A Revolução Caiu no Buraco | ||
Soube
recentemente que uma turba de sem-terras invadiu uma fazenda, e juntamente
com o costumeiro trabalho de depredação que eles costumam
promover nestas ocasiões, fizeram algo particularmente acintoso:
o churrasco de um touro reprodutor avaliado em 2 milhões de reais.
O ocorrido não me espanta. É sabido faz tempo que o MST deixou de ser um genuíno movimento popular para se tornar uma malta desordeira e debochada, acostumada a viver de doações do governo, da Igreja e de ONG's estrangeiras. O que me espanta é que o fato não tenha sido noticiado na grande imprensa. Eu fiquei sabendo dele quase que por acaso, porque ouvi no rádio do carro enquanto dirigia. Será que as graves questões sociais não interessam mais aos jornalistas? Terão os grandes jornais feito um pacto para ignorar as estripolias do MST? Ou será que, simplesmente, o fato ocorrido não foi considerado grave o suficiente para merecer destaque? A julgar pelos tempos em que estamos vivendo, inclino-me por esta última hipótese. Tampouco saiu no jornal o tiroteio havido semana passada no morro vizinho a meu bairro, embora eu o considerasse importante segundo meus padrões. Mas tenho que convir, acontecem neste país coisas bem mais sérias que um boi que vira churrasco ou a bala que entra na portaria de meu prédio. Como sou nostálgico, tenho saudades dos tempos em que a efervescência revolucionária ocupava as primeiras páginas dos jornais, ao invés das guerras entre traficantes e das roubalheiras do governo. Parecia, ao menos, um assunto mais digno. E os militantes da época pareciam mais dignos também - tinham morte e vida severina. Eram caçados como animais, fuzilados pelas milícias armadas pelos fazendeiros, presos, espancados, ou simplesmente desapareciam. Hoje em dia podem fazer o que quiserem - só que ninguém liga. O que terá acontecido com o sonho revolucionário que embalou o nascedouro daqueles movimentos? Isto me lembra uma história em quadrinhos de Walt Disney que li tempos atrás. Tio Patinhas passava por uma crise de narcisismo e pensou em mandar fazer uma estátua sua de corpo inteiro para colocar em praça pública. Adquiriu, para este fim, um enorme bloco de mármore. Só que teve a má idéia de contratar como escultor o desastrado pato Peninha. O resultado? Uma martelada mal dada e o bloco se divide em dois. Peninha pega o pedaço maior e recomeça o trabalho. O cinzel entra de mau jeito e CRASH! Novo desastre e novo recomeço. Ao fim de muitas marteladas, Peninha entrega ao Tio Patinhas sua obra prima: um lindo peso para segurar papel... Foi mais ou menos o que aconteceu com o MST. Décadas atrás, a maior parte da população brasileira vivia no campo e os criadores das Ligas Camponesas sonhavam em transformar aquelas massas rurais em um exército revolucionário. Foram duramente reprimidos, presos, exilados, mas não desistiram, trabalharam na clandestinidade, rearticularam-se, angariaram o apoio de novos aliados, organizaram-se, politizaram-se, e terminaram por obter conquistas que os antigos militantes nem sonhavam. De fato, não só abandonaram a clandestinidade, como conquistaram amplo reconhecimento político. E mais ainda: hoje podem manter escolas para a formação de militantes, do jardim de infância à universidade. E mais ainda: essas escolas são reconhecidas pelas Secretarias de Educação de seus estados, e recebem verbas públicas, embora todo o seu corpo docente e discente seja oriundo do MST. Quem teria pensado em uma coisa dessas 30 anos atrás? Os antigos militantes, agora, não só obtém terras, como podem realizar o velho sonho de formar o "novo homem" socialista em suas escolas integradas aos acampamentos. E começa cedo, com crianças de 6, 7 anos gritando "Sem-terrinha em ação, pra fazer a revolução!" Só tem um problema. Neste meio tempo, o país conheceu um vertiginoso processo de urbanização, e a massa camponesa foi encolhendo, encolhendo, e de 50% da população em 1970, hoje não passa de 20%, e segue diminuindo. Com tão pouca gente, dá para fazer bastante desordem - e já estão fazendo - mas revolução que é bom, já era. Tomando emprestado um conceito da física, não tem mais "massa crítica". Podem marchar até Brasília para fazer um mise-en-scéne. Mas tomar o poder, tarde demais. Temos aqui uma boa oportunidade para refletir: o que deu de errado? Já observei anteriormente, em meu artigo O Enigma da Esquerda Nacional, há uma aparente contradição entre o espantoso sucesso que os adeptos tupiniquins de um regime socialista obtiveram na esfera intelectual, na mídia, nas artes, no cinema e na literatura, e seu pífio desempenho na luta armada e na efetiva ação revolucionária. Em linhas gerais, o Brasil sempre deu a impressão de ser o palco ideal para uma revolução: tem imenso território com enormes disparidades e desníveis regionais, como a ex-URSS e a China; tem latifúndios de monocultura e camponeses sem terra, como Cuba; tem miseráveis e desocupados urbanos; tem instituições políticas frágeis e uma economia travada no estágio do pré-capitalismo; e sobretudo, tem um grau de desigualdade entre ricos e pobres tão pronunciado que já foi apontado como o maior do mundo. Como se isso tudo não bastasse, ainda é multiétnico e há grande disparidade quanto à situação social de cada raça. De fato, parece a terra prometida do revolucionário. Por décadas a fio, não faltaram analistas e palpiteiros nacionais e estrangeiros a profetizar uma enorme explosão revolucionária como certa em algum ponto no futuro do país. Mas a bomba H virou traque. O que aconteceu? Como observei, em linhas gerais, o Brasil efetivamente parece estar fadado à causa revolucionária. Mas um exame mais acurado desmente esta premissa. Sobretudo neste continente, o campo, e não a cidade, tem sido o nascedouro de todos os levantes populares que foram vitoriosos e deram origem a regimes socialistas revolucionários. É verdade que o campo, no Brasil, há séculos é cenário de antagonismo, disputas pela terra, miséria e desigualdade, tal como ocorria, por exemplo, no interior da China ou em Cuba. Mas a densidade da população no campo, no Brasil, sempre foi muito pequena, bem menor do que em Cuba, e muitíssimo menor do que na China. Pequena e declinante: quando agitadores se infiltraram no campo, na década de sessenta, estava já em pleno curso um processo de migração para as cidades: simplesmente não havia mais "massa crítica" para desencadear um processo revolucionário. É emblemático o destino de um destes aventureiros, o guerrilheiro Lamarca, morto no interior da Bahia. Quando foi alcançado e fuzilado pelos soldados, o guerrilheiro, totalmente isolado e acompanhado de não mais que um punhado de seguidores, já estava quase morto - de inanição! A experiência de Che Guevara na Bolívia não foi diferente disto. Mas se os miseráveis do campo haviam se transformado em miseráveis da cidade, por que motivo os militantes não iam até as favelas levar-lhes sua mensagem revolucionária? Se não foram, sabiam muito bem o que faziam. O cenário urbano é totalmente diferente do rural. E o miserável urbano não tem nada a ver com o camponês pobre. Não é lírico, sai mal nas fotos de Sebastião Salgado. O bom selvagem não habita as favelas. A pobreza urbana é arrogante e não tem lições a receber de intelectuais revolucionários. Quando pega em armas, o faz a soldo de quadrilhas de bandidos. É verdade que ainda há um resquício da idéia de um exército revolucionário na relação mantida entre os chefes criminosos e seus asseclas; por exemplo, os jovens que recebem armas e patrulham as bocas-de-fumo são denominados os "soldados" do tráfico. Um jovem que se cria neste ambiente está sujeito a se meter em muita encrenca, tornar-se ladrão, assaltante ou traficante, mas não vai largar tudo e entrar para uma milícia revolucionária só porque alguém de uniforme aparece e lhe ordena que o faça. Apesar de todo o poder exibido pelos chefões do crime, é inconcebível imaginar a favela amanhecendo um dia repleta de cartazes convocando à "apresentação imediata" todos os jovens válidos para ingressar no exército do traficante Fulano de Tal. A polícia não ia fazer nada, mas o bando rival com certeza faria. Uma coisa assim é concebível no campo porque lá todas as pessoas, direta ou indiretamente, vivem da terra. Assim, aquele que controla o acesso à terra - seja um "coronel" latifundiário ou um "comandante" revolucionário - controla também o destino de todos os que vivem da terra, e pode, se assim o desejar, transforma-los em soldados sob o seu comando. Mas nas cidades não existe situação análoga; mesmo nas favelas há mil expedientes avulsos de subsistência, formais ou informais, lícitos ou ilícitos. Disto bem sabiam os que redigiam manuais de guerrilha na década de sessenta, tanto que recomendavam a fase de "guerrilha urbana" como breve e destinada exclusivamente ao roubo de bancos e outras ações de expropriação visando levantar fundos para a guerrilha no campo, que seria, esta sim, a verdadeira luta armada. Mas todos os garbosos projetos revolucionários foram para o saco, restando-nos os traficantes nos morros, os pistoleiros no campo e as invasões do MST. É o que se denomina um "conflito de baixa intensidade", aquele infindável clima de tensão que, tal como a panela de pressão, ferve indefinidamente sem jamais explodir. Em suma, o quadro social brasileiro cindiu-se em dois ambientes que são, a um só tempo, marcados por profunda desigualdade econômica e refratários à pregação revolucionária: o campo despovoado e as cidades superpovoadas onde a classe média conservadora convive com marginais que são mais capitalistas que o banqueiro. Para tristeza dos profetas, a revolução por aqui encontrou caminho aberto, mas acabou caindo em um buraco. Melhor dizendo, em uma armadilha demográfica. |
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