Sobre as quatro meninas de Castelo do Piauí  
 

 

No dia 27 de maio de 2015, o país foi surpreendido por um brutal caso de estupro coletivo ocorrido no Piauí. Repercutiu até no exterior. Quatro garotos, todos menores, comandados por um adulto, emboscaram e estupraram quatro meninas também menores. Elas haviam subido um morro, onde havia um mirante, a fim de tirar fotos, quando foram surpreendidas pelos criminosos. Elas foram estupradas, brutalmente agredidas com paus e facas, e por fim atiradas de um penhasco de dez metros de altura, ficando gravemente feridas. Uma morreu. Um dos agressores viria a morrer também.

O caso ganhou as manchetes e tirou do anonimato quatro pacatas adolescentes, quatro garotos pobres e uma pequena cidade chamada Castelo do Piauí, localizada a 190 quilômetros da capital Teresina. Embora de invulgar violência, seria só mais uma ocorrência no registro de um país com altas taxas de crime. Entretanto, o episódio suscitou discussões duradouras a respeito da diminuição da maioridade penal e de uma suposta cultura de estupro, e me despertou a atenção para uma curiosa simetria e sincronicidade: de um lado quatro meninas, do outro quatro meninos. Todos da mesma faixa etária, entre 15 e 17 anos. Moradores da mesma cidade. Entre as vítimas, uma morreu. Entre os agressores, um também morreu, ambos de 17 anos. Meu interesse foi aumentando ao longo do tempo, à medida em que eu descobria mais informações no noticiário. Tive a impressão de ver ali uma alegoria perfeita daquilo que é, efetivamente, o fenômeno da criminalidade no Brasil: ao invés de uma sociedade doentia e disfuncional, vejo um povo que mantém os seus valores constantemente agredido por uma banda podre, pequena mas muito violenta. O caso também é emblemático do fenômeno recente da difusão pelo interior de crimes violentos até o presente típicos somente de cidades grandes. Por haver tudo acontecido em uma cidade pequena onde todos se conhecem, permite a percepção microscópica de como o crime se imiscui no tecido social, e como esse tecido social reage ao crime ante a ausência de uma resposta organizada da parte dos poderes públicos. Percebi ali o rosto de um velho Brasil pacato e ordeiro, ferido, porém vivo e capaz de articular-se em esforços solidários. Mas até que ponto posso confiar nessa intuição? Procurarei encontrar aqui uma resposta em base nas informações que colhi, reconstituindo cuidadosamente o lugar, o crime, as vítimas e os culpados.

O lugar

A cidade chama-se Castelo do Piauí. Pouco menos de 20 mil habitantes, fica no centro-norte do estado, a 190 quilômetros da capital Teresina.

Como outros municípios vizinhos, Castelo sofre de carências variadas: poucas políticas públicas, muitos pobres, IDH baixo. Está sem delegado há tempos, e conta com apenas três policiais, sendo que um fica na delegacia e não pode sair de lá para não deixa-la vazia. Conforme conta essa reportagem, a delegacia, estruturalmente, é um cubículo de duas salas e um banheiro que também serve de depósito de armas e objetos apreendidos. No gabinete do delegado, quem quiser sentar tem que ser sobre uma cadeira caindo aos pedaços e sem encosto. Nas ruas sem policiamento, muitos jovens andando de motocicleta sem capacete, sem CNH, bebendo, provocando acidentes.

Com efetivo policial tão pequeno, certamente que a segurança não é o forte de Castelo. Entretanto, até então a cidade não tinha histórico de crimes violentos: nos registros de ocorrências, o que se viam eram os mesmos casos de roubos e furtos de toda parte. Preservando a calmaria típica das cidades do interior, Castelo do Piauí era mais conhecida por seu Festival da Cachaça e pelas belezas naturais que incluem curiosas formações rochosas, cachoeiras e sítios arqueológicos com inscrições rupestres.

        

 

O crime

Era uma vez quatro meninas. Colegas de escola, andavam sempre juntas. Cada uma tinha uma história diferente e diferentes planos para o futuro, mas muitos pontos em comum. No geral, eram moças simples, mas com objetivos na vida bem delineados. Enquanto não concretizavam seus sonhos, encontravam-se depois da aula e faziam passeios de motocicleta. Mesmo sem CNH.

Era uma vez quatro meninos. Muito pobres, moravam com suas famílias na periferia da cidade. Tal como as quatro meninas citadas acima, cada um tinha uma história diferente, mas compartilhavam muitas características. Em comum, eram delinquentes e usuários de drogas, haviam sido apreendidos pela polícia várias vezes, mas em todas elas retornaram pouco tempo após, para retomar a mesma vida de roubos e furtos praticados para sustentar o vício. Apenas um ainda frequentava a escola, esporadicamente.

Era uma vez um marginal. Seu nome era Adão José da Silva Souza. Nascido em Castelo do Piauí, tinha vindo para São Paulo, onde iniciou uma extensa carreira criminal como assaltante e traficante de drogas. Preso várias vezes. Já com quarenta anos, estando em liberdade condicional, decidiu retornar à cidade natal, mesmo sem licença para sair do estado. Lá fez contato com uns jovens encrenqueiros, a quem forneceu drogas, visando formar uma quadrilha de traficantes sob seu comando. Também assaltou um posto de gasolina onde baleou uma mulher, e por este crime vinha sendo procurado pela polícia. Escondeu-se então em um local próximo da cidade denominado Morro do Garrote, com o auxílio dos quatro meninos citados acima, que lhe traziam mantimentos e drogas. Era um bom esconderijo: de lá não podia ser visto, mas podia ver quem se aproximasse por qualquer canto.

O dia 27 de maio de 2015 caiu em uma quarta-feira. Poderia ter sido um dia qualquer. Mas sem nenhum motivo lógico, por mera construção do acaso, esses personagens todos se cruzaram. As quatro meninas reuniram-se para fazer um trabalho escolar, e decidiram aproveitar a tarde para tirar fotos no Morro do Garrote, de onde se descortinava uma bela vista para a cidade.

Uma quinta colega deveria acompanha-las, mas na última hora desistiu. As quatro adolescentes embarcaram em duas motocicletas e rumaram para o local escolhido. O Morro do Garrote fica a não mais que um quilômetro da cidade, mas é um lugar ermo. Para se chegar lá, entra-se por uma estrada de terra de onde não se vê nenhuma habitação. De lá se tem um belo visual, mas também é local para encontros suspeitos e consumo de substâncias suspeitas.

Adão estava escondido lá, na companhia de seus comparsas. Procurado pela polícia, o correto seria ter ficado bem quieto e esperar as meninas irem embora. Mas estavam todos consumindo drogas, e quem está sob o efeito de drogas não age racionalmente. Decidiram aproveitar a oportunidade para estuprar aquelas meninas. O que aconteceu exatamente não se sabe, pois as meninas tiveram perda de memória em razão do violento trauma físico e psicológico, e os meninos estavam muito drogados, além de, obviamente, não serem os maiores interessados em revelar a verdade. Um deles, chamado Gleison Vieira da Silva, deu a sua versão do crime:

“Às 3 da tarde, tava eu, Adão (Adão José Silva Souza, 39 anos), I.V.I. (de 15 anos), J.S.R. (de 16 anos) e B.F.O. (de 15 anos) aí em cima do morro. Às 4 da tarde, chegou quatro meninas pra tirar as fotos. Adão abordou as meninas com a arma e forçou elas a ter relação sexual com ele (...) Em seguida o Adão pegou, levou as garotas lá para a beira da pedra, e jogou elas lá de cima. X desceu e então tentou terminar o serviço que o Adão não conseguiu terminar."

"Que serviço?"

"Matar as meninas"

Segundo o relato de uma das meninas, elas na realidade teriam sido abordadas primeiro pelo próprio Gleison, que colocou uma faca no pescoço de Danielly. Conta a tia de Iza, que a acompanhou na ambulância:

"Ela lembra que ele veio primeiro colocou uma faca no pescoço da Danielly. Elas tentaram correr, mas ele ameaçou matá-la"

"Minha sobrinha disse ‘tia, nós paramos porque eu não ia suportar carregar essa culpa comigo'"

Durante a transferência, a jovem não largou a mão da tia:

"Ela cravou a unha na minha mão e apertava quando alguém encostava nela. Ela sabe o que aconteceu, não lembra muito, mas quando eu perguntei sobre a violência sexual, só chorou."

O que se sabe com certeza é que elas sofreram toda sorte de abusos por cerca de duas horas, e em seguida, despidas e amarradas com suas próprias vestes, foram atiradas do alto do penhasco que tinha a altura de um prédio de três andares, caindo em um despenhadeiro cheio de pedregulhos e espinhos. Os meninos ainda atiraram pedras sobre a cabeça delas até se convencerem de que estavam mortas.

Nesse ínterim, a polícia fazia buscas pelas cercanias procurando Adão. Encontraram as motocicletas abandonadas aos pés do morro e recolheram-nas, mas como não haviam sido ainda informados do sumiço das meninas, não vasculharam o local.

Ao final daquela tarde, os pais das meninas começaram a ficar preocupados com as filhas que não atendiam ao telefone. O irmão de Rafaela viu as duas motocicletas sendo transportadas em uma pick-up da polícia e imaginou que elas houvessem sido apanhadas em uma fiscalização. Os pais se dirigiram à delegacia, onde foram informados que apenas as motocicletas havia sido encontradas. Deve estar namorando para aí, disse o policial. Mas a mãe de Rafaela sabia que a filha não era disso, e começou a ficar realmente preocupada.

Em um bairro da periferia, dona Elizabeth Vieira da Silva não está tão preocupada que o filho Gleison tenha sumido e passado o dia na rua, pois aquilo era rotina. Por volta das 17 horas o rapaz apareceu em casa, meio esquisito, o que também era rotina, dado o consumo habitual de drogas. O que chamou mais a atenção de dona Elizabeth foi uma movimentação de pessoas e policiais próxima ao Morro do Garrote, distante apenas 500 metros de sua casa. "Vai ver mataram alguém lá", debochou o filho, para depois sair novamente e só voltar às 23 horas, ainda mais esquisito e drogado.

Na delegacia, o policial de plantão informa que um desaparecimento só pode ser configurado após 24 horas. Revoltados, vizinhos e amigos das meninas enchem as ruas. Um grupo de rapazes decide fazer uma busca por conta própria. Munidos de lanternas e cordas, sobem o Morro do Garrote enquanto pneus em chamas iluminam a noite em frente à delegacia.

A subida é íngreme, com muitas pedras soltas. No caminho, vão surgindo os sinais da tragédia: um short no chão, depois um sutiã pendurado em uma árvore. Um deles, filho de um policial militar, ilumina o precipício e vê as meninas caídas, ensanguentadas, ainda amarradas com suas próprias vestes. Descendo a encosta, verificam que apenas uma está consciente, e pensa que são os estupradores que vieram terminar o serviço.

"Para pelo amor de Deus"

Mas para alívio dela, desta vez são seus amigos que vieram salvá-la. A cena é tão aterradora que um dos rapazes fica em estado de choque. Duas delas tiveram afundamento de crânio e uma ficou com a face toda deformada. O sangue das meninas mistura-se com os cabelos e a terra, e tinge as pedras.

Os rapazes cortam os panos e as cordas que as envolvem, cobrem-nas com suas camisetas e de alguma maneira as tiram de lá. Dá calafrios só de pensar como aquele grupo, sem equipamento nem treinamento, pôde mover por aquela encosta íngreme as quatro vítimas em situação de risco com suas colunas cervicais fraturadas. Estavam tão feridas que os parentes tiveram dificuldade em reconhecê-las.

"Ela estava toda deformada, tinha muito sangue na cara dela, o cabelo estava todo enrolado de sangue, que ninguém não conhecia ela não. A gente conhecia ela pelos pezinhos, pelas mãos"

São inicialmente levadas para o Hospital Regional de Castelo do Piauí, e logo em seguida para o Hospital Regional de Campo Maior, uma cidade vizinha, onde recebem os primeiros atentimentos. Lá uma segunda adolescente acorda, mas não se lembra do que aconteceu. Constatada a gravidade do estado delas, às 23 horas elas são enviadas de ambulância para o Hospital das Urgências de Teresina.

Duas delas estão em estado grave, com traumatismo craniano, e vão direto para a UTI. Rafaela teve um afundamento na lateral do crânio, e Danielly teve a face deformada, tendo ainda que ser submetida a uma traqueostomia. As enfermeiras ficaram consternadas.

"Acho que nunca vi isso nem em televisão. A cena vai ficar marcada na minha mente para o resto da vida e ainda estou tentando me recuperar. Para mim, como profissional, penso que jamais irei encontrar cena tão bárbara"

A notícia começa a correr o país. Enquanto isso, pressionada pela indignação popular, a polícia finalmente se move. Em vinte e quatro horas já efetua as primeiras prisões, e não teve dificuldade para apontar os culpados: são aqueles mesmos rapazes que ultimamente vinham sendo o terror da cidade. Um deles ainda está com sangue nas vestes. Um denuncia o outro, e todos denunciam o mentor: Adão, que é preso no dia seguinte.

Mas tal como sucedeu com as meninas, eles também necessitam ser transportados com urgência para Teresina, pois ali todos querem linchá-los. Mais uma vez nota-se a instigante simetria e sincronicidade que permeiam este caso do princípio ao fim: quatro meninas, quatro rapazes, quase simultaneamente cruzando a estrada rumo a Teresina. As meninas provavelmente nunca souberam disto, mas seu algozes estão a poucos metros de distância, em uma delegacia vizinha ao hospital onde estavam internadas. Dias depois, serão transferidos para o Centro Educacional Masculino, onde aguardarão julgamento. Adão vai para um presídio.

Iza e Julinária estavam em estado menos grave. No dia seguinte, Iza é transferida para um hospital particular. Quem está em estado mais grave é Rafaela, que foi submetida a uma cirurgia para a retirada de vinte fragmentos de ossos do crânio. Permanece na UTI em coma induzido. Danielly não consegue falar por causa da fratura na face, mas está consciente e manda mensagens pelo whatsApp. É submetida a duas cirurgias, sendo uma para reconstituição de face, mas na segunda-feira primeiro de junho sobrevem uma forte hemorragia no tórax. O médico Gilberto Albuquerque, diretor do hospital, faz um apelo por doadores de sangue. O hemocentro fica lotado.

Mas seu estado se complica e após três cirurgias ela morre domingo dia 7, sendo sepultada em Castelo do Piauí no dia seguinte. Seus órgãos não puderam ser doados por estarem muito danificados.

Consternados, os amigos das adolescentes criam uma campanha intitulada Flores Para Elas. Inicialmente incentivam a população a enviar flores para as meninas internadas, mas depois criam uma vaquinha a fim de reunir dinheiro para seus familiares, que têm que se deslocar a Teresina para acompanhá-las, praticamente se mudando para o hospital, e em breve terão que custear remédios e tratamento em casa. Na página criada, anuncia-se o objetivo de arrecadar 5 mil. Ao final, o total arrecadado é de 29.105,00. O hospital fica cercado de flores.

Na cidade, a comoção é enorme, pois todos conheciam as vítimas e suas famílias. O trauma é coletivo. Uma equipe de psicólogos especializados em tragédias é chamada para auxiliar. Inclui a psicóloga Grace Wanderley de Barros Correia e o psicólogo Jayme Panerai Alves, que estiveram em Castelo do Piauí nos meses de junho e novembro. Ambos já atuaram em Santa Maria, onde ocorreu o incêndio da boate Kiss, e trataram também das vítimas da chacina da escola de Realengo, onde 12 crianças foram mortas por um atirador.

"Encontramos a comunidade destroçada, era muito sofrimento. As pessoas estavam amedrontadas, chocadas e tristes porque todos se conheciam. Era como se fossem uma grande família"

"Professores não conseguiam dar aula e alunos não assistiam. Todos choravam muito porque havia laços fortes com as vítimas e os familiares"

Um dia antes da morte de Danielly, Iza recebe alta. No dia 9 de junho, após 14 dias internada, é a vez de Julinária receber alta. Rafaela permanece no HUT, mas vai melhorando devagar. Os médicos temem que fiquem sequelas, pois ela teve perda de massa encefálica, mas sua recuperação surpreende. No dia 4 de julho, após 36 dias internada, ela recebe alta.

Mas o último capítulo ainda estava para ser escrito. Os meninos passam a negar a autoria do crime, mas seus álibis não são confirmados e o exame confirma material genético de pelo menos dois deles no corpo das vítimas. São todos condenados à internação sócio-educativa pelo prazo máximo de 3 anos permitido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pelos atos infracionais de estupro, três tentativas de homicídio e um homicídio. Apenas Gleison mantém sua confissão. No dia 16 de julho ele é morto a pancadas pelos três comparsas, com quem estava confinado no CEM. Eles confessam o assassinato, segundo consta, sem demonstrar remorso, e mais um homicídio é acrescentado a seu prontuário. Mas que diferença faz, se já estavam condenados à pena máxima de 3 anos permitida pelo ECA?

Fecha-se tristemente a última simetria deste caso tão emblemático. A primeira cena do drama, no dia 27 de maio de 2015, foi Gleison pondo a faca no pescoço de Danielly. A cena final, exatos 50 dias depois, é a face desfigurada a pancadas de Gleison, tal como ele havia feito com sua vítima Danielly. Mecanismo de compensação? Propensão da violência em atrair mais violência? Lei do Retorno? Quem tem fé fala em justiça divina.

"Romanos 6:23 Porque o salário do pecado é a morte..."

 

As meninas

Quem são aquelas quatro adolescentes tão abruptamente tiradas do anonimato para protagonizar episódio tão trágico? O que as colocou em rota de colisão com bandidos tão cruéis?

Sobre elas, tudo o que se sabe é o que foi dito por parentes, vizinhos e colegas, pois em razão do trauma não puderam ser entrevistadas. Apenas uma, mais tarde, concordou em falar. De minha parte, traçar o perfil de cada uma foi um trabalho detetivesco, pois inicialmente apenas as iniciais de seus nomes foram divulgadas, então tive que fazer um cuidadoso cruzamento de informações para ligar a notícia à pessoa. Desde cedo ficou patente que eram muito benquistas por suas famílias e sua comunidade. De fato, suas qualidades eram tantas que uma colega teve que escrevê-las em uma lista.

Que faria eu se as encontrasse na rua? Daria-lhes dois beijinhos no rosto e perguntaria como vão no colégio. Gostaria mesmo que fossem minhas sobrinhas. Elas nada têm de especial, mas ao mesmo tempo, são especiais. Explico: elas são detentoras daqueles atributos que, individualmente considerados, são prosaicos, mas multiplicados e disseminados no corpo da sociedade, conferem a essa sociedade caráter, solidez e dignidade. Tiradas do anonimato, elas estampam aqueles velhos valores que todos os pais desejam para os filhos: estudar, trabalhar, respeitar os outros, obedecer a lei.

Com as informações que colhi, exibirei um breve perfil de cada uma delas, e assim também presto-lhes uma justa homenagem.

Danielly Rodrigues

Tinha 17 anos e cursava o terceiro ano do ensino médio. Filha de seu Jorge Moura e dona Zefinha, que mantém uma mercearia na cidade. Uma menina muito meiga, querida por todos. Estudiosa, só tirava notas boas e queria cursar medicina. Participava de um grupo jovem de sua igreja, denominado Bote Fé. Também gostava de futebol e era membro da torcida organizada Fanáticos da Baixada.

"A menina de Castelo foi vítima de um ambiente que ela e suas três amigas nunca ajudaram a criar. Pelo contrário, com seu comportamento cheio de vida e sempre dispostas a contribuir com algo que engrandecesse a comunidade em que viviam, são protagonistas de relacionamentos saudáveis no meio de seres humanos que têm respeito pelos outros"

Danielly chegou ao hospital em estado grave, com fraturas na coluna, no tórax e afundamento na face em razão de uma enorme pedra que foi jogada sobre ela. Impossibilitada de falar em razão da fratura na face, enquanto esteve consciente enviou mensagens pelo celular.

"Cansada, machucada. Fui agredida, jogada das pedras (...) To mau. Não posso falar. Preciso conversar depois, contar tudo só pra vc"

Danielly sofreu uma hemorragia no tórax e seu estado se agravou. Faleceu dia 7/06/2015, sendo sepultada no dia seguinte em Castelo do Piauí.

Seu último desejo foi tomar um suco de acerola com a tia.

Julinária Laurentino

Tinha 15 anos e cursava o primeiro ano do ensino médio na época. Também filha de comerciantes da cidade. Sofreu fraturas no tornozelo e no pulso, além de um golpe de faca na coxa. A mãe acompanhou-a no hospital, e impressionou-se com a sua força:

"Minha filha é muito forte, se mostrou muito forte desde sempre. Naquele momento como mãe, era eu quem deveria dar força pra ela, mas ela é quem me passava essa fortaleza. Aos poucos fomos enfrentando todas as dificuldades e hoje ela tá bem. Vi Deus se manifestar numa injeção que a minha filha tomou. Era ela mostrando vida, dia após dia dentro daquele hospital"

Ficou internada por 14 dias, e ao sair enviou uma mensagem de áudio para tranquilizar seus amigos: já estou bem melhor. Voz triste, mas tom resoluto:

Atualmente reside em Teresina e prepara-se para o Enem. Planeja cursar arquitetura.

Iza Furtado

Tinha 16 anos e cursava o terceiro ano do ensino médio na época. Sua tia é professora e historiadora. Um tio é vereador no município. Tinha planos de fazer faculdade de moda.

Sofreu lesões na coluna cervical. Ficou internada em um hospital particular por dez dias. Atualmente reside em Teresina.

Busquei informações a seu respeito no Google. Ela tem uma página no facebook, mas não vinha atualizando-a desde 2014. Bonita, fez um ensaio fotográfico para participar do concurso Musa CDP, mas não ganhou. A impressão que me fica é que ela é vaidosa, mas um tanto tímida. Acertei?

Rafaela Rufino

Tinha 17 anos e cursava a terceira série do ensino médio na época. Filha de seu Francisco, agricultor, gostava de animais e planejava cursar veterinária. Foi a que ficou em estado mais grave, com severo traumatismo craniano. Passou vários dias na UTI e recuperou-se devagar, tendo ficado 36 dias internada. A memória também foi voltando devagar, mas ainda tem lapsos. Inicialmente só se lembrava de "quatro moleques no morro".

Foi a única que concordou em falar à imprensa após sair do hospital. Mostrou-se otimista e sem ressentimentos.

"Não tem pra quê ficar dizendo, ai meu Deus, por que isso aconteceu? Deus não tem culpa de nada, ele me salvou disso. Eu estou viva e bem. Feliz por estar aqui contando a minha história"

A religião parece ter sido um conforto para as três sobreviventes. Atualmente Rafaela reside em Teresina e prepara-se para o Enem, retomando o seu projeto de cursar veterinária.

Após deixar o hospital, as três adolescentes que sobreviveram foram morar com parentes e cuidaram de tratar as sequelas do trauma com o acompanhamento de psicólogos. Para seu resguardo, recolheram-se ao anonimato e quando tinham que comparecer a uma audiência para dar depoimento, cobriam o rosto. A reclusão voluntária foi quebrada por elas próprias em 18/10/2015, quando organizaram uma missa de ação de graças por sua recuperação. A missa teve lugar na Igreja de Nossa Senhora do Desterro em Castelo do Piauí, e contou com presença maciça da comunidade. Mostrando estar superando o trauma, elas apareceram em público e seus nomes foram divulgados.

Voltando a ter um rosto e uma identidade, a sensação que fica é a de um mau encanto finalmente quebrado, como nos antigos contos de fadas. A página do Flores para Elas celebrou o restabelecimento delas:

"Queridos amigos e amigas queríamos agradecer todo o carinho de todos vocês. As nossas Princesas estão muito bem, tudo está voltando ao normal. São três guerreiras com muita fé, ânimo e força de vontade. Todas as orações e carinho de vocês ajudaram e ajudam nessa superação, Deus é maravilhoso e a vida continua !"

Parece muita delicadeza para um povo que, como dizem, é misógino e cultiva uma "cultura de estupro". Mas sobre isso falarei mais adiante.

Na igreja, sob intensa emoção, foi lida pelas meninas uma mensagem de agradecimento a todos que as ajudaram:

"Como é bom sentir a presença de Deus nas nossas vidas, saber que Ele está sempre ao nosso lado nos amparando com a sua mão divina! Somos vitoriosas pelo simples fato de estarmos vivas, por ganharmos uma nova oportunidade de todos os dias, conquistar algo novo e de procurar ser melhor em todos os sentidos. Somos muito agradecidas por todas as vitórias que já alcançamos nas nossas vidas, das mais difíceis àquelas mais simples. A cada vitória nos sentimos mais vivas, mais abençoadas, mais amadas e ainda mais protegidas. A cada vitória temos mais certeza que as próximas batalhas também serão vencidas, o medo já não é mais um obstáculo e é através do amor de Deus que nos sentimos cada vez mais agradecidas! Não existem palavras suficientes e significativas que nos permitam agradecer à vocês por tudo que fizeram por nós, mas, pedir a Deus que os abençoe sempre e os conserve pessoas generosas como são. Sem o apoio de vocês teria sido tudo bem mais difícil. O que nos resta agora é dizer MUITO OBRIGADA DEUS POR TER COLOCADO ESSAS PESSOAS EM NOSSAS VIDA. Muito obrigada! Com todo nosso carinho e de coração lhes agradecemos, pelo resto das nossas vidas lhes agradecerei.

De suas meninas, Julinária, Iza e Rafaela..."

Depois de tanto sofrimento, elas se permitem sorrir.

 

Os meninos

Uma reportagem visitou o local de moradia dos quatro meninos acusados do estupro coletivo, entrevistou parentes e vizinhos e levantou um perfil deles, procurando identificar o que tinham em comum a fim de responder à questão levantada de início:

"O que levou jovens adolescentes de uma pequena e quase pacata cidade do interior do Piauí, bem franzinos, paupérrimos e com pouca idade a raptar, ameaçar, violentar coletivamente quatro garotas (todas menores de idade) e ainda as amarrar e as jogar de um desfiladeiro, com intuito de mata-las?"

Mas de todas as perguntas, essa é a mais fácil de responder: drogas. Quem está sob o efeito de drogas faz coisas assim. Todos sabem disso. Melhor seria perguntar o que torna o acesso a drogas tão fácil a jovens delinquentes. Mas a reportagem procura explicação em fatores pertinentes ao ambiente em que os meninos foram criados:

"Eles não estudavam, tendo vários problemas nas escolas que já frequentaram, com histórico de abandono da vida de aulas. São também semi-analfabetos, moram em lugares periféricos em situações de miséria, têm famílias desestruturadas, com histórias de loucuras, depressão, abusos, abandono, revolta e descontrole"

O contexto, sem dúvida, é altamente desfavorável. Mas isso basta para transformar crianças em criminosos? Vejamos o que a história pessoal de cada um deles tem a dizer, conforme informações extraídas da reportagem.

Gleison Vieira da Silva

Tinha 17 anos na ocasião. Morava em um casebre na extrema periferia da cidade, ,em companhia da mãe, a avó, o padrasto, três irmãs e dois irmãos. O mais velho, de 19 anos, sofre de sérios problemas mentais, e ironicamente é o principal provedor da família por causa da pensão a que faz jus como incapaz.

Estudou somente até a sexta séria, tendo sido expulso de várias escolas em razão de seu comportamento violento. Começou no crime aos 13 anos. A mãe perdeu a conta das vezes em que ele foi preso, mas o máximo que ficou foram os 45 dias estipulados pelo ECA para a detenção sem culpa formada. Cometia apenas roubos e furtos. Era usuário de drogas mas, diz a mãe, apenas maconha. A mãe tem dúvidas quanto a sua culpabilidade, pois ele nunca demonstrou ser um estuprador, tanto que costumava defender as irmãs menores quando o irmão doente mental tentava bolina-las. Respeitava a mãe, mas não dava bola para seus conselhos. A última vez que o pai biológico veio visitá-lo, negou-se a cumprimenta-lo e chamou-o de ladrão. Quando entrava em casa, as irmãs mais novas diziam: "lá vem o ladrão", o que deixava Gleison furioso. Mas foi essa a resposta que ele deu a um promotor que tencionava perdoa-lo e matricula-lo em uma escola:

"Ele disse na minha frente e na frente do juiz ‘Quero é ser bandido mesmo’. Fiquei em choque"

Gleison confessou o crime e denunciou os outros três. No dia 16/07/2015 foi assassinado a pancadas pelos comparsas no banheiro do Centro Educacional Masculino, onde estavam os quatro internados em ala separada. Dias antes de morrer, escreveu uma carta para a mãe pedindo perdão:

"Mãe eu sinto muito a sua falta, eu quero que você me perdoe pelo que fiz. (...) Desculpa mãe eu não ter sido o filho que você sempre quis, mais eu quero que você saiba que você nunca vai sair da minha mente, nem do meu coração. Mãe eu só peço que você lembre que tem um filho que te ama muito, eu sei que nunca recompensei tudo o que fez por mim (...) Eu nunca vou esquecer-me de você nem da minha Vovó, nem do meu padrasto"

Foi sepultado em Teresina, pois temia-se a reação da população caso quisessem fazer o enterro em sua cidade natal. Veiculou-se que ali houve queima de fogos de artifício em comemoração de sua morte, notícia depois desmentida, mas populares afirmaram que desde a prisão dos quatro a cidade ficou bem mais tranquila.

Por haver sido assassinado e ter sido o único que teve o nome e o rosto divulgados, Gleison tornou-se o mas notório dos quatro. Mas talvez fosse o menos cruel e o único que se arrependeu.

I. V. I.

I.V.I. completou 15 anos no 1º dia de 2015. Mas não teve festa com a família (a última, na foto, foi aos 12 anos, com direito a bolo e refrigerantes, patrocinados pela madrinha). Os aniversários seguintes foram comemorados em bocas de fumo da região, com muita droga.

É tido como o mais frio e cruel dos quatro. Usuário de crack, desde os oito anos de idade roubava para sustentar o vício. Praticava assaltos usando facas. Considerado o terror da cidade, com mais de cem passagens pela polícia. Dividindo isto pelo número de anos de dedicação ao crime de I.V.I., dá para concluir que em todas as vezes em que passou pela delegacia, ficou pouquíssimo tempo detido, já que o ECA só prevê internação para delitos graves.

Na casa modesta onde vivia, afirma a reportagem, o pai não parece lamentar sua ausência. Informa que ele odiava particularmente a mãe, porque ela insistia em levá-lo à escola, e teria várias vezes batido nela. Também a família era vítima costumeira de seus furtos, tendo ele inventado uma curiosa modalidade de sequestro: o do celular da mãe, que ele só devolvia mediante pagamento de resgate que usava para comprar drogas. Esse quadro passa longe da imagem idílica que décadas atrás era feita dos jovens delinquentes, imortalizada na canção O Meu Guri de Chico Buarque, onde é narrada a história de um pivete que rouba para dar presentes à mãe pobre.

Os meus guris do mundo real roubam para sustentar o próprio vício e batem na mãe.

B. F. O.

Com quinze anos na ocasião, é o mais novo dos quatro. Parecia até uma criança. Morava em uma pequena casa na periferia da cidade, em companhia da mãe, do pai, um irmão e uma irmã. Abandonou a escola na 5ª série. A mãe nega que soubesse que ele havia sido preso outras vezes e que respondia a vários processos, entre eles o assalto e agressão a um idoso. Um irmão, que ressente-se de ser constantemente confundido com ele, também não acredita na culpa de B.F.O., pois ele parecia nem se interessar por meninas:

"Ele fazia era dispensar as meninas que queriam ficar com ele. Então por que iria fazer isso?"

J. S. R.

Tinha 16 anos na ocasião e até trabalhava: fazia bicos de operário braçal. Mas dividia o tempo de trabalho com os crimes e o consumo de drogas. Ultimamente vinha trabalhando na construção de uma casa: era a chance que um vereador da cidade lhe havia dado para sair da vida de crimes. Detalhe macabro: o vereador era tio de uma das vítimas. Foi o primeiro a ser preso justamente por voltar com sinais de estar drogado, com roupa suja e calça manchada de sangue.

Morava com a mãe em um casebre nas proximidades de uma lagoa do bairro Cohab. O pai é separado, confirma que o filho é usuário de drogas e sente muita vergonha.

"Se ele fez, que coma o pepino sozinho. A gente não apoia. Se errou tem de pagar o pato"

Muito abatida, a mãe não está certa da culpa do filho, pois naquele dia ele estava trabalhando. Mas testemunhas confirmam que ele saiu mais cedo.

Maus elementos, malquistos por suas comunidades e até por suas famílias, maus estudantes, sem outros planos para o futuro senão se tornarem bandidos, os quatro meninos aqui apresentados surgem como um contraponto perfeito às quatro meninas suas vítimas: se elas encarnam valores, eles encarnam contravalores; se elas são elementos que agregam a sociedade, eles são elemento desagregadores. E no entanto, todos são moradores da mesma cidade, têm a mesma idade, compartilham o mesmo espaço e o mesmo tempo histórico. O que os tornou tão diferentes?

O contexto social e familiar em que o meninos foram criados foi, sem dúvida, desfavorável, como o artigo acima citado deixou claro logo de início. Mas uma ou duas coisas devem ser apontadas. Em primeiro lugar, nenhum deles aprendeu o crime dentro de casa. Por mais disfuncionais que fossem suas famílias, nenhum de seus parentes era criminoso, e todos os seus familiares ao menos tentaram aconselha-los a mudar de vida. Seja lá o que foi que os desencaminhou, veio de um agente externo. Segundo, nenhum deles tinha histórico de agressão a mulheres. Um deles até declarou certa vez que odiava estupradores, e Gleison inclusive defendia suas irmãs menores das investidas do irmão mais velho doente mental. Não tenho dúvidas de que foi a droga que liberou instintos tão perversos dentro deles.

As quatro meninas de Castelo foram vítimas de quatro bandidinhos pé-de-chinelo que sob o efeito de drogas transformaram-se em monstros.

 

Algumas Conclusões

Quando da estupefação geral que se seguiu ao crime, alguns habitantes da cidade procuraram encontrar uma explicação, como mostra essa reportagem. Disse o prefeito, José Ismar Lima Martins:

"O problema maior da violência no país é a droga (...) A desestruturação familiar é um outro problema. Infelizmente, em parte devido a problemas familiares, os quatro jovens suspeitos abandonaram os estudos e acabaram nas drogas"

O prefeito diz também ser a favor da redução da maioridade penal, mas reconhece qu eo Estado não temcapacidad para abrigar tantos detentos nas prisões, e que apenas jogar os menores em uma cela, sem estrutura adequada para ressocialização, só vai piorar a situação. O conselheiro tutelar Francisco Alberto Cardoso de Siusa tem opinião semelhante quanto às causas da criminalidade, mas ressalva que nenhuma providência é efetiva sem as "políticas públicas adequadas".

Enfim, todos são objetivos quanto a apresentar as causas imediatas, mas ao apontar as causas remotas, tornam-se mais subjetivos e falam da ausência de certas políticas públicas, sem especificar quais política públicas seriam essas. O que faltou, da parte do Estado, na vida daqueles quatro garotos?

Amparo financeiro, o Estado deu o que podia dar. Todas as famílias recebiam bolsas e uma até era sustentada pela pensão que o filho mais velho recebia por ser doente mental. Escola também todos tiveram. Mas abandoram-na ou foram expulsos em razão de seu mau comportamento. Outros analistas generalizam ainda mais a questão, e se referem a uma cultura de estupro que existiria no Brasil, e que seria responsável por este e por outros casos. A blogueira feminista Lola Aronovich publicou em seu blog uma postagem justificando não haver comentado sobre o caso do estupro coletivo em Castelo do Piauí porque não desejava favorecer a discussão em torno da redução da maioridade penal, e finalizou sentenciando:

"Se vamos apontar um culpado, este tem nome conhecido: a velha misoginia"

Seria a causa de tudo esses conceitos abstratos, a cultura de estupro e a misoginia?

Penso que, se o número elevado de estupros que acontecem no Brasil é prova suficiente de que existe aqui uma cultura de estupro, então temos que concluir que aqui também existe uma cultura de roubos, uma cultura de assaltos, uma cultura de sequestros-relâmpagos, uma cultura de explosões de caixas eletrônicos, uma cultura de assassinatos relacionados ao tráfico e muito mais, pois todos esses crimes acontecem em grande quantidade por aqui. Se somos tão maus, então a única solução é o suicídio coletivo! Mas antes de tudo penso que, se vamos utilizar terminologia erudita, temos que saber exatamente o que significam esses termos. Em antropologia, uma cultura denota um conjunto de ideias e costumes amplamente disseminado, aceito e praticado por amplos setores de uma sociedade, enfim, uma coisa padrão, que se vê por toda parte. Se existe aqui uma cultura de estupro, então veríamos e saberíamos numerosos casos de amigos estuprando amigas, vizinhos estuprando vizinhas, colegas estuprando colegas e por aí afora. Isso tudo acontece, certamente. Mas puxando a minha memória, a grande maioria dos casos de estupro de que um dia tomei conhecimento na mídia não se enquadra nesse modelo. São geralmente praticados por criminosos comuns que não conheciam suas vítimas, como foi o caso de Castelo do Piauí, e na maioria das vezes são decorrências de outros crimes como assalto, sequestro ou invasão de domicílio. Ou então ocorrem no interior de favelas, onde não há polícia e todos os protagonistas estão drogados, como foi o bem comentado caso da menina que foi estuprada por trinta homens.

Não vejo razão para acreditar que a cultura de estupro no Brasil seja mais prevalente do que em qualquer outro lugar do mundo ocidental. Jamais tomei conhecimento por aqui de um estuprador que tenha confessado o crime e declarado de cara limpa que o estupro foi justo e que ele tinha razão - que eu soubesse, todos procuraram fugir ou negar o crime. É bem conhecida a ojeriza que criminosos comuns têm a estupradores na prisão, a ponto de ser necessário mantê-los isolados. Acredito que a real causa do alto índice de estupros no Brasil seja e mesma causa do alto índice de todos os outros crimes: a impunidade. Não conseguimos reprimir eficazmente os criminosos.

Passando ao largo de generalizações apressadas, penso que seria interessante ouvir a opinião de alguém que conhecia pessoalmente o ambiente e os protagonistas. Este depoimento de um professor de Danielly Rodrigues é bem revelador:

"Danielly era mais uma de tantas e tantos jovens do interior do Piauí que têm uma vida normal (...) Mas Danielly não está mais viva (...) Essa foi a última de suas mortes. A penúltima delas foi quando caiu de um penhasco no Morro do Carro Velho (...) Antes disso já tinha morrido por não ter defesa contra seus agressores, todos acusados de estarem dopados com vários tipos de drogas (maconha, cocaína e crack – as mesmas encontradas tão facilmente em quase todas as esquinas, as mesmas que financiam vários esquemas ilegais, as mesmas que muitos acham 'normal'). Danielly também já tinha morrido porque, mesmo sendo uma estudante dedicada, uma filha obediente que vivia na barra dos pais, convivia em uma cidade que não tem delegado, um município que tem pouquíssimos policiais, em um lugar com poucas políticas públicas, uma cidade como tantas outras no Brasil em que uma pequena parcela da juventude aterroriza a maioria. Ela morava a menos de 500 metros do acusado de ser um dos seus maiores algozes. Talvez o conhecesse até de vista. Talvez soubesse da fama do algoz, um garoto de 15 anos, com quase cem passagens pela polícia"

Convivendo com jovens na cidade, sem dúvida que o professor Orlando Berti fala com conhecimento de causa, ao contrário dos acadêmicos de gabinete. Chama a atenção esta frase: uma cidade como tantas outras no Brasil em que uma pequena parcela da juventude aterroriza a maioria. Isso vai contra a teoria amplamente disseminada de que o crime é a síndrome de uma sociedade doente como um todo, opressiva e praticante de uma "cultura de estupro". A informação que o professor nos traz é que existe uma juventude saudável e estudiosa, porém oprimida por um pequeno grupo muito violento. Esta é a opinião de quem viu tudo de perto. O pequeno cenário permite uma visão microscópica, lidando com indivíduos e não com arquétipos, mas também abre a possibilidade assustadora de vítimas e culpados cruzarem-se nas ruas e até se conhecerem pessoalmente. Como bem destacou o professor: ela morava a menos de 500 metros do acusado de ser um dos seus maiores algozes. Talvez o conhecesse até de vista.

E não foi só ela. Nessa entrevista gravada em vídeo, o pai de Danielly afirma conhecer dois dos estupradores.

E não foi só ele. Ao prestar depoimento em 25/05/2015, uma das vítimas, Julinária Laurentino, afirmou haver estudado com I.V.I. na infância, e que o incentivava a frequentar as aulas, mas ele respondia-lhe que "queria mesmo ser coisa ruim".

Compare isso com a já citada declaração de Gleison ao promotor que tencionava perdoa-lo, afirmando que queria mesmo ser bandido. Um deboche? Penso que Gleison estava apenas apenas sendo lógico. Havendo constatado, por experiência própria, que o crime garantia muito mais rendimento do que um trabalho braçal, e que a punição, quando havia, era irrisória, só podia concluir que o crime compensa e que ser bandido, portanto, era a opção escolhida por vantagem comparativa. A mesma constatação que I.V.I. já havia feito nos tempos em que era colega de Julinária. Desde 2014 ele somava doze boletins de ocorrência, seis atos infracionais confirmados e nove processos judiciais. Foi perdoado três vezes pela Justiça em abril e deixou de ser apreendido uma semana antes do ataque às meninas.

Diante desses fatos só posso concluir que a verdadeira causa da criminalidade é a ausência de punição na juventude, quando o crime é praticado pela primeira vez. É como um ferimento que, não tratado, causa uma infecção a um corpo originalmente sadio. Nossa sociedade não está doente - uma coisa que me impressionou tanto quanto a violência do crime foi a capacidade de mobilização de vizinhos, parentes, amigos e até gente que nem conhecia as meninas, todos prontos a prestar-lhes assistência onde o poder público faltava. Elas foram localizadas e socorridas por populares, e populares fizeram uma vaquinha para ajudar a custear seu tratamento. Isso é admirável. A meu ver, a suposta cultura de estupro é um subterfúgio para dissolver no corpo da sociedade a culpa dos verdadeiros criminosos. O único efeito desse arrazoado é incutir sentimentos de culpa em quem jamais pensou em estuprar alguém, enquanto os verdadeiros estupradores continuam praticando seus crimes sem sentir culpa alguma. Se os meninos estivessem atrás das grades no dia 27 de maio de 2015, por conta dos inúmeros delitos que já haviam cometido até aquela data, seu Jorge da Baixada ainda teria filha, dona Elizabeth ainda teria filho, e os quatro adolescentes hoje seriam só ladrõezinhos, e não assassinos impiedosos.

Mas por que, afinal, uma sociedade apontada como tão violenta é tão leniente com menores infratores?

Penso que há uma acomodação. Endurecer a legislação penal surtiria como efeito imediato o aumento da população carcerária , e as cadeias existentes já estão repletas. Construir prisão não dá voto. Jogar os presos na rua sai mais barato, e assim se pode reservar os recursos existentes para objetivos que permitam um retorno mais rápido em votos. Funciona enquanto o eleitor concordar com esse ponto de vista, e aí que entram os defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com um discurso pretensamente humanista a fim de justificar toda essa negligência. Afirmam que o ECA é muito bom, o problema é que não é cumprido. Em minha opinião, o ECA é muito bom, sim, mas não para o Brasil. Já os detratores do ECA concentram sua argumentação em torno da redução da maioridade penal, que é apenas um dos aspectos da questão. É evidente que seja qual for a maioridade penal, o tempo de internação dos menores infratores precisa aumentar, bem como a internação precisa ser usada não apenas para delitos gravíssimos.

"Não era para ele ter sido solto"

Quem disse essa frase? A mãe de uma das vítimas?

Não. Foi a mãe de um dos meninos. Ela já havia levado o filho na polícia várias vezes pedindo a sua internação, sem ser atendida. Se é a própria mãe do menor infrator que reclama contra o pequeno tempo de internação, alguém ainda duvida que a legislação para menores no Brasil é falha?

Outros afirmam que jogar os menores na cadeia não adianta, porque a prisão "não recupera". Eu pessoalmente duvido muito que alguém saia de lá recuperado. Mas esse pressuposto revela uma distorsão que, de tão repetida, se tornou senso comum: a crença de que a finalidade da prisão é recuperar o criminoso, como se fosse um sanatório. Mas quem se interna e um sanatório, presume-se que deseja ser curado. O criminoso deseja ser recuperado? É uma possibilidade, e sem dúvida que o Estado deve envidar todos os esforços nesse sentido. Mas o criminoso, seja maior ou menor de idade, é dono de sua consciência individual, e como tal só pode recuperar-se se este for o seu desejo. Se ele não deseja recuperar-se, o Estado não pode ser responsabilizado. Fica esquecida que a função primordial da prisão não é recuperar o criminoso, já que isso é apenas uma possibilidade, mas sim resguardar a sociedade. Se a recuperação é incerta, por outro lado é certo que enquanto o criminoso permanecer na prisão, ele não estará nas ruas cometendo crimes.

A noção de que o delinquente é um enfermo que necessita ser recuperado é uma herança longínqua do credo rousseaunico que afirma que o ser humano é naturalmente bom, e a sociedade que o corrompe. Sob este enfoque, os estupradores seriam nada mais que inocentes pervertidos por uma sociedade misógina e praticante de uma cultura de estupro, devendo ser tratados a fim de recuperar sua natureza boa original. Outra herança do pensamento rousseaunico ainda muito em voga é a crença de que o indivíduo só comete crimes se premido por necessidades incontornáveis - se ele tivesse estudo e um ofício estaria trabalhando, certo? Aponta-se, então, a escola como a cura mágica de toda a delinquência. Fazia algum sentido 80 anos atrás, quando muitas crianças viviam na roça, longe de qualquer escola, cresciam analfabetos, não encontravam emprego e viravam ladrões de galinha. Escola não faltou para nenhum dos quatro adolescentes envolvidos no estupro coletivo, mas eles abandonaram-na. Nenhum deles entrou para o crime premido pela fome ou abandono, mas por decisão própria - pelo menos dois deles, Gleison e I.V.I., afirmaram isso com suas próprias palavras. Eles verificaram as vantagens comparativas - o crime proporcionava maiores ganhos, e os riscos eram pequenos, já que quando eram presos, eram soltos logo em seguida. Portanto, a conclusão a que chegaram foi que o crime compensa. Chega a ser um alívio saber que não estão na escola, onde certamente estariam aterrorizando seus colegas. A única maneira de tirar esses meninos do crime seria anular a vantagem comparativa que os fez optar pelo crime, fazendo com que as penalidades fossem maiores e não mais pudessem ser compensadas pelos ganhos. Mas isso não está nos planos dos governantes, ao menos por hora.

Ainda há quem tenha disposição para humanizar os estupradores, como nesse artigo intitulado Por que a mídia não deve chamar os estupradores de monstros. Previsivelmente, o autor joga a culpa na "sociedade fundada sobre as bases do patriarcalismo e da desigualdade". Com a premissa básica, eu estou de acordo: estupradores não são monstros. Há piores, inclusive notórios criminosos mundialmente famosos como Al Capone e Pablo Escobar, que não consta terem alguma vez cometido um estupro. Estupradores não são monstros. Mas o caso de Castelo mostrou que, sob o efeito de drogas, garotos se transformam em monstros. As mesmas drogas que muita gente por aí quer que sejam liberadas, e até acreditam que isso seria a solução mágica para o problema da criminalidade. Acaso o fim da Lei Seca nos EUA acabou com a máfia?

Visto de perto, tudo muda de figura. A tal da sociedade misógina que ama o estupro mandou flores para as meninas e chamou-as de nossas princesas. E os sedizentes defensores dos direitos humanos exibem uma atroz indiferença para com aqueles que não constituem o seu público.

 

Um ano depois

Decorrido um ano do brutal crime, algumas coisas mudaram, outras não. Mudaram as três meninas sobreviventes, que hoje residem e estudam em Teresina. Mudaram as famílias dos jovens delinquentes, que sumiram da cidade sem deixar rastro. Mas a população da cidade continua convivendo com a insegurança, e a juventude estudiosa continua obrigada a diariamente cruzar nas ruas com indivíduos que deveriam estar na cadeia. Persiste a sensação de que o crime não foi de todo esclarecido. Poucos meses depois, houve um incêndio no morro do Garrote, e não se sabe quem ateou o fogo. Um boato afirma que um policial militar dono de uma companhia de segurança não legalizada teria pago aos meninos para cometerem crimes na cidade. Outro boato afirma que a morte de Gleison teria na verdade sido queima de arquivo, pois ele estaria prestes a fazer revelações importantes.

Entretanto, a cidade procura recuperar-se do trauma coletivo. Essa reportagem mostra como tem sido a reação. Um informal pacto de silêncio foi estabelecido para esquecer o ocorrido.

"Tratamos as meninas com afeto e boa recepção, para elas não se sentirem envergonhadas ou com medo. Fugimos do assunto para não atrapalhar o cotidiano"

Uma boa notícia é que as três meninas sobreviventes estão se recuperando bem. Essa outra reportagem intitulada Força, Fé e Foco nos Estudos mostra como elas prosseguem o tratamento e têm procurado retomar sua vida normal e seus projetos originais de estudar e se formar. Essa resiliência corrobora o que eu expus em meu ensaio A Classe Média Universal, onde mostro como os cidadão "de bem" sempre retomam suas metas de vida mesmo após imensos percalços, ao contrário dos cidadãos "do mal", que não são coerentes sequer dentro de seus projetos criminosos, posto que um gesto impensado põe tudo a perder, como de fato aconteceu. A única que concordou em dar entrevsta foi Rafaela Rufino, aquela que ficou em estado mais grave.

Mas quis falar apenas sobre o futuro, e não sobre o passado.

"Prefiro me reservar e ficar calada assim. É um momento para esquecer. O passado ficou no passado. Se o passado fosse bom era presente"

Morando com a tia, ela se concentra nos estudos para passar no Enem e retomar seu projeto de estudar medicina veterinária. Está conhecendo pessoas novas e não tem planos para retornar a Castelo. Ela afirma se lembrar apenas de um dos agressores. A perda de memória também atrapalhou os estudos, o que demanda um esforço maior em algumas matérias, mas ela tem se saído bem.

Os três meninos sobreviventes continuam internados no CEM, cumprindo a pena de três anos de medidas sócio-educativas, pena máxima permitida pelo ECA. Um juiz autorizou que fossem entrevistados, e foi feita essa reportagem. Após um ano de internação, eles ainda negam o crime, mas parecem mais tranquilos.

"Eu pensei que ia morrer aqui dentro (CEM). Tive muito medo. Foi muito difícil no começo, mas não cheguei a discutir com ninguém. Hoje já dá pra ir levando"

O comportamento dos três tem sido bom, e eles afirmam que quando saírem, querem estudar e trabalhar. Mas fazem a ressalva: "só quando sair é que dá pra saber". Quem viver, verá.

Adão Souza, acusado de haver comandado tudo, ainda aguarda julgamento. Ele é um personagem crucial nessa história, pois sua história pessoal permite compreender o recente fenômeno da difusão por cidades do interior antes tranquilas de crimes violento antes exclusivos de cidades grandes. Originalmente, os habitantes do interior serviam apenas de matéria-prima humana para formar a mão-de-obra do crime. Foi o que aconteceu com Adão. Ele nasceu em Castelo do Piauí, mas quando jovem foi para São Paulo, onde envolveu-se com o crime e tornou-se assaltante e traficante.

Em tempos recentes, o índice de criminalidade de alguma metrópoles brasileiras começa pela primeira vez e apresentar ligeira queda. Não sei se isso se deve à maior repressão, ou se, utilizando lógica econômica, o "mercado" do crime começa a ficar saturado. O caso é que alguns marginais da cidade grande estão cogitando mudar-se para lugares menores, e foi isso que fez Adão, retornando a sua cidade natal e ali valendo-se da experiência adquirida como traficante para recrutar jovens delinquentes a fim de formar uma quadrilha. Adão Souza, foi, portanto, o vetor de transmissão. Ele continua negando o crime, mas um fato alvissareiro é que uma das vítimas, Iza Furtado, após um ano começou a se lembrar do rosto de Adão e pode acusá-lo. Foi o que revelou a mãe de Iza em uma entrevista:

Ela contou também que a filha está se recuperando bem, estuda para o Enem e retomou o plano de cursar faculdade de design de moda. Vá em frente, Iza!

Para as três vítimas que sobreviveram, o remédio é o silêncio. O esquecimento cicatrizará as marcas do passado, e elas poderão se dedicar à vida que têm pela frente, como jovens esforçadas e cheias de projetos.

Para quem não quer passar pelo mesmo transe, o remédio é o barulho. Reclamar penas mais severas para os delinquentes e recusar a mistificação que quer jogar a culpa dos estupradores sobre toda a sociedade.

Para Danielly, resta a lembrança. Mas também o exemplo. Soube que se deseja dar seu nome à Lei Nacional do Feminicídio ora em tramitação. Diz o ditado, as pessoas têm medo de morrer porque não fizeram nada a vida toda. Mas se a memória da morte de Danielly contribuir para atiçar consciências no sentido de produzir legislação mais rigorosa contra o crime, então Danielly não viveu em vão, e tampouco terá morrido em vão.

 

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