A Problemática da Corrupção  
 

No rol dos "problemas nacionais permanentes", destaca-se a corrupção. Digo "permanente" porque está presente há várias gerações, é discutido há várias gerações, a solução jamais foi encontrada, e - ainda mais notório que isso tudo - jamais foi entendido precisamente. Não podemos eliminar a corrupção, mas podemos entende-la, a partir do momento em que nos dispomos a raciocinar com isenção. Por que há tanta corrupção no Brasil? A causa estaria em nós ou na História? O que temos de diferente dos países onde a corrupção não impera?

Começo respondendo a pergunta: por que o Brasil? Na verdade, quem acha que só nós somos os corruptos está sendo etnocêntrico. Basta olhar em volta: o Brasil não é menos nem mais corrupto que a maioria dos países do chamado Terceiro Mundo. O que nos permite concluir que a corrupção não é uma peculiaridade nossa, mas parte de uma síndrome mais ampla, peculiar aos países subdesenvolvidos, eufemisticamente chamados de "em desenvolvimento" ou "emergentes". O senso comum há muito sabe que o pobre é sempre mais ladrão. E como estes tempos de globalização tem como característica a mania das cifras e dos indicadores, foi criado mais um índice (de 0 a 10) destinado a medir a corrupção, obra da ONG Transparência Internacional, que chega ao extremo de divulgar anualmente um ranking mundial da corrupção, a cada vez apontando um novo campeão. Que o bloco dos pobres é mais corrupto que o bloco dos ricos, disso não temos necessidade que nenhuma ONG venha nos dizer. Mas ao mesmo tempo, a magia dos números cria a ilusão de que corrupção é um item mensurável, muito embora, ao que eu saiba, o montante de dinheiro roubado não é divulgado em nenhum anuário estatístico com todos os seus milhões, milhares e quebrados. Sabemos que uns países são notoriamente mais corruptos do que outros, mas que embasamento temos para afirmar, com certeza, que o país X é o primeiro, o país Y é o 17o, e o país Z é o 25o de uma lista que tem mais de 100? Já dizia Sir Gladstone, primeiro-ministro britânico da era vitoriana, "Há três tipos de mentira: mentiras comuns, mentiras deslavadas e estatísticas".

Como, por certo, não são os corruptos que vão contar à Transparência Internacional quanto dinheiro roubaram, os critérios dessa ONG são outros. Segundo afirmam, suas conclusões se baseiam em uma ampla enquete apresentada anualmente a vários executivos de companhias multinacionais, que indaga em quais países já sofreram algum tipo de extorsão, ou tiveram que pagar uma propina. Mas até onde eu sei, a corrupção, assim como a sedução, implica a existência de dois agentes - o ativo e o passivo. O Código Penal apresenta as figuras da "Corrupção Ativa" e da "Corrupção Passiva". De acordo com os critérios da Transparência Internacional, apenas a corrupção passiva é crime, posto que, se o executivo do país X afirma haver pago um suborno a um funcionário do país Y, será incrementado o índice de corrupção do país Y, mas não o do país X. A desculpa do executivo é que ele apenas estava agindo conforme os costumes locais. Mas o funcionário de um país miserável e em guerra também pode argumentar que está com o seu salário 10 meses atrasado, e não lhe resta outra alternativa. Como dizem os sargentos nos filmes de guerra, desculpa é que nem bunda, todo o mundo tem. Essa tendência de condenar o agente passivo e absolver o agente ativo não é exclusiva do caso específico da corrupção que estamos aqui tratando. Sabe-se que o pagamento de propinas nem sempre é produto de uma coação, e se elas são razão de severos prejuízos da parte das companhias estrangeiras, também podem lhes render consideráveis lucros, desde que se saiba a quem molhar a mão e a quantia certa a pagar. Mas a imagem que fica é sempre a mesma: a corrupção está inserida no modo de vida local, e ao infeliz executivo só resta aderir ou ir embora.

Mas como pode, afinal, o delito ser parte da normalidade do dia-a-dia? Há uma incongruência lógica nessa afirmação. O delito é proibido por lei, e a lei existe para sancionar uma normalidade, na forma de um conjunto de disposições que afirmam aquilo que pode ser feito, aquilo que deve ser feito e aquilo que não pode ser feito. Essa "normalidade" que a lei procura cimentar é definida pela cultura e pelos costumes locais, e por conseguinte, deveria refletir aquilo que é a prática do dia-a-dia da população. Se uma coisa é proibida, o é porque a maioria das pessoas considera que aquilo é errado; se aquilo, no entanto, é feito à larga e às claras, então não é verdade que a maioria das pessoas considere aquilo errado. A lei, então, ao invés de proibi-lo, deveria permiti-lo, ou até torna-lo obrigatório. Se há uma discrepância muito grande entre o texto da lei e a "normalidade" observada, algo está errado no país. Isso acontece porque, ao contrário do que afirmei inicialmente, a lei nem sempre é o reflexo de um costume. Por vezes, o princípio é invertido: há um determinado costume que não é seguido pela maioria da população, mas a lei procura induzi-lo mediante a previsão de penalidades. Nesse caso, seu efeito é educativo. Mas como sabemos, nem sempre funciona. Nosso país é pródigo em leis que "não pegam". Isso não é exclusividade nossa. Internacionalmente, a "lei seca" nos EUA dos anos 20 ficou conhecida como o exemplo mais bem acabado da lei que não pega porque não corresponde ao costume da população - no caso, alguns moralistas achavam que os americanos não deveriam beber, e passaram uma lei proibindo-o. Mas infelizmente para eles, os americanos gostavam de beber e não estavam dispostos a abandonar este hábito.

Mas quem vive em um país como o nosso logo se acostuma a considerar a lei uma entidade mais abstrata do que real. Há diversas leis que não valem na prática, são feitas "para inglês ver". A origem dessa expressão remonta justamente a uma lei passada em 1831, proibindo o tráfico de escravos. Foi feita por pressão inglesa, e nunca houve a intenção de respeita-la em uma economia que dependia da importação de africanos. Mas este é apenas o caso mais emblemático. De modo geral, os subdesenvolvidos se acostumaram a importar as leis e os regulamentos dos países desenvolvidos, leis que tiveram origem em revoluções que jamais aconteceram no Terceiro Mundo, ou que se aplicam a contextos que só existem nos países ricos e não tem paralelo no bloco subdesenvolvido. Desta forma, a falta de honestidade dos pobres é, de maneira cruel e irônica, subproduto do excesso de honestidade dos ricos, posto que os pobres terminam atulhados de leis que não correspondem aos costumes locais, ou cujo cumprimento eles não têm a menor condição material de fiscalizar. O melhor exemplo são as leis de transito. Acredito que jamais se inventará indicador mais preciso do grau de cultura e civilização de um povo do que o comportamento ao volante. Quem viaja por vários países europeus nota que o respeito às leis do transito decai a medida em que se avança em direção ao sul, até desaparecer por completo quando se cruza o Mediterrâneo. No Brasil, os motoristas furam os sinais; na Tunísia, eles simplesmente os ignoram. Limitam-se a buzinar a cada cruzamento. Quem quiser um número que meça o grau de apuro de uma civilização, pode encontra-lo no valor das multas de transito.

Os países pobres, instigados a cumprir leis que não foram elaboradas por eles nem para eles, e avaliados de acordo com padrões e critérios que tampouco foram elaborados por eles, inevitavelmente terminam classificados como uma corja desonesta mais que abominável, como o demonstram os números da Transparência Internacional. As conseqüências disto são duas. Primeiro, a desmoralização da lei. Entre os cidadãos do Terceiro Mundo firma-se a convicção de que descumprir a lei não apenas é tolerável, mas também inevitável - a ideologia do "jeitinho", que é o caldo de cultura das práticas corruptas pequenas e grandes. A segunda conseqüência é a divisão do mundo em dois blocos: o bloco dos países que não podem ser corruptos, e o bloco dos países que devem ser corruptos. Isso vem de longe, e o melhor exemplo da História é a colonização européia da India. A "carreira" das Indias enriqueceu dezenas de funcionários portugueses, holandeses e britânicos, muitos tornaram-se nababos da noite para o dia, e eram pessoas que jamais haviam sido desonestas em sua terra natal. Roubar era permitido, contanto que fosse na India. A sigla em holandês da Companhia das Indias Ocidentais foi parodiada como "Afundada na Corrupção", de acordo com piada corrente na época. É evidente que não se pode afirmar que os europeus introduziram a corrupção em terras que jamais tinham ouvido falar dela, mas essa atitude de dupla moral permanece até hoje - em casa não se pode roubar; ao sul do equador, pode-se e deve-se roubar.

Mas como foi que os países hoje tidos como honestos foram capazes de controlar a corrupção no passado? Pela minha experiência, posso afirmar que o caráter individual das pessoas é aleatório e não muda significantemente de parte a parte. O que muda é o grau de tolerância do cidadão comum à corrupção. Basicamente, há pouca corrupção nos lugares onde ela é pouco tolerada pelo povo em geral (e não pelos governos, como seria de se pensar). Mas para que isso aconteça, é necessário que o povo compreenda o conceito de cidadania e responsabilidade coletiva - isto é, que tenha a exata noção de público e privado, e da participação do privado como elemento constituinte do público, o que dá embasamento para entender que aquele que rouba ao estado, na verdade está roubando a todos. Conforme eu já me referi em meu ensaio A Pirâmide e o Sanduíche, no Brasil os pobres são isentos de pagar impostos, e desta forma estão privados da lição elementar da cidadania. Apenas um indivíduo que nunca pagou imposto é capaz de votar em um político corrupto, sabendo que ele é corrupto. Por que haveria ele de se importar, se o dinheiro que o político roubou não saiu de seu bolso? Lembro-me de um estudioso alemão que viajava pelo mundo e coletava sinônimos para "corrupção" na linguagem popular dos países que visitava. Queria, com isso, auferir em que grau a corrupção se encontrava presente na cultura local, e houve países na África onde os sinônimos coletados chegaram às dezenas. No Brasil, ignoro se temos tanta variedade assim, mas também ignoro se há algum outro lugar no mundo onde se encontre essa peculiaridade nossa: nomes diferentes para a corrupção dos ricos e dos pobres. Aqui, a corrupção dos ricos pode ser chamada de "bandalheira" ou coisa semelhante, mas a corrupção dos pobres tem um único e inconfundível termo para designa-la: o "jeitinho". Se a bandalheira é, obviamente, deplorável, o jeitinho é visto como tolerável, louvável até, uma maneira criativa de contornar dificuldades.

Não creio que se dará um passo para eliminar a corrupção no Brasil enquanto não for percebido que o jeitinho e a bandalheira, na verdade, são a mesma coisa.

 

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