O Quatrilho e Depois  
 

Tinha vontade de rever O Quatrilho. Mas nunca passa no Canal Brasil, e estou com preguiça de ir até a locadora. Lembro-me que gostei quando eu o vi no cinema, embora outros achassem-no "muito lento". Teve também, na ocasião, um significado todo especial: foi saudado como o sinal do renascimento do cinema nacional após longo período de hibernação, conseqüência da extinção da estatal promotora de produções cinematográficas, o que fez secar a torneira das verbas e provou que o nosso cinema só sobrevivia mesmo à custa do dinheiro do contribuinte.

Quisera eu que "renascimento" significasse mesmo uma nova vida... E olha que eu tive esperança. O Quatrilho não era nenhuma obra-prima, mas era indubitavelmente um bom filme. Não chegou a ganhar o esperado Oscar, mas temos o consolo de saber que foi derrotado por uma produção de primeira, o italiano A Vida É Bela. E mais importante que isso tudo: não tinha nenhum daqueles detestados clichês que infestam o cinema nacional há pelo menos 40 anos.

Entretanto, isto valeu como uma provocação para o establishment. Nossos cineastas, mal acordados do longo sono de penúria de dinheiro público, de imediato foram atingidos por um frisson de pânico: a aterrorizante possibilidade de ver ganhar o Oscar um filme brasileiro sem cangaceiro, sem favela, sem bandido-vítima, sem guerrilheiro-herói e sem mulata assanhada. A reação foi imediata e caudalosa: O Que É Isso Companheiro, Central do Brasil, Cidade de Deus e agora esse Carandiru. Todos candidatos ao Oscar. Graças a Deus nenhum levou, ou o vexame seria maior ainda. Essa é a imagem oficial do Brasil, endossada por nossos cineastas e intelectuais. Não posso ligar o Canal Brasil que dou com a cara de Fernando Gabeira de cabeça para baixo, pendurado no pau-de-arara. Nem sei quantas vezes já reprisaram O Que É Isso Companheiro. Outra vez dei com a cara toda arrebentada de um outro guerrilheiro, que mesmo assim fazia um longo discurso todo gongórico e rançoso descompondo o seu torturador. Quem escreveu esse roteiro com certeza nunca foi torturado. Que filme era esse? Não importa, é tudo a mesma coisa. Tudo herança do cinema engajado dos anos sessenta, cujos cineastas ainda estão na ativa, e com certeza achando que o próximo filme vai finalmente detonar a revolução que perseguem há mais de 40 anos.

Este fenômeno da longevidade do pensamento da esquerda revolucionária tupiniquim eu já abordei no meu artigo O Enigma da Esquerda Nacional. Por que essa obsessão doentia em só mostrar ao mundo horrendas mazelas sociais? Ora, porque é verdade, temos que denuncia-las. Então, o Brasil é como o Homem Elefante, a quem só era permitido mostrar suas deformidades. Que é verdade, muita coisa é. Mas eu questiono de que maneira a mera exibição sensacionalista desses problemas contribui para resolvê-los. Penso que a intenção dos cineastas ao mostrar miséria e violência seja a crença de que as pessoas, se bombardeadas constantemente por essas imagens cruas e chocantes, ficarão sensibilizadas e farão alguma coisa para remediar a situação dos infelizes (de preferência uma revolução). Entretanto, o efeito que alcançam, pelo menos junto ao público europeu e norte-americano, não é bem esse. O africano Albert Tevoedjre (A Pobreza - Riqueza dos Povos) sabia o que dizia quando escreveu: "É preciso afirmar que a exibição, para um público europeu (...) de mulheres dançando em uma roda, e depois (...) entrando nas tendas e cortando os clitóris das mocinhas pré-adolescentes, em nada contribui para erradicar essa prática. (...) Suscita o desprezo". Esse equívoco imenso de exibir nossas mazelas ao estrangeiro já tinha sido constatado pelo humorista Henfil, durante seu "exílio" nos EUA, ocasião em que escreveu Diário de Um Cucaracha, coleção das cartas que enviava à família e aos amigos. Era 1973 e houve o golpe no Chile, onde o irmão de Henfil, Betinho, estava exilado. Indignado com a frieza com que a imprensa americana cobria o massacre dos partidários de Allende, Henfil tenta, ingenuamente, cobrar uma posição condenatória da parte de seus amigos americanos. Até descobrir que está sendo contraproducente:

"(...) No início eu descrevia (...) a censura e outras cositas más com uma dose de orgulho. Aquele mesmo orgulho que o pessoal da Paraíba tem ao contar que a família do coronel fulano mata rindo. (...) Mas o que interessa é que eu acabei por desenvolver uma deformação que só agora noto: passei a ter orgulho das truculências, por causa dos efeitos que causavam nos ouvintes. (...) De repente noto que estou reforçando a visão racista americana: nós, os negros, somos mesmo uns animais"

Querendo denunciar as injustiças mediante a exibição de toda a sorte de imagens degradantes de nossa "realidade", os cineastas brasileiros acabaram por alimentar uma curiosidade mórbida muito corrente entre cidadãos comuns europeus e norte-americanos, a qual tem por finalidade provocar-lhes a reconfortante sensação de constatar que os "negros" continuam sendo uns animais, e que eles são os civilizados entre os selvagens. Não é de hoje que tenho observado isso. Os franceses, sobretudo, tem um antigo e vasto apetite por imagens grotescas. Lembro-me da revista Photo, que invariavelmente mostrava galerias de cenas do terceiro mundo, como uns filipinos fazendo churrasco de cães vadios, ou o menino africano com a cara enfiada no traseiro de um dromedário (pareceu-me que estava bebendo o xixi). Muito instrutivo. Nós também entramos na dança, com uma cena que correu o mundo: uns meninos em uma favela jogando pelada com uma cabeça humana decepada no lugar da bola. Tratava-se de uma fotomontagem, e dias depois eu vi publicada a foto original, mostrando os meninos chutando uma inofensiva bola de futebol. Que eu saiba, nenhuma agência internacional noticiou a fraude, e pelo mundo afora deve ter gente até hoje achando que o Ronaldinho iniciou-se no futebol chutando uma cabeça. Certos documentários franceses que vejo na TV por assinatura são um primor. Vi outro dia um sobre a guerra na Libéria (a África é seu assunto preferido). Sem se preocupar nem por um instante em analisar as causas do conflito, o cinegrafista limitava-se a percorrer as ruas e registrar tomadas "pitorescas". Em um navio encalhado no porto e semi-afundado, dois africanos sentaram-se sobre a amurada para fazer suas necessidades fisiológicas. A câmara registrou um close interminável daquelas duas bundas pretas, os ânus se abrindo e, de tanto em tanto, deixando cair no mar as fezes... Questiono se as imagens que exportamos são muito mais instrutivas do que isto.

Se por aqui, protegidos pelo "véu da ignorância", podemos até sentir uma pontinha de orgulho em saber que nossos filmes quase ganharam o Oscar, este mesmo luxo não é compartilhado pelos brasileiros que têm a má sorte de estar no exterior e vêem in loco o resultado da exibição dessas obras. Catei na net alguns comentários em um Blog:

"Lembro-me BEM que quando fomos assistir o "Cidade de Deus", conhecemos uma Belga que falava portugues, antes do filme começar - (pequeno detalhe) - e ela dizia que era louca para conhecer o nosso País etc e tal. Depois do filme a encontramos novamente e ela com aqueles olhos esbugalhados nos disse que desistiu da idéia, que nunca mais pensará em ir para o Brasil, é mole?"

"Sobre o filme. O Martin (meu namorado) adorou!! Ele é suspeito pra falar, pq adora qualquer coisa brasileira, mas disse q os cinemas da cidade dele estavam lotados de gente querendo ver o filme, porque tinha recebido uma crítica ótima, mas q no final todo mundo saia do cinema meio "horrorizado". Ah, me poupem!"

"Eu me senti do mesmo jeito que você em relação a Cidade de Deus, fiquei pensando que depois do filme é que o pessoal daqui ia achar que só tem mesmo violência no Brasil. Uma garota dinamarquesa que conheço aqui me falou que ela é louca pelo Brasil e que há alguns anos atrás queria fazer intercãmbio no Brasil, mas a mãe não deixou ela ir de jeito nenhum"

Assim foi o Cidade de Deus. E agora tem esse "Carandiru", cujo cartaz publicitário provocativamente anuncia: "Ninguém aqui é culpado. Você acredita?" Não, não acredito. Nem mesmo os críticos de cinema dos jornais estão agüentando mais. Um deles saiu-se com essa: "De novo dizem que culpada é a sociedade. Mas como se pode botar a sociedade na cadeia?" Haja.

 

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