Nossa Imagem Culpada  
 

Como eu já me referi antes, nós brasileiros sofremos de um duplo complexo de superioridade e inferioridade: de superioridade, por conta de nosso gigantismo territorial e enormidade de recursos, que temos como garantia de um destino manifesto de potência mundial; e de inferioridade, quando vemos que nossa importância no mundo é pífia, a despeito de sermos o quinto maior país em território e a décima economia do planeta. Na verdade, a grande maioria das pessoas mal ouve falar do Brasil, ou pior ainda, tem sobre nós toda sorte de concepções fantasiosas. Desde muito já percebi que há algo de errado em nossa imagem no estrangeiro. E nesses tempos de internet, isso é fácil verificar.

Uma coisa é regra: ao pensar o Brasil, o estrangeiro prefere sempre a fantasia à realidade. O que muda é o teor da fantasia: ora o país é retratado como um inverossímil paraíso tropical, onde a vida é permanente celebração, ou então é visto como um horrendo inferno de miséria, muito pior que a realidade, que já é feia o bastante. É nesse Brasil fantasioso que, lá fora, efetivamente acreditam o cidadão comum, os intelectuais, os escritores, os roteiristas de filmes e os empresários do entretenimento. O outro país, o "Brasil real", é um assunto prosaico que só interessa a professores universitários e aos articulistas do The Economist. Há nisso tudo uma mistura de fantasia do estrangeiro, que ele introjeta sobre nós, e uma dose de fantasia nossa mesmo, que nos esforçamos para incutir no estrangeiro. Por que fazemos isso, é uma idiossincrasia nossa que só pode ser explicado pela psicologia das massas. As pessoas, em geral, acreditam naquilo que é gostoso de acreditar. Quantas vezes já não afirmamos que o brasileiro das favelas é pobre, porém feliz, já que tem uma paisagem magnífica na janela, sol, cerveja e samba? E quantas vezes o estrangeiro já não acreditou piamente nessa baboseira, porque lhe é agradável imaginar o habitante das regiões tropicais como sendo um ente próximo ao estado da natureza, que não tem necessidade de bens materiais ou civilização, mas apenas de sol, bebida e sexo?

Lembro-me perfeitamente de uma conversa que tomei conhecimento na época da Copa do Mundo da França, e que ficou gravada em minha memória. Um locutor e um comentarista, ambos estrangeiros, conversavam sobre qual seria a origem da ginga do jogador brasileiro.

- Ora - afirma um deles - é preciso lembrar que aos quatro anos de idade eles já estão sambando nas favelas. Assim adquirem molejo e jogo de cintura.

- Eles começam sambando nas favelas, aprimoram-se nas praias, param de passar fome quando vão para um grande clube e compram uma casa para a mãe quando vêm para a Europa - completa o segundo.

Achei graciosa essa troca de idéias. Mas só por um instante. O problema é que eu tenho uma "mente inquieta", como já me definiram, e por puro espírito de porco, resolvi fazer um inventário mental das afirmações que ouvira e verificar seu fundamento. Eis o resultado: primeiro, as favelas há muito já deixaram de ser a Terra do Samba, e agora são terreno de abominações piores no campo da música. Segundo, ao contrário da crença generalizada, a maioria de nossos jogadores de futebol não são originários de favelas, mas sim de subúrbios ou de cidades do interior - isto é, de lugares onde há terrenos baldios para se jogar pelada. Nas favelas urbanas de hoje em dia não há espaço algum, e o "esporte" é bem outro. Terceiro, não há nenhum fundamento científico na crença de que sambar favorece a prática do futebol. Quarto, raros jogadores famosos passaram pelo futebol de praia. A técnica do futebol na areia é muito diferente, e inclusive é sabido que muitos treinadores de juvenis, se sabem que o garoto veio do futebol de praia, os mandam direto para casa. Quinto, quem passa fome não se torna atleta. Sexto, os salários pagos por nossos clubes a um jogador famoso são suficientes para comprar casa para a mãe e para a família inteira. Item a item, nada bate. Mas aquele dialogozinho ficou gravado em minha cabeça como um exemplo perfeito de como as concepções que os estrangeiros têm sobre nós podem ser 100% falsas, e ainda assim perfeitamente verossímeis e até bonitinhas.

Mas nem sempre a ingenuidade é tão benevolente. Lembro-me da entrevista de um estrangeiro famoso, dono de agência de modelos. Como de costume, ele estava elogiando a beleza da mulher brasileira. Instigado a explicar por que há tantas brasileiras top model, ele arriscou uma opinião sociológica:

- Há muitas modelos brasileiras, primeiro, porque elas são naturalmente bonitas, e segundo, porque elas sentem fome...

Todos continuaram a sorrir, e nem o entrevistador, nem ninguém fez qualquer comentário. Mas minha "mente inquieta" detectou algo errado no ar. Pois aquele sujeito, sob a aparência de dizer amenidades, havia lançado um formidável insulto à mulher brasileira. Textualmente, o que ela afirmou foi que, no Brasil, as mulheres só sobrevivem vendendo o corpo. Ele verbalizou uma fantasia masculina muito disseminada no exterior, segundo a qual o Brasil é uma terra de mulheres belíssimas e prontas para se entregar pelo preço de um prato de comida. O que há de verdade sociológica nessa grosseria? Como de costume, nada. Não conheço nenhum caso de top model brasileira que tenha sido favelada ou retirante do nordeste. É necessário ter uma imaginação de Júlio Verne para supor que Gisele Bündchen, Adriana Lima, Luize Altenhofen ou Luana Piovani passaram fome na infância. A candidata a modelo, no mais das vezes, vem da pequena classe média, mas muitas vieram da classe rica, como Daniela Cicarelli, Ellen Rocche ou Daniela Sarahyba. A razão disto é simples: ser modelo custa caro. A menina tem que fazer cursos, pagar ensaios fotográficos, produzir-se. Sem contar que uma boa nutrição durante a infância é requisito óbvio para a menina que deseja ter a mínima pretensão de ser bonita na idade adulta. No Brasil, há top models e há pessoas famintas, mas não há nenhuma relação entre uma coisa e a outra.

É como Diogo Mainardi afirmou certa vez, queixando-se da imagem ruim que o Brasil tem na Europa:

"(...) Mas que fazer? Não há uma característica nossa que não esteja associada a um aspecto degradante. As florestas estão associadas ao desmatamento e à matança de índios. A música está associado à favela. As praias estão associadas ao turismo sexual. Até os jogadores de futebol que vem para a Europa, não há um que não seja apresentado como ex-criança de rua"

E tampouco eu posso apontar um jogador de futebol conhecido que tenha sido ex-menino de rua. Provavelmente porque meninos de passam fome não se tornam atletas, assim como meninas que passam fome não se tornam modelos...

Percebe-se um óbvio sintoma depressivo nessa atitude, muito nossa, de associar aspectos repugnantes a tudo aquilo que temos de bom, ou de meramente notável. Não temos, é certo, muitos motivos de orgulho, mas isso não é tudo: também estamos proibidos de sentir orgulho. Até de coisinhas banais, que não são exatamente um mérito. Somos nós mesmos que insistimos em exportar ao estrangeiro essa imagem impregnada de sentimento de culpa, haja visto as produções do cinema nacional que citei em O Quatrilho e Depois. Não podemos sequer ter mulheres bonitas: de alguma maneira isso tem que estar associado ao imperativo da "fome".

 

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