Darcy e o Povo Brasileiro
 
 

O livro "O Povo Brasileiro", lançado em 1995, foi anunciado como a obra-síntese do antropólogo Darcy Ribeiro, que ele levou exatos 30 anos para concluir. Veiculou-se até que Darcy estaria doente terminal em um CTI, do qual fugiu para refugiar-se em sua casa na praia de Maricá, com o firme propósito de juntar as anotações que se acumulavam ao longo de três décadas e por fim compor o livro. A vontade de terminá-lo era tanta, que acabou dando uma sobrevida ao doente de câncer Darcy.

Se, no entanto, alguém leva 30 anos para produzir um estudo em que não há, em absoluto, nenhum dado novo que ele já não houvesse citado, nenhuma conclusão nova que ele já não houvesse tirado, nem síntese alguma, isto denota de forma inequívoca que este alguém já está perdido em suas contradições - fato que Darcy obviamente não admitirá. Mas o livro é um bom resumo do amontoado de equívocos e fantasias em que caiu toda uma geração de intelectuais brasileiros (só uma?) e por este motivo merece ser analisado.

Darcy começa descrevendo a chegada do colonizador (ou invasor, como ele diz) ao Novo Mundo:

"(...) Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram (...) a selvageria e a civilização. Suas concepções, não só diferentes mas opostas, do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram cruamente. (...) Para os que chegavam, o mundo em que entravam era a arena de seus ganhos, em ouro e glórias (...) Para alcançá-las, tudo lhes era concedido (...) Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes, que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a quanta gente ali viesse ter."

Os recém-chegados (aliás, os ancestrais de Darcy Ribeiro) são descritos com uma má-vontade evidente, mas vá lá que é verdade que as concepções filosóficas de portugueses e índios fossem de fato bastante diferentes, bem como que a intenção dos europeus fosse mesmo fazer do Novo Mundo a arena de seus ganhos. Mas Darcy mergulha acintosamente no mundo da fantasia ao descrever como viviam os índios, que parecem saídos de um Jardim do Éden (idéia ingênua que deles faziam os viajantes europeus do século XVI, sobretudo aqueles que nunca haviam viajado para o Novo Mundo). Uma vida idílica de prazeres em meio à abundância, onde até os esforços necessários à sobrevivência (caçar, pescar, colher) seriam agradáveis. Mas isto contradiz frontalmente o que o próprio Darcy afirma no capítulo inicial de seu livro, quando mostra que os tupis estavam no estágio inicial da revolução agrícola, sujeitos às sazonalidades do clima tropical, que alternava estações de abundância com escassez. Caçar e plantar não eram, presumivelmente, tarefas tão fáceis e prazerosas. Darcy refere-se também à mítica Terra Sem Males, que os índios acreditavam existir além do oceano. Ora, se eles tinham necessidade de inventar mitos a respeito de uma suposta terra sem males, certamente que a terra onde habitavam tinha males, e muitos. Por isso mesmo eles estavam sempre se deslocando e guerreando, em busca de, se não da Terra Sem Males que não existia, ao menos dos sítios de maior abundância (sobretudo no litoral). Certamente que a costa brasileira não era um lugar que "podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a tanta gente viesse ali ter". Uns teriam que ir embora para que os outros tivessem alimento. Em outro trecho, Darcy afirma que "a indiada não conhecia doenças, além de coceiras e desvanecimento por perda momentânea da alma". Mas se não tinham doenças, por que sua expectativa de vida era tão baixa? A expectativa de vida de tribos isoladas que vivem no estágio neolítico é entre 20 e 30 anos, no mundo inteiro. Sem dúvida que não tinham as mesmas doenças dos europeus, mas aparentemente a vida na selva possui suas causa-mortis peculiares.

"Para os índios, a vida era uma tranqüila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária. Claro que tinham suas lutas, suas guerras. Mas todas concatenadas, como prélios, em que se exerciam, valentes. (...) Para os recém-chegados, muito ao contrário, a vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que a todos condenava ao trabalho e tudo subordinava ao lucro"

Chega a ser hilária a concepção do modo de vida dos índios (bons e solidários), que parecem ser hóspedes eternos de uma colônia de férias, enquanto os europeus (maus e gananciosos) eram condenados a trabalhar para viver. Até as guerras dos índios são apresentadas como um saudável esporte. Fantasia óbvia reportando ao mito do Paraíso e do Pecado Original.

Em determinado trecho, Darcy faz uma curiosa observação acerca da economia monocultora de exportação e a formação do quadro social brasileiro:

"O ano de 1800 representou uma virada na história brasileira. A economia exportadora atravessava um período de declínio, o que constituía, certamente, um desafogo para a população. (...) Os revezes (...) e a conseqüente queda do poderio do empresariado latifundiário e monocultor pareceram abrir aos brasileiros, naquele momento, a oportunidade de se estruturarem como um povo que existisse para si mesmo. Isso talvez tivesse ocorrido se não surgisse um novo produto de exportação - o café -, que viria rearticular toda a força de trabalho para um novo modo de integração no mercado mundial e de reincorporação dos brasileiros na condição de proletariado externo"

Que a monocultura de exportação é um modelo econômico obsoleto, mercantilista e anterior ao capitalismo, disso ninguém duvida. Mas para Darcy, a solução não é passar para o estágio seguinte (o capitalismo industrial), e sim voltar ao estágio anterior pré-mercantilista, com o desligamento da economia brasileira do mercado global, de modo que o povo pudesse ter um desafogo e a oportunidade de se "estruturar para si mesmo" - presumo que isto signifique viver em uma casinha de sapê, plantando e pescando para comer. O surgimento do café, que seria o grande motor da economia brasileira por mais de cem anos, é por ele considerado um acontecimento infausto. Acredito que essa propensão em mover tudo para trás tem causas psicológicas, uma crença irracional de que no primitivo se encontraria a pureza e a felicidade perdidas. Para Darcy, primeiro os colonos deveriam se transformar em caiçaras, viver da agricultura e da pesca de subsistência por um tempo indefinido, para depois, quem sabe - sonho supremo! - converter-se de volta em índios a correr nus pela floresta. Esta idéia fixa de Darcy se revelou também em seu esdrúxulo projeto de criar aldeias-modelo para caboclos na amazônia, onde eles mantivessem contato com sua cultura original e não a perdessem (Darcy parece esquecer-se de que os caboclos da amazônia são descendentes de migrantes nordestinos, e por conseguinte seus ancestrais não são índios amazônicos, mas sim tribos do litoral do nordeste, de cuja cultura perderam o contato há mais de três séculos).

Mas infelizmente para Darcy, o café apareceu e estragou tudo. Entretanto, existe um exemplo localizado onde as coisas se passaram como Darcy queria. Refiro-me à região de Parati, no estado do Rio de Janeiro, que três séculos atrás foi um porto importantíssimo para o escoamento do ouro de Minas, mas que perdeu toda a importância quando as rotas se mudaram. A região estagnou e os latifundiários abandonaram suas propriedades, deixando atrás ruínas de porteiras e casas-grandes até hoje avistadas pelos excursionistas. O povo, então, "teve um desafogo" e "a oportunidade de se estruturar para si mesmo". E o fizeram, na medida do possível. Tornaram-se caiçaras e foram viver da pesca artesanal e de roçados de subsistência que plantaram nas terras abandonadas. Passaram-se três séculos. No início dos anos 60, a região de Parati era a região mais pobre do estado do Rio de Janeiro, a única ainda não servida por luz elétrica, com grande parte da população analfabeta. Por esta época construiu-se a estrada, e teve início o turismo, que proporcionaria um renascimento à região. De fato, Parati tornou-se um lugar da moda, e até nome de automóvel e do barco de Amyr Klink. Alguns dos descendentes dos antigos proprietários vieram reclamar suas terras, alguns posseiros foram expulsos e foram parar em favelas - mas de modo geral, o padrão de vida da população é agora muito superior ao que era antes. Não há mesmo outra possibilidade senão atribuir tamanho rousseaunismo a causas psicológicas complexas encerradas na mente do falecido Darcy Ribeiro...

Ao referir-se ao domínio do crime organizado nas favelas, Darcy aponta um culpado:

"Outra expressão da criatividade dos favelados é aproveitar a crise das drogas como fonte local de emprego. Esta 'solução' (...) reflete a crise da sociedade norte-americana que com seus milhões de drogados produz bilhões de dólares de drogas, cujo excesso derrama aqui"

Faz sentido. Realmente a culpa da tragédia das drogas é tanto do produtor quanto do consumidor. Mas quem disse que nós produzimos e exportamos drogas? Em seu cacoete de sempre culpar os EUA por todo o mal do mundo, Darcy esqueceu-se de que nós não somos produtores, e sim consumidores de drogas. Aplicando a sua lógica, deveríamos é sair da classe das vítimas - a Colômbia, a Bolívia - para ingressar na classe dos culpados, junto com os EUA... O excesso desse bilhão não é derramado aqui pelos EUA, nós é que fomos buscá-lo no mercado.

É bastante interessante o modelo que Darcy traça da pirâmide social brasileira:

Nome da Classe Integrantes
Classes dominantes

Patronato (senhorial parasitário, empresarial contratista);

Patriciado (estatal, civil);

Estamente Gerencial Estrangeiro

Setores intermediários

Autônomos (profissionais liberais, pequenos empresários);

Dependentes (funcionários, empregados)

Classes subalternas

Campesinato;

Operariado

Classes oprimidas Marginais (trabalhadores estacionais, recoletadores, volantes, empregados domésticos, biscateiros, delinqüentes, prostitutas, mendigos)

No topo se encontram o patronato (eventualmente parasitário), aqueles que detêm o capital, e o patriciado, aqueles que detêm o poder. Ninguém duvida de que poder e capital andam juntos, mas é curiosa a inclusão aqui do estamento gerencial estrangeiro. Esta minúscula quantidade de executivos assalariados que para cá são mandados, no mais das vezes por curto período e sem visto permanente, não pode sequer ser considerada parte da sociedade brasileira, mas Darcy não apenas a inclui como lhe credita um poder exorbitante: "Ele emprega os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada vez mais desabrida".

A classe média é citada meio de passagem, e apresentada mais como aliada servil das classes altas: "Todos propensos a prestar homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso alguma vantagem". As classes subalternas também são coadjuvantes: "Seu pendor é mais para defender o que já tem e obter mais, do que para transformar a sociedade".

Mas a conceituação que ele dá para a classe pobre é deveras curiosa. Pelo nome (oprimida) e pela estranha coleção de categorias que a compõe. Comecemos por esta última. Não me parece que uma empregada doméstica ficaria satisfeita ao saber que Darcy classificou-a junto com delinqüentes e prostitutas. Aliás, Darcy parece ignorar que as prostitutas vêm de todas as camadas sociais, e não só dos pobres. De modo geral, Darcy acredita que a pobreza remove a dignidade dos indivíduos: um trabalhador estacional, um biscateiro, mesmo honesto, é essencialmente equivalente a um delinqüente, posto que ambos tem baixa renda. Porém, ainda mais significativo é o nome que ele dá a este extrato: classes oprimidas. Não é a mesma coisa que batizar a classe alta de "dominante" e a classe baixa de "subalterna", pois estes termos fazem sentido ao expressar uma posição relativa dentro de um eixo de renda. Mas "oprimida" é um adjetivo que designa uma situação ocasional de opressão, que a princípio pode acometer a indivíduos de qualquer classe social. Ao tornar um adjetivo sinônimo de um substantivo, Darcy está dizendo que existe uma relação biunívoca entre ambos: é a opressão que causaria a pobreza; não houvesse opressão, não haveria pobreza. A situação natural das sociedades supostamente seria a vida digna em termos materiais, é a opressão que cria a situação artificial de pobreza. Assim, um delinqüente e uma prostituta são marginais porque a opressão deliberadamente infligida sobre eles pelas classes altas obrigou-os a agir desta maneira, e por conseguinte, são inocentes e podem ser classificados junto com os trabalhadores pobres porém honestos (será que os policiais corruptos também se incluiriam nessa categoria?) Para resolver este estado de coisas, Darcy propõe uma ação que destrua o poder do opressor - a revolução. "Desfazer a sociedade para refazê-la. (...) Isso porque só tem perspectivas de integrar a vida social rompendo toda estrutura de classes".

Isto tudo endossa aquilo que eu apontei no artigo A Produção e a Distribuição de Riqueza: a riqueza é algo material, palpável, mensurável, que não pode ser criada, e tampouco pode ser destruída; só pode ser transferida, acumulada ou distribuída. O corolário deste raciocínio é que aquilo que falta ao pobre é o mesmo que o rico tem excesso (como se a culpa da fome de um fosse o outro comer demais), e por conseguinte, o rico - não importa como conseguiu sua riqueza - é intrinsecamente culpado pela miséria do pobre. As causas deste estado de coisas não seriam macro-econômicas, estruturais ou de insuficiência da produção, mas puramente políticas: os ricos (opressores) deliberadamente impõem a miséria aos pobres (oprimidos), e só a revolução pode dissuadi-los desta malvadeza. Assim é a crença de Darcy, e de boa parte de nossa intelectualidade.

Darcy se enlanguece ao dissertar sobre as matrizes raciais do povo brasileiro, e mergulha de vez no mundo da fantasia. É digno de nota o seu comentário sobre as manifestações da cultura popular:

"O fundamental, porém, é que milagrosamente o povo, sobretudo o negro-massa, continua tendo erupções de criatividade. Esse é o caso do culto a Iemanjá, que em poucos anos transformou-se completamente. Essa entidade negra (...) foi arrastada pelos negros do Rio de Janeiro para 31 de dezembro. Com isso aposentamos o velho e ridículo Papai Noel, barbado, comendo frutas européias secas, arrastado num carro puxado por veados. Em seu lugar, surge, depois da Grécia, a primeira santa que fode. A Iemanjá não se vai pedir a cura do câncer ou da AIDS, pede-se um amante carinhoso e que o marido não bata tanto".

Não entendo por que motivo é meritório que Iemanjá seja "uma santa que fode", e depreciativo que o carro de Papai Noel seja puxado por veados. Alguma coisa contra os gays? Não sei dizer que linguagem é essa que Darcy emprega, mas seguramente não é antropologia.

"Isso significa que, apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova Roma, uma matriz ativa de civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e sangue índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz".

Que somos parte do mundo ocidental (até geograficamente) não há dúvida. Mas o resto da frase é um amontoado de argumentos emocionais, racistas e desprovidos de qualquer significado científico. Estaremos destinados a ser a sede de um império, a Nova Roma? As raças negra e índia são intrinsecamente melhores, ou pelo menos, mais alegres?

O resto do livro não vale a pena ser lido, muito menos comentado.

 

 

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