parte do mundo continua presa no marasmo e na pobreza.

Para quem conhece um pouco de História Geral, exemplo é o que não falta. Há civilizações que emergiram e submergiram, impérios que unificaram e desmembraram-se, povos de história milenar que sobreviveram a todas as intempéries, e hoje são ricos; povos de história milenar que sobreviveram a todas as intempéries, e hoje são pobres; países novos e bem sucedidos, projetos de nações fracassados que explodiram em guerra civil, dúzias de países sem passado e de futuro incerto, civilizações que estiveram no topo durante séculos, e decaíram lentamente; e civilizações que simplesmente desapareceram sem deixar rastro. Há 600 anos atrás, o mundo possuía 8 pólos de poder, ou civilizações: A Europa Cristã, o Império Otomano, o Mundo Árabe, a Índia, a China, o Japão, o Império Asteca e o Império Inca. Haveria, então, elementos que, analisados, permitiriam prever que a Europa iria preponderar sobre todos os demais? Difícil dizer. Como é difícil dizer, hoje, se o ocidente conhecerá mais um século de liderança ou se passará o bastão para os países do leste da Ásia. Pode-se tirar alguma lição, extrair alguma ordem deste caos? Há leis gerais, ou um mínimo de coerência?

Sim, com paciência e imparcialidade, pode-se tirar algumas conclusões. A quem deseja se aprofundar neste tópico, eu recomendo duas obras: Armas, Germes e Aço, de Jares Diamond; e A Riqueza e a Pobreza das Nações, de David Landes. O primeiro aborda um período de sete mil anos, e procura explicar porque certos povos ingressaram na revolução agrícola, enquanto outros permaneceram como coletores-caçadores, e porque certas nações ingressaram na revolução industrial, enquanto outras permaneceram agrícolas. O segundo aborda um período mais recente, de 500 anos, e procura explicar porque certas civilizações sobrepujaram outras e porque umas nações deram certo, e outras não. Ambos os estudos são minuciosos e apontam tanto causas gerais quanto particulares - a questão, decerto, é complexa. Quanto a mim, no pequeno espaço que a internet me concede, não tenho condições de expor um estudo completo e conclusivo, mas pretendo relatar minhas observações e dar a minha modesta contribuição ao estudo deste tema, que é importante para os países ricos, e crucial para os países que querem sair da pobreza.

Um fato é flagrante: não houve nenhum povo ou civilização que, na história, permanecesse na liderança ininterruptamente. Alguns foram destruídos, e deixaram de existir como identidade étnica ou cultural; outros foram, em menor ou maior grau, aculturados. Ou sejam, assimilaram a cultura do vencedor e eventualmente acabaram absorvidos na identidade deste mesmo vencedor. Mas o vencedor de hoje é o perdedor de amanhã...

Se é obviamente impossível permanecer initerruptamente como vencedor, penso que a melhor política é não aprisionar sua cultura no hermetismo, e manter sempre um mínimo de intercâmbio com os demais. Desta forma, caso o outro se torne o novo vencedor, pode-se, ao menos, permanecer em sua órbita como tributário, mas sempre conservando a possibilidade de, ao assimilar a cultura do vencedor (e com ela as causas que o levaram à vitória), ser novamente alçado à liderança. O que quero dizer é muito simples: a principal causa do sucesso é a capacidade de reconhecer e assimilar aquilo que foi bem-sucedido em outras civilizações. Paradoxalmente, a causa da derrocada de muitas civilizações foi o sucesso que elas tiveram no passado, que gerou orgulho e crença cega em sua superioridade, mesmo quando era notório que o "bárbaro" já fazia bem melhor. É o caso do Mundo Árabe e da China, mas não o caso do Japão. A civilização japonesa é antiqüíssima e sempre foi distinta da chinesa, mas sempre, também, foi tributária desta, a ponto de quase todos os aspectos mais sofisticados da cultura japonesa terem uma origem chinesa - a escrita, a religião budista, a arte, até os peixes ornamentais (que são conhecidos como "japoneses" por nossos aquaristas, embora sejam chineses). Talvez por este motivo, por estarem acostumados a copiar o que valia a pena ser copiado sem perder sua própria identidade cultural, os japoneses foram capazes de se tornarem tributários da cultura ocidental no século XIX, a ponto de tornarem-se o único país não-ocidental a ingressar na revolução industrial nesta época. O oposto do que ocorreu com a China, que desprezava tanto europeus quanto japoneses (a quem se referiam como "os desprezíveis anões das ilhas"), e recusou-se obstinadamente a reconhecer que tinha algo a aprender com os bárbaros. Da Europa importavam somente relógios cuco, e o primeiro navio chinês só apareceu em um porto europeu na segunda metade do século XIX. Coisa semelhante ocorreu com árabes e turcos, que foram dos primeiros a usar canhões (para derrubar as muralhas de Constantinopla) mas necessitavam de engenheiros europeus para construí-los.

O fato é que nenhuma civilização, por mais brilhantismo que ostentasse, ergueu-se sem intercâmbio e sem assimilação daquilo que pode ser chamado o Patrimônio Cultural Universal, constituído pelas invenções e pelas idéias surgidas aqui e acolá. A ausência do intercâmbio gera singularidades, como é o caso das civilizações pré-colombianas. Quando os europeus depararam-se com astecas, maias e incas, não souberam como classifica-los. Sob muitos aspectos eles estavam bem a frente dos europeus: suas cidades eram maiores, tinham rede de esgotos (que a Europa só foi conhecer no século XIX), suas estradas eram pavimentadas, eles eram notáveis astrônomos que sabiam prever eclipses com mais precisão que os europeus. Mas por outro lado, não conheciam veículos com rodas, nem a metalurgia (e de acordo com este critério, encontravam-se em um estágio anterior à Idade do Bronze), para não mencionar a pólvora, a imprensa e a bússola. Como pode ser explicada esta coexistência de avanço extremo com atraso extremo? Isso fere o senso comum. Normalmente se espera que, se uma civilização se encontra em determinado grau de desenvolvimento, ela disponha dos recursos que consideramos compatíveis com aquele grau de desenvolvimento. A explicação que encontro é o isolamento em que aqueles povos se encontravam. Não tendo possibilidade de intercâmbio com ninguém mais, sua técnica dependia exclusivamente de descobertas feitas por eles próprios - e uma descoberta só ocorre se houver uma combinação de acaso e necessidade. Eles não tinham veículos com rodas porque não tinham cavalos para puxá-los. Já os europeus encontravam-se em uma região que facilitava o intercâmbio com outras civilizações do oriente. Seus cavalos, por exemplo, vieram da Ásia.

Evidente que não basta estar em uma região onde o intercâmbio seja facilitado, é preciso também desejar este intercâmbio. Mesmo porque ele tem duas mãos: vai e vem. Um exemplo: com a decadência da Europa durante a Idade Média, boa parte da cultura greco-romana perigou ser esquecida. Os livros, armazenados de forma precária nos mosteiros, e não raro desprezados por reportarem a uma antiguidade pagã, chegavam a ser apagados e reescritos devido à escassez de pergaminho. Mas no vizinho mundo árabe, a tolerância religiosa era bem maior, e a sabedoria antiga foi muito melhor preservada, e posteriormente reintroduzida na Europa pela invasão moura - a difusão do conhecimento, da religião e da cultura se fazia, freqüentemente, pela guerra. Coisa bem diferente aconteceu com a civilização maia. Um dos grandes mistérios da arqueologia foi o das cidades maias encontradas soterradas na floresta equatorial da Guatemala. O povo que as construiu parecia ter simplesmente desaparecido no nada, posto que, na época da chegada dos europeus à região, a população local era de índios que viviam em choupanas. Mas como um povo tão civilizado pode sumir, assim, de um momento para o outro? A explicação apontada foi um período prolongado de secas ocorrido há mil anos atrás, que provocou grande mortandade. Havendo morrido a elite de artífices que sabiam como construir cidades e canais, os remanescentes simplesmente regrediram ao estado neolítico. O conhecimento morreu junto com aqueles que os detinham. Ao contrário dos europeus, eles não dispunham de vizinhos civilizados que pudessem assimilar e preservar sua cultura.

Infelizmente o tráfego no sentido inverso foi menos fácil. Árabes e chineses, então mais orgulhosos e intolerantes que os europeus, por longo tempo relutaram em admitir que deveriam aprender com a revolução científica que ocorria na Europa desde a invenção da imprensa (ironicamente uma invenção chinesa), fato que determinou o declínio destas notáveis civilizações. Não que os europeus fossem imunes ao chauvinismo. Citarei um exemplo: o cálculo diferencial foi descoberto simultaneamente por Isaac Newton na Inglaterra e por Leibniz na Suíça, causando celeuma entre os discípulos de um e de outro quanto a quem seria o verdadeiro descobridor. Newton adotou uma notação peculiar para representar este cálculo, chamada "notação de Newton", que foi de pronto adotada na Inglaterra, enquanto que a "notação de Leibniz" era adotada no continente. Só que esta segunda era mais prática, pois permitia a demonstração mais fácil de teoremas, e em conseqüência disto o estudo do cálculo floresceu na Europa continental e estagnou na Inglaterra durante 40 anos, quando enfim a notação de Leibniz foi reconhecida. Pode-se pensar: por que motivo a atitude chauvinista inglesa durou apenas 40 anos - um atraso superável - enquanto que no oriente, esta mesma atitude durou séculos, e só cessou no século XIX, quando eles já haviam perdido o trem da revolução científica?

A resposta, aparentemente, é: os cientistas britânicos podiam ser chauvinistas, mas eles viajavam e se correspondiam com os colegas. Podiam ver, com seus próprios olhos, que os outros faziam melhor. Um outro exemplo: o alquimista Paracelso, introdutor do Método Experimental e destruidor da Medicina Escolástica, teve que percorrer apenas alguns quilômetros entre a Basiléia e a Baviera para fugir de seus indignados colegas, que queriam assassiná-lo. Se vivesse na China, Paracelso teria que percorrer milhares de quilômetros para fugir dos guardas imperiais. Se vivesse no mundo árabe, poderia ter fugido para o califado vizinho - apenas para descobrir que lá as leis e os costumes eram idênticos. A Europa era um mundo menor e mais diversificado, com melhores comunicações, mais liberdade e mais gente dedicada a fazer descobertas - uns falhavam, mas outros acertavam, e o resultado de seu acerto era rapidamente disseminado entre todos. O obscurantismo e a perseguição religiosa atingiam algumas regiões, mas não o continente inteiro - sempre havia um lugar onde as mentes inquietas podiam refugiar-se.

Com tudo isso, cresceu o poderio europeu, e suas potências tornaram-se colonialistas. E isso deu origem a uma confusão entre causa e efeito que perdura até hoje: foram as potências imperialistas que sufocaram o progresso de suas colônias, ou foi o atraso inerente destas que as predispôs a se tornarem colônias? Um bom exemplo é o da Índia. Os britânicos alegam que sua administração foi benéfica e que construíram estradas de ferro, os indianos alegam que as estradas de ferro só serviam para trazer as matérias-primas de exportação aos portos e levar as tropas às regiões conflagradas. Os britânicos afirmam que as ferrovias serviram e continuam servindo, também, aos locais, e os indianos respondem que, afinal, eles pagaram impostos para que elas fossem construídas. A discussão prossegue, interminável, mas tudo isso nos afasta da questão original: se os britânicos não houvessem dominado a Índia, ela teria as ferrovias e o grau de progresso tecnológico que tem hoje em dia?

Possivelmente não. Havia na Índia ricos proprietários e comerciantes, donos de vultoso capital, mas empreendimentos como indústrias ou ferrovias não eram exatamente o que os interessava. Não que lhes faltasse técnica. Um bom exemplo é a manufatura têxtil, que na época artesanal, era incomparavelmente superior à européia. Os tecidos indianos eram apreciadíssimos na Europa, mesmo os de algodão eram muito melhores - os indianos inventaram um pano levíssimo, denominado p'jamas, que não tinha paralelo nos grossos panos de linho que os europeus usavam como roupa de baixo. E com tudo isso, a manufatora que passou ao estágio industrial foi a britânica, não a indiana. Como se sabe, os ingleses ordenaram a destruição dos teares da colônia, e obrigaram todos a comprar tecido feito nos teares mecânicos da ilha. Por que, com tanta retaguarda, a manufatura têxtil indiana não passou ao estágio industrial antes da britânica?

Simplesmente porque isso era inconcebível de acordo com o sistema social e a religião. Os indianos tinham o sistema de castas; havia a casta dos tecelões, e o destino destes e de seus descendentes estava programado por toda a vida. Trabalhar daquela maneira era, para eles, ao mesmo tempo um direito e um dever; substituir um homem por uma máquina era contrariar os deuses e a natureza, uma abominação inconcebível.

Não tem jeito. Sempre que se procura a razão profunda do avanço de um e do atraso de outras, ela se encontra nos hábitos culturais da população.

 

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