Cai uma Velha Balela | ||
Lá
por 1978
um livrinho chegou às livrarias, e fez muito sucesso. O título?
Guerra do Paraguai, Genocídio Americano, de JJ Chiavenatto. Vivíamos
os anos da abertura de Geisel, que trazia o fim da censura, e a leitura
deste livro produziu em todos uma sensação de reencontro
com uma verdade havia muito sonegada. A figura solene de El Mariscal
Solano López enfeitava a capa, ao lado de uma mapa da América
do Sul. O primeiro capítulo tinha um título bastante sugestivo:
El Supremo, a Ditadura a Favor do Povo. Apresentava o conflito como uma
guerra instigada pela Inglaterra contra o Paraguai, que para isso valeu-se
do Brasil e da Argentina como seus fantoches. O objetivo era aniquilar
o Paraguai, país sul-americano de características singulares,
que não se curvava a imperialismo britânico, não contraía
dívidas com seus banqueiros, não adquiria seus produtos
manufaturados e estava desenvolvendo um parque industrial próprio.
De quebra, Solano López era apresentado como tirano bondoso que
só oprimia aos latifundiários, mostrava o Paraguai como
um país sem miséria nem escravos, com uma taxa de alfabetização
de 100%, onde não havia criminosos e todos viviam felizes nas Estâncias
de La Patria (fazendas estatais). O Brasil e a Argentina eram definidos
como "dois gigantes anêmicos". O exército brasileiro
era constituído de escravos (39 em cada 40, segundo os cálculos
do autor) e a guerra reduziu-se a um genocídio onde foram mortos
mais de um milhão de paraguaios, quase a totalidade de sua população
masculina.
Pois foi com satisfação que eu li o artigo publicado em Nossa História de novembro, e pude constatar que, 25 anos depois, boa parte destas potocas já está vindo abaixo. Vê-se agora que tudo não passou de uma tentativa de desmoralizar o exército ao final do regime militar, esquecendo-se de que, na verdade, se estava desmoralizando o país inteiro. JJ Chiavenatto é adepto da Teoria da Dependência e seu texto segue a linha de As Veias Abertas da América Latina, de Galeano, sem dúvida o maior compêndio de asneiras já escrito neste continente infeliz. É tão fácil demolir seus argumentos, que chega a ser um exercício saudável. Vamos a eles. Primeiro a definição que Chiavenatto deu ao governo Solano López, a ditadura a favor do povo. Muito bonito. Mas alguma vez já existiu um governo que proclamasse ser contra o povo? Isto, tal como cabeça de bacalhau e enterro de anão, é coisa que ninguém nunca viu. Os relatos de violências, prisões arbitrárias, torturas e realocação forçada de comunidades inteiras foram abundantes durante a ditadura-monarquia dos López (que começou com seu pai, Carlos Antonio). O Paraguai não tinha escravos? Falso. É fato que a escravatura estava em franco declínio nesta época, mas ainda havia alguns. A vida do povo era mesmo farta, se desconhecia a miséria e o índice de alfabetização atingia os 100%? Difícil demonstrar. O Paraguai ficou destruído após o conflito e não sobraram muitos vestígios da sociedade anterior. Mas é difícil acreditar que o Paraguai pudesse ter zero analfabetos em uma época em que as nações mais avançadas, os EUA e a Inglaterra, ainda tinham um respeitável contingente de uns 15% de analfabetos em suas populações. Mais razoável é concluir que o Paraguai meramente encarnava a mesma fantasia que os esquerdistas de hoje nutrem em relação a Cuba: a sociedade ideal é aquela em que todos sabem ler, mas só podem ler o que é aprovado por El Mariscal. Foi a Inglaterra a instigadora do conflito? Peguemos o livro de História. Em 1865, era o Brasil que tinha relações rompidas com a Inglaterra, em razão da Questão Christie. As relações diplomáticas só seriam restabelecidas em setembro de 1865, meses após a eclosão do conflito. Nessa mesma época, o Paraguai tinha boas relações com a Inglaterra, adquiria seus produtos e inclusive utilizava o serviço de seus técnicos para equipar o exército. A única coisa que incomodava aos britânicos era o fato de o Paraguai também ter laços com outras potências rivais, como a França e a Prússia. Mas isso o Brasil também tinha. E ademais, se o Paraguai possuía, de fato, um parque industrial moderno e independente da tecnologia estrangeira, porque não construiu navios capazes de derrotar a frota brasileira na batalha de Riachuelo? Muito pelo contrário, o país mais avançado neste setor era mesmo o Brasil - metade de nossos encouraçados fora construída nos estaleiros do Barão de Mauá em Niterói. O economia paraguaia tinha de fato um perfil singular, baseada na posse estatal da terra ao invés do latifúndio, mas a imagem de um Paraguai industrial e moderno não passa de uma fantasia. Agora vem a farsa maior - a idéia de que o exército brasileiro era constituído por escravos que foram libertados para lutar em lugar de seus senhores. Trata-se de uma manipulação maliciosa dos fatos históricos, amparada no sarcasmo e no preconceito de nossos vizinhos. A origem do equívoco, conforme demonstrado pela matéria de Nossa História, está em se confundir indivíduos de pele escura com ex-escravos. Havendo sido a soldadesca brasileira recrutada, em sua maioria, entre a população pobre, uma boa parte desta era constituída de indivíduos mulatos, caboclos e cafuzos - mas homens livres. Houve de fato um decreto, muito criticado na época, facultando aos proprietários de escravos, se convocados para a guerra, libertar seus escravos e envia-los em seu lugar. Mas o total de ex-escravos libertados nunca passou de 10% do contingente, conforme demonstram análises recentes. Pouco importou. A lorota pegou tão bem, que houve até um ano em que manifestantes de um Movimento Negro quiseram fazer um protesto junto à estátua eqüestre de Caxias no comando militar do leste, acusando-o de transformar os negros em "bucha de canhão". Poucos sabem, ou quiseram saber, que Caxias lamentou a idéia de transformar servos em soldados, e inclusive escreveu ao Ministro da Guerra sobre os "maléficos resultados por meio dos exemplos imorais (...) dados constantemente por homens que não compreendem o que é pátria, sociedade e família, e que se consideram ainda escravos que apenas mudaram de senhor". A imagem do exército de escravos foi também reforçada pela chacota de nossos vizinhos platinos, países onde a presença de afro-americanos é rara, daí ser-lhes impressionante o grande contingente de pretos e mulatos no Brasil, a ponto de gerar a alcunha de "macaquito" comumente empregada para se referir aos brasileiros. Nos desenhos satíricos paraguaios, todos os soldados brasileiros são negros. Mas também são negros os generais e até o imperador - para eles, todos os brasileiros eram negros, e pronto. Mesmo se dispensarmos as estatísticas, um mínimo de raciocínio prova a inviabilidade de um exército onde 39 de cada 40 combatentes seriam ex-escravos. Havia de fato um decreto que permitia ao proprietário enviar um escravo à guerra em seu lugar. Mas qual a porcentagem dos convocados era proprietária de escravos? Certamente que não muitos. Soube-se de cidadãos remediados que até juntaram suas economias e adquiriram um escravo para ir lutar em seu lugar, mas certamente não era grande o número dos que podiam arcar com esta despesa. Além do que, grandes senhores de escravos com certeza dispunham de influência suficiente para escapar ao recrutamento. Outra hipótese seria adquirir os escravos destes senhores, alforria-los e envia-los ao combate, mas a valores de mercado o custo teria sido proibitivo. Saía mais barato recrutar à força um pé-rapado livre. Uma terceira hipótese seria confiscar os escravos de seus possuidores, mas conforme é sabido, estes fazendeiros escravocratas constituíam a base política sobre a qual se sustentava o império. O ministro que propusesse tal sandice seria exonerado no mesmo dia. Não tem jeito, um exército de escravos é inconcebível. Nunca existiu em lugar algum, em época alguma. Mesmo se fosse constituído sabe-se lá por que meios, não teria durado um único dia. O que se pode esperar de um corpo de combatentes constituído em sua totalidade por indivíduos que não tem a mais remota noção de cidadania, nem qualquer apego pela elite dirigente? Eles simplesmente matariam os oficiais e iriam fazer sua vida em outro lugar. Também causou espécie a descrição das crueldades e do maquiavelismo das tropas brasileiras, que segundo denunciou Chiavenatto, chegavam a atirar ao rio cadáveres de doentes de cólera, causando assim uma epidemia e enorme mortandade. Mas raciocinemos mais uma vez. Em um navio repleto, em uma situação de guerra, sem possibilidade, portanto, de dirigir-se a um porto, se morre um tripulante, que outra alternativa existe além de lançar o cadáver à água? Ainda mais se trata-se de uma doença infecciosa transmissível. A menos, é claro, que o autor estivesse insinuando que a marinha brasileira levava como carga cadáveres de soldados mortos de cólera com a finalidade de lança-los ao rio. Não sei se foi assim, mas não me parece nada razoável manusear e transportar cadáveres putrefatos. Provavelmente teria contaminado mais aos brasileiros do que aos paraguaios. Afirmou-se também que as baixas na população paraguaia superaram um milhão, daí a designação de "genocídio". É fato que foram muito elevadas, sobretudo na população civil, em razão de fome e doenças. Mas esta cifra é imaginosa. Um estudo recente feito por uma pesquisadora norte-americana demonstrou que o censo paraguaio de 1850 foi intencionalmente falsificado com o intuito de intimidar aos vizinhos, apontando 1.300 mil habitantes quando na verdade não havia mais de 400 mil... É, parece que finalmente os brasileiros estão adquirindo alguma memória. Basta ver nas bancas o número de periódicos tratando de temas históricos variados, enquanto que um ano atrás não havia quase nenhum. Parabéns à equipe de Nossa História! E olha que, quando surgiu o primeiro número, eu não levei nem um pouco de fé. |
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