O Enigma da Esquerda Nacional

 
 

Tendo já vivido um número razoável de anos, e observado e procurado compreender o que se passava ao meu redor, há um enigma que, apesar de extraordinariamente trivial, ainda não consegui encontrar para ele resposta satisfatória: como é que a esquerda nacional, não tendo conquistado o poder, conquistou nossas mentes de maneira tão inquestionável?

O tempo passa, as crises vão e vem, os antagonismos se sucedem, sempre opondo uma "direita" e uma "esquerda" - rótulos que, no contexto brasileiro, não significam muita coisa mais do que "nós" X "eles" - os de lá se digladiam com os de cá, mas o discurso se torna invariavelmente monocórdio quanto vem à baila certos tópicos de importância fundamental - o papel do estado na economia, a crença em um estado paternal e apaziguador dos conflitos sociais, a paixão pelos monopólios estatais, o protecionismo, o nacionalismo de fancaria, a crença na causa "social" da criminalidade e de todos os conflitos, e sobretudo, a total incapacidade de compreender o que é o capitalismo, mesmo da parte daqueles que fingem defende-lo. Em suma, o ideário da esquerda é unanimidade, mesmo entre aqueles que nunca foram de esquerda. Como se explica isso?

Em primeiro lugar, é preciso chamar cada coisa pelo seu nome correto. Poucas coisas tem sido mais raras no Brasil do que pensadores e militantes de direita, e o que se chama de "direita" de ordinário são os conservadores, ou qualquer um que se opõe à esquerda. Mas a esquerda, esta sim, sempre foi organizada e militante nestas paragens. É certo que poucos, no passado, ousaram pegar em armas para defender uma revolução socialista, mas até hoje quase todos bebem com sofreguidão o discurso dos militantes, que parece não ter envelhecido nada nestes 30 anos - pelo menos no Brasil, pois no resto do mundo, como se sabe, essas idéias foram desmoralizadas e perderam o encanto, tendo sido amplamente demonstrada a sua ineficácia, para não mencionar os crimes que se cometeram em nome delas. Por que nós continuamos a cultua-las? Oxalá causas psicológicas, talvez um sentimento de culpa pela enorme miséria dos destituídos que vemos a nossa volta, ou a desilusão e a falta de auto-estima típicas de uma classe média que não é maioria no país, e que jamais esteve próxima de deter o poder para usa-lo em benefício próprio. Mas não insistirei por aí, pois o psico-social é um terreno em que eu não piso direito. Voltarei ao centro da questão: como explicar o paradoxo de um movimento tão derrotado na arena política haver sido tão vitorioso na arena intelectual?

Como já disse no início, não tenho a resposta definitiva. Mas tenho algumas pistas, bem como a certeza de que todo o paradoxo nada mais é do que o produto de uma falha de observação. Talvez não haja mesmo nenhuma relação entre domínio político e domínio da mente. Vejam o caso da Rússia, cujo povo, após 70 anos de comunismo, não deixou de amar o capitalismo, e amar até exageradamente, haja visto a desordem econômica por que passou e ainda passa este país. E notem que, ao findar-se o comunismo, da população russa apenas uma ínfima porção de indivíduos muito idosos havia conhecido o regime anterior à revolução (regime que, tal como o brasileiro, não era capitalista, mas pré-capitalista). Durante todos aqueles anos, geração após geração, o pecaminoso desejo de consumo permanecia latente no coração e na mente dos soviéticos... Conosco sucede o contrário, temos nostalgia do comunismo que nunca se implantou aqui.

E penso que a razão da persistência do apego ao ideário esquerdista seja justamente o fato de eles nunca haverem conquistado o poder. Não conquistando o poder, não puderam mostrar sua verdadeira face, e ficaram intactos em nossa imaginação. Tal como Che Guevara. De fato, certos exotismos da esquerda tupiniquim evidenciam que ela nunca passou de um estado de infantilidade ideológica; em outras palavras, era um projeto que nunca foi além da imaginação e da fantasia. Como se explica, por exemplo, que a grande maioria dos militantes de esquerda conhecidos por aqui não fossem operários, mas sim intelectuais, literatos, membros da classe média ou mesmo alta? Pois se foram essas duas categorias - intelectuais e classe média - justamente as mais perseguidas pelo comunismo de facto? Não refiro-me ao comunismo tupiniquim, mas o comunismo de Stalin, Mao e Fidel. A classe média cubana inteira mudou-se para a Florida. Os exilados do bloco soviético eram cientistas, escritores, artistas. Mao Tsé-Tung costumava repetir que a intelectualidade era a mais baixa e desprezível de todas as ocupações humanas, e comprazia-se em humilhar publicamente os intelectuais. Curiosamente ele próprio fora um professor e intelectual em sua juventude, talvez essa sua atitude fosse um recalque por haver sido um dia esnobado por seus pares.

Em toda a História, poucos exemplos se encontram de um movimento político mais patético, mais derrotado, e ao mesmo tempo tão insidioso quanto a esquerda brasileira. Não só desapontaram seus seguidores com sua fragorosa derrota na guerrilha, como ainda submeteram-nos ao vexame de ter que render graças a Deus por esta derrota ter acontecido, agora que todos sabem qual era o seu verdadeiro intento - sequer transformar-nos em uma nova Cuba, mas em uma nova Albânia, o regime comunista mais fechado e economicamente desastroso de todos. Na época achávamos que os rebeldes do Araguaia eram da linha chinesa. Pois eram da albanesa... Mas com tudo isso, as surradas idéias socialistas, varridas para o lixo em todo o mundo desenvolvido e mesmo em boa parte do mundo não-desenvolvido, continuam a ressoar entre nós plenas do frescor da juventude! Este fato não atesta mais do que nosso atraso e nossa incapacidade de compreender o que observamos. Lembro-me do comentário da septuagenária escritora Doris Lessin, que queria vir ao Brasil para conhecer os propagadores dos ideais de sua juventude ("Ouvi dizer que lá ainda existem comunistas! Acho isso um charme. Como se nada houvesse acontecido!", declarou). Havemos de nos tornar um museu ideológico, repetindo sempre os mesmos chavões, nos quais os patronos da esquerda no Velho Continente apenas fingem acreditar, e desconfio, riem-se deles às gargalhadas entre um gole e outro no vinho? Não basta termos que receber deles tecnologia ultrapassada, moldes de automóveis que já estão obsoletos, mas temos também que ficar com a carcaça das idéias que eles lançaram no passado e jogaram fora no presente?

Penosamente ridículo é o exotismo-mor de nossa esquerda intelectual: a crença de que marginais e bandidos são proto-revolucionários, indivíduos oprimidos e fundamentalmente honestos que só aderiram ao crime por revolta contra a exploração capitalista que supostamente os reduziu à miséria! Não é por acaso que os traficantes de hoje tem um linguajar impregnado de chavões revolucionários. As pessoas que acreditaram nessa sandice poderiam ter olhado em volta e constatado que jamais houve um regime comunista que fosse condescendente com marginaizinhos. Tão logo Mao tsé-Tung conquistou o poder, sua primeira providência foi mandar dizimar à bala os incontáveis bandidos que infestavam as estradas da China, e se não fizesse isso, não poderia fazer circular um único caminhão. A China até hoje é o país campeão em execuções capitais, e tem uma criminalidade baixíssima. Cuba também não hesitou em mandar ao paredón até mesmo ex-heróis da revolução que se envolveram com o tráfico de drogas. E diga-se de passagem, ao agir dessa maneira, estavam sendo de todo coerentes com o credo comunista. Pois, para uma ideologia que afirma que os indivíduos só valem por seu trabalho, e não por suas posses, a ponto de a constituição da antiga União Soviética ter um artigo que solenemente dizia, "Aquele que não trabalha não tem o direito de comer", nada é mais odioso que a figura de um bandido, um indivíduo que não trabalha e ainda se apossa do resultado do trabalho dos outros.

Que revolução socialista ainda é viável na América do Sul, neste início de século XXI? Aquela promovida pelas FARC na Colômbia, e que está em curso há 40 anos? Nenhuma revolução dura 40 anos! Define-se uma revolução como a derrubada violenta de um governo visando a sua substituição. Uma revolução, portanto, é um meio para se chegar a um fim, o qual pode ser descrito como uma nova ordem política, outro governo, outro regime. Ora, se o processo revolucionário perdura por 40 anos, sem nem haver derrubado o governo, nem implantado uma nova ordem, então não se trata mais de uma revolução. O que era um meio para se chegar a um fim tornou-se um fim em si mesmo. E qualquer pessoa minimamente bem informada e sem má fé sabe que os próceres das FARC há muito descartaram suas boas intenções (se é que algum dia as tiveram) e, sob a capa da revolução social, desejam apenas se locupletar do dinheiro do tráfico de cocaína e tiranizar a seu bel prazer as regiões que dominam. Dado que boa parte da esquerda tupiniquim recebe os representantes das FARC's com tapete vermelho, a dúvida que fica é se trata-se de pessoas ingênuas ao extremo, ao ardilosas ao extremo. Aliás, duas características bastante recorrentes em nossos militantes.

Seja lá aonde formos parar com tudo isso, fica só uma certeza: os heróis da esquerda serão sempre bem festejados. Quem não viveu a época do regime dos generais, hoje em dia tem a impressão de que foi um regime sanguinário, que perseguiu, encarcerou, torturou e fez desaparecer milhares de vítimas. Cunharam até uma expressão para este período - os anos de chumbo - emprestada do título de um filme alemão sobre a época do Baader-Meinhoff. Qualquer um que sabe fazer contas vê que o total de guerrilheiros mortos pelas forças da repressão foi menor que o número de mortos em um fim de semana movimentado na periferia de São Paulo. O número de torturados foi insignificante se comparado ao número de marginais comuns que volta e meia são torturados nas delegacias pelo país afora. Se houvesse um livro narrando, desde o princípio, todo o histórico de violências e arbitrariedades cometidos pelas forças policiais no Brasil, os casos de violência cometidos pelas forças armadas contra militantes de esquerda ocupariam, se tanto, um parágrafo. Houve uma quantidade muito grande de mortos e desaparecidos, sim, mas em nossos vizinhos Uruguai, Argentina e Chile (se formos dividir o número das vítimas da repressão pela população total destes países, a discrepância torna-se maior ainda, pois todos estes países tem população muito menor que a brasileira). Em nossos vizinhos do cone sul, o quadro é precisamente o oposto do nosso: lá o crime comum está relativamente sob controle, mas há um grande histórico de violência política. Nossos jornalistas e cineastas não acreditam. Empenhados em glamurizar as façanhas de um punhado de guerrilheiros fuleiros - seus colegas - por longo tempo ficaram soberbamente desinteressados da verdadeira guerra que ocorre diariamente nas favelas, bem debaixo de seus olhos.

 

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