Palavras e Imagens | ||
No
natal falei de uma daquelas potocas que por anos
a fio passam por pura verdade, como esta história de que no Brasil
a fome atinge milhões de indivíduos, recentemente desmentida
de forma cabal pelo IBGE. Mas não posso deixar de pensar: de onde
vem tantos mitos? Por que são duradouros? Acaso é porque
correspondem àquilo que as pessoas desejam acreditar? Ou tratam-se
de hábil manipulação de imagens e textos?
Uma palavra vale mais do que mil imagens, diz o ditado. Ou é uma imagem que vale mais do que mil palavras? Nunca soube qual é a versão correta. Mas houve época em que, ingenuamente, supunha que para desmascarar uma farsa descrita em palavras, bastaria expor as imagens que desmentissem o que está escrito. Como eu era ingênuo! Não havia atinado que as pessoas não enxergam com os olhos, mas com o cérebro. Isto fica claro em dois episódios lembrados por Janer Cristaldo, o mesmo que citei na crônica passada. Em um deles, Janer refere-se a um mito até hoje inquestionado, sobre a monumental obra de Pablo Picasso, intitulada Guernica, que mostra a cena dramática do bombardeio da cidadezinha basca pela Luftwaffe em 1937, uma das grandes tragédias da guerra civil espanhola. Ora, ao que eu me lembre, o quadro mostra um homem caído no chão empunhando uma espada quebrada, como se houvesse perdido uma luta; sobre ele, um touro vitorioso; mais atrás, um cavalo assustado, e vultos de pessoas que chegam, alarmadas, para acudir. Bombas, destroços, chamas? A cidade foi atacada quando estava sendo montada uma feira agro-pecuária, explicam alguns. Mas a história real foi bem diferente. Conta Janer: "Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi. Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, até hoje multidões hipnotizadas pela propaganda vêem em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. Esta lenda até hoje é repetida, tanto por focas novatos numa redação, como por escritores de renome nacional. De um só golpe de pincel, o pintor malaguenho traiu a memória do amigo e mentiu para a História" De outra feita, Janer contou de uma francesinha ativista política que estava em Cuba, e ao divisar escrita em um muro a frase PAREDÓN PARA LOS TERRORISTAS, saiu-se com esta: "Pardon pour les terroristes? Ils sont gentils, ces Cubains". Sejam palavras, sejam imagens, as pessoas interpretam-nas segundo suas convicções. Ou porque as pessoas têm necessidade psicológica de ver o que querem ver, ou porque nossa mídia é mesmo tendenciosa, o fato é que o Brasil é pródigo em materializar imagens de coisas que não existem, mas que ainda assim todo o mundo as vê. Ninguém duvida, por exemplo, que em 1993 um grupo de meninos de rua que dormia sob a marquise de um prédio ao lado da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, foi trucidados por policiais armados, membros de um esquadrão da morte especializado em limpar a cidade de meninos de rua. O escândalo correu o mundo, e todos se horrorizaram com a inaudita malignidade da classe média brasileira matadora de crianças. Um singelo monumento foi colocado em frente à referida igreja, lembrando a tragédia. E no entanto, eu já pesquisei o caso, li e reli tudo o que saiu sobre o julgamento dos matadores, e por mais que eu tente não consigo acreditar que a causa do múltiplo assassinato foi simplesmente o vidro de uma viatura quebrado a pedradas pelos moleques no dia anterior. Foi o que confessou o único condenado até agora, e o júri aceitou. Mas parece-me óbvio que houve coisa muito mais séria. O que realmente aconteceu, não saberemos, pois a história das investigações policiais mostra que a verdade permanece oculta quando revelá-la não interessa a nenhum dos lados. Mas não é difícil de imaginar. Provavelmente os policiais e alguns dos pivetes estavam envolvidos com alguma quadrilha de traficantes, um dos garoto fez uma desfeita qualquer, o policial veio para acertar as contas, mas como havia testemunhas, atirou nos outros garotos também. Coisa não muito diferente do que sucedeu na chacina de Vigário Geral, e outras chacinas da periferia. É fácil chegar a esta conclusão. Muito mais difícil é explicar por que motivo um reles ajuste de contas entre bandidos tornou-se opróbrio para um país inteiro. A potoca foi tão longe que um dos "di menor", agora adulto, ameaçado de morte por quadrilhas rivais, ganhou asilo na Suíça sob a proteção da ONU, como se fosse vítima de perseguição política. E lá está até hoje, expondo aos europeus seu testemunho do quão virulenta é a luta de classes no Brasil... 14 anos passados, encontrei até grupos de discussão na Inglaterra questionando se o Brasil tem autoridade moral para reclamar da morte de Jean Charles pela Scotland Yard, já que se trata de país onde a polícia extermina crianças de rua. Como se a polícia brasileira fosse responsável pelo que seus membros fazem sem uniforme fora do horário de serviço, e como se não existissem abundantes exemplos de policiais brasileiros, estes sim uniformizados e a serviço, que atiraram antes de perguntar. Outro exemplo de mentira promovida a verdade inquestionável me é trazido por esta época de carnaval. O ministério da saúde, como fez nos anos passados, já está providenciando para que não falte camisinhas aos foliões. Pois foi decretado que o carnaval é uma orgia onde o país inteiro desata a fazer sexo incontrolavelmente, e só pára na quarta-feira de cinzas. É proibido duvidar disto. Quanto a mim, não gosto de carnaval, nem nunca gostei, mas tenho memória. Entendo que a liberação dos instintos é inerente à esta festa que tem origem em antigos festejos pagãos que exaltavam a fertilidade, e por isto mesmo a sensualidade está no ar, sendo que nos bailes quase se chega às vias de fato. Mas sexo mesmo, aqui entendido como relações sexuais completas... francamente, nunca vi, nem consigo imaginar um casal de foliões, exaustos, suados e bebidos, no fim da noite a percorrer ruas lotadas à cata de um motel para dar uma transadinha, tendo todo o resto do ano para fazer isto com mais calma. Talvez o carnaval seja até a época do ano em que o brasileiro menos faz sexo. Quanto às camisinhas, penso que um bom uso para elas seria enchê-las como balões e pendurá-las para decorar os bailes. Ah, sim, isto deve fazer parte da campanha contra a prostituição infantil, pois outra verdade inquestionável é que os brasileiros são praticantes contumazes da pedofilia. Para que sejamos dissuadidos de tão feio hábito, tenho visto pela cidade cartazes alertando que tal prática é rigorosamente proibida, devidamente afixados em locais onde a prostituição infantil é presumivelmente praticada, como padarias, lanchonetes, sorveterias e postos de gasolina. E falando de carnaval, outra verdade inquestionável é que esta festa constitui o que há de mais genuíno na cultura popular brasileira, ligada de forma indelével aos negros e às favelas. Mas desde quando o carnaval é uma festa de origem africana? Sua origem é européia, e remontava a antigos ritos pagãos antes de ser cristianizada. Africano, de fato, é o samba, mas a conexão entre samba e carnaval foi uma obra do acaso. Como ritmo e dança, o samba teria existido mesmo se o carnaval não existisse. E quanto à cultura popular brasileira, ela está muito mais ligada ao interior do país do que às favelas urbanas. Toda esta mistificação remonta aos anos do Estado Novo, que como todo regime proto-fascista, fomentava o nacionalismo, o nativismo e a busca de uma identidade genuinamente brasileira que excluísse o colonizador estrangeiro; buscava, enfim, "coisas nossas". Até pouco antes, carnaval e samba não tinham importância nenhuma, além de serem muito mal vistos pela sociedade em geral. Um prospecto turístico da cidade do Rio de Janeiro datado de 1936, recentemente exibido pela revista Nossa História, não contém uma única referência ao carnaval da primeira à última página. Mas veio a febre de "buscas de raízes", em 1942 chega Orson Welles ao Brasil e "descobre" o carnaval carioca para o mundo, bingo! Está encontrado: de agora em diante, carnaval e samba serão o símbolo da brasilidade. E lá se vão 50 anos e ainda temos que mostrar ao mundo que o Brasil é o país do carnaval. Bom, pelo menos camisinha é o que não deve faltar. Na crônica passada, declarei que o ano, para mim, só efetivamente começa após o carnaval. Tenho motivos para alegrar-me: daqui a duas semanas o ano finalmente começará. O problema é que todas estas verdades inquestionáveis continuarão a nos perseguir pelo ano adentro, e ano após ano. Assim o é, se lhe parece... |
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