Minha Prima Suiça | ||
Meu bisavô era suiço. Suiço-alemão, de Thun, ou Thune, como dizem os suiços-franceses. Engenheiro-mecânico, chegou ao Brasil ao final do século XIX, e casou-se com minha bisavó em 1905. Outros primos seus seguiram-lhe o exemplo, e encrustaram-se em outros ramos de minha família. Imigrante tem essa mania de tecer laços familiares complicados, como também é o caso da Lígia (ver O Racismo Cordial), que tem uma prima cuja mãe é irmã de seu pai, e cujo pai é primo de sua mãe: "ô família enrolada! Acho que quando vieram da Europa, só tinha um quarto disponível no navio e todo mundo dormia embolado lá, daí acabou todo mundo parente" - foi o que ela escreveu a sua correspondente, menina de sua idade minha conhecida. Mas passadas tantas décadas, resta-me só um elo de ligação com o ramo suiço de minha família. É minha prima Anita, que já deve andar pelos seus 70 anos, se estiver viva ainda. Viva deve estar, pois suiço não tem o hábito de morrer, a julgar pelo número de velhos que avistei por lá andando nas ruas. Houve uma vez que vi, no avião, um suiço que tinha toda pinta de ter 100 anos de idade. E estava lá, fazendo turismo. Anita chegou a ficar 20 anos sem aparecer. Mas quando apareceu, deu-nos o ar de sua graça por vários anos consecutivos. Ela era meio mala-sem-alça às vezes, aparecia meio de surpresa lá por janeiro, fevereiro, e escolhia uma "vítima" para hospeda-la. Ela assumia que a hospedagem incluía pensão completa, e não tinha o hábito de fazer compras para ajudar. Uma ocasião, por absoluta necessidade, eu a vi dirigir-se à casa de câmbio para trocar a quantia de 5 dólares. Isso mesmo, 5 dólares, não escrevi errado não. Por toda a família corria o boato de que ela teria uma criação de escorpiões na carteira, e devia ser verdade, pois ela nunca punha os dedos lá. Quanto a mim, dava o pequeno prejuízo que ela me causava como compensado pela rara oportunidade que ela me oferecia de observar uma cultura diferente. E confesso, ela me divertia às vezes. Uma coisa tenho que admitir: ela nunca me obrigava a leva-la a restaurantes caros, e preferia os baratinhos, porque julgava-os mais "típicos", conforme ela dizia em um amálgama de línguas latinas que ela usava para comunicar-se. Uma ocasião levei-a para comer ostras e gurjões de peixe em um restaurantezinho bastante em conta, lá na parte velha da Barra da Tijuca. Chegada a conta, notei que um frisson nervoso atravessava o corpo de minha prima como uma corrente elétrica. Seus olhos percorreram a mesa da direita à esquerda, com uma ânsia que beirava o pânico, até fixarem-se na bandeja das ostras. Com sofreguidão, apanhou as conchas uma a uma e sorveu qualquer reminiscência do molusco que por ventura ainda restasse. Não satisfeita, apanhou os nacos de limão que não haviam sido espremidos, e comeu-lhes o miolo. Não, nem chupou, comeu mesmo. A seguir, apanhou a colherzinha do café e pôs-se a dar colheradas no que restou do molho tártaro, até não deixar mais nada. Surpreso com a cena, perguntei-me se não seria por aquele motivo que não havia fome na Suíça. Não, com certeza foi trauma de guerra. A Suíça não foi invadida, mas ficou cercada em todas as suas fronteiras por países beligerantes, e enfrentou grave escassez de alimentos. É, não se pode comer barras de ouro. Anita era assim, não desperdiçava nada . Uma ocasião, a biscoiteira de vidro da minha irmã espatifou-se no chão, ela ia jogar tudo fora, mas Anita não deixou: cuidadosamente limpou cada biscoito da poeira e dos cacos de vidro. Nem o suco de laranja estragado ela deixou a minha irmã jogar fora. Bebeu-o inteiro, mesmo azêdo. Mas seja como for, prometi dar o troco assim que pudesse. E a oportunidade surgiu um ano depois, quando fui enviado para passar um mês na Suíça a trabalho. Fazia 20 anos que eu não dava as caras por lá, e marquei de passar um fim-de-semana em Thun, na casa dela, com a intenção de não gastar um tostão além da passagem de trem. Anita recebeu-me muito bem, na estação. Levou-me para o seu apartamento, um sala-e-quarto bem espaçoso, embora atulhado de bugigangas diversas - tive a impressão de que ela nunca jogou fora nada na vida. Mas antes do jantar, tivemos que sair para fazer compras, pois, conforme eu previa, sua despensa estava a zero. Aproveitamos para dar um bom giro pela encantadora cidadezinha. No supermercado, tínhamos que pagar 10 centavos de franco pela sacola plástica. Mas não pagamos, pois Anita sacou da bolsa uma sacola amarrotada e velhíssima que com certeza já havia usado vezes sem conta. De volta a seu apartamento, ela cozinhou para mim, e jantamos sem pressa na varanda, vendo o sol se por. Estava delicioso. Só que não sobrou nada, nós comemos exatamente aquilo que havíamos comprado no supermercado. Não sobrou nem faltou. Como não podia deixar de ser, fiquei tentando achar uma explicação para tudo aquilo que eu vira. Nós consideramos os europeus em geral e os suíços em particular como "ricos", mas minha prima mora em um modesto quarto-e-sala e economiza até os 10 centavos da sacola de compras. Mas viaja todo o ano, de modo que se conclui que deve existir alguma sabedoria nesse modo de agir. Quem mais eu conheci que viajava todo o ano ao exterior? Ah, o seu Armando. Explico: seu Armando era o porteiro português do prédio onde moravam meus avós. Lembro-me bem dele. Era porteiro e faz-tudo, prestava os mais diversos serviços a todos os moradores. Todo o ano ia visitar a família na "terrinha", e isso em uma época em que passagens de avião não eram tão baratas. O caso é que confundimos a riqueza do país com a riqueza do cidadão: o fato de a Suíça ser um país rico não implica que os suíços sejam, necessariamente, ricos. Os ricos existem, porém, tanto no primeiro como no terceiro mundo, são extremamente escassos. O que existe, de fato, na Suíça e demais países do primeiro mundo, é uma vasta classe média, na qual se inclui minha prima Anita. Essa classe média vive de maneira análoga à classe média brasileira em termos de padrões gerais de consumo - ambos tem um diploma, um emprego, uma casa ou apartamento, um carro, um aparelho de TV, etc. Mas a qualidade individual de cada um destes ítens - emprego, casa, carro - é muito superior no primeiro mundo. Foi esse o ponto aonde eu quis chegar em meu estudo A Classe Média Universal, e as "manias" de minha prima, em última análise, nada mais são do que hábitos incorporados através de gerações à classe média a qual ela pertence. Mas e aqui, por que não temos os mesmos hábitos, e ainda nos damos o luxo de rir da sovinice dos suiços? Será que em nenhum momento dedicamos o mínimo fiapo de pensamento que seja para especular se, por acaso, não haveria uma remota relação entre os hábitos de minha prima e a situação de riqueza e bem-estar social que caracteriza os suiços? Bem, são antigas questões culturais. Confundimos abastança com desperdício. As porções dos restaurantes são o exemplo mais claro disso: tudo tem que sobrar, para dar uma idéia de fartura; se a porção for a dose certa, o freguês, supõe-se, ficará ofendido. Lembro-me de minha estada em Salvador (a trabalho, como sempre). Em nossa primeira refeição, éramos quatro à mesa, e resolvemos pedir um prato e dividir. Achei que não ia dar. Deu. Uma noite de domingo eu estava sozinho e não tinha com quem dividir o jantar. Pedi uma deliciosa moqueca, que chegou fumegante no panelão de barro. Confesso que sou bom de garfo, e estava faminto após passar o dia inteiro batendo perna, mas mesmo assim não consegui dar conta de mais de metade do panelão. Disse-o ao garçon, mas ele respondeu que não podia fazer nada, pois aquela era a porção especificada pelo patrão. Nessas horas sempre me lembro de uma historinha que li não sei aonde. Na França, muito tempo atrás, havia um camponês que fazia queijos. Quanto tempo atrás? Não importa, e não sei nem dizer se foi na França mesmo. Mas o dito fazia queijos, e uma bela manhã foi abrir os potes onde o coalho fermentava, e viu que haviam passado do ponto. Todos estavam ressequidos, com forte odor e uma camada de bolor cobrindo-os. Péssimo! Mas o sujeito não tinha outra coisa para por no estômago naquele dia, e resolveu comer os queijos do jeito que estavam. Munido de coragem, tapou o nariz, mordeu o primeiro, e... surpresa! Descobriu que aquele bolor não apenas não era prejudicial à saúde, como ainda tornava o queijo muito mais saboroso. Estava descoberto o ancestral de todos os queijos franceses. Não é difícil imaginar o que aconteceria se a mesma cena se passasse em algum outro país mais "próspero", como o nosso. Aquela partida de queijos estragados teria sido posta fora sem contemplação, e ninguém hoje em dia saberia que gosto tem um camembert, nem ganharia dinheiro exportando-o. Bem, não sei por onde anda minha prima Anita, mas se ela quiser vir mais uma vez comer ostras e peixinhos fritos, que venha, e eu a receberei muito bem. A lição que ela traz vale o pequeno incômodo.
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