O Socialismo Primordial  
 

De tudo o que aprendi na vida, já esqueci muita coisa importante. É uma pena, mas o fato é que nossa memória, embora não se meça em gigabytes, certamente é limitada. Mas o que realmente acho estranho é que certas coisas que aprendi na escola, embora nunca tenham servido para rigorosamente nada, sejam lembrados por mim até hoje com toda a nitidez. É o caso da afirmação de que o socialismo teria sido o primeiro regime da humanidade, milhares de anos atrás, em tempos neolíticos. Ouvi isso pela primeira vez de um professor de História do segundo grau. O livro-texto confirmava, e contava, em um tom que me pareceu lamentoso, como as escavações revelavam que lá pelo ano 6000 AC "cercas, valas, muros, marcam o surgimento da propriedade privada". Não me lembro o nome do livro, mas me lembro da frase direitinho. De outra feita, já na universidade (católica), em uma aula de religião um colega disse qualquer coisa sobre o crime haver surgido no mundo na primeira vez que um troglodita invadiu a caverna do outro, e foi de pronto interpelado pelo professor, um padre espanhol: Mas o primeiro regime da humanidade foi o socialismo!

A crença em um Socialismo Primordial reporta ao mito do bom selvagem, sem dúvida. Mas é gostoso de acreditar. O Estado Natural seria o socialismo, que posteriormente foi pervertido pela ganância humana, sendo recomendável, quem sabe, voltar à bondade primitiva. Mas se no meu tempo o jovem era rebelde e rebelava-se contra os mais velhos, comigo sucede o contrário: o adulto que sou vem contestar as idéias do jovem que fui. Há fundamento na crença de que as populações neolíticas viviam em um saudável e igualitário socialismo?

Bem, não podemos voltar no tempo para verificar, mas podemos observar as populações que vivem no estado neolítico na época atual. Caso dos índios brasileiros. A idéia parece ter fundamento. Os índios (quero dizer, as tribos isoladas) não são donos sequer de suas roupas (que não usam), a floresta é comunal, os roçados e as criações, quando existem, são comunais, e até suas habitações são coletivas. Mas socialismo é uma idéia gestada no século XIX, parece-me um tanto absurdo aplica-la a um contexto pré-histórico de milhares de anos atrás. Não teria sido uma confusão de conceitos, ou excesso de imaginação? Afinal de contas, por que motivo o regime das populações no limiar da Revolução Agrícola seria semelhante ao socialismo da época atual?

Analisando a questão com todo o rigor científico de que sou capaz, o que posso afirmar é: havia socialismo porque não existia capitalismo. E não existia capitalismo porque não havia excedente de produção. Pois quando há, surge a questão do que fazer com ele, e a melhor solução é troca-lo por alguma outra coisa que esteja faltando. Assim nasce o comércio, o mais elementar dos processos capitalistas. Os outros processos mais complexos surgem depois. Mas sem excedente não há capitalismo. Por que motivo, então, não havia excedentes? Porque o homem pré-histórico vivia um dia de cada vez. Se a caçada do dia houvesse sido bem sucedida, o que havia a fazer era a tribo toda comer até empanturrar-se, pois além do fogo não havia método algum de conservar o alimento, que tinha que ser consumido antes de estragar-se. Mesmo depois de surgirem os primeiros roçados e criações de animais, o quadro não era diferente, pois a Revolução Agrícola não se consumou de um dia para o outro. De fato, em seu estágio inicial, os animais e plantas domesticados serviam mais como um estoque estratégico para épocas de escassez, sendo razoável pretender que não pertencessem a um indivíduo específico, de modo que a tribo toda pudesse dispor deles em caso de necessidade. E de resto, o que mais havia? Artefatos toscos - facas, machados, estiletes - feitos de osso e pedra polida, descartáveis e perecíveis, que se pareciam muito pouco com bens duráveis que pudessem ser considerados patrimônio de alguém. A era dos metais ainda estava longe. E além de tudo, as tribos eram seminômades: toda a sua riqueza necessariamente consistia de coisas que pudesse carregar consigo em suas migrações. O mais era deixado ao vencedor e novo dono do pedaço.

Como se sabe, as plantações e os rebanhos foram aumentando de tamanho, exigindo que as populações se fixassem no local para que pudessem cuida-los. Foi necessário também o erguimento de cercados e fossos ao redor, proteção que de início se dirigia contra as incursões de animais silvestres, e não de outros seres humanos. Chamo isso de progresso. Ou o aumento de bens não é progresso? A produção, agora, excedia as necessidades alimentares da comunidade, sendo proveitoso trocar os excedentes por algum item qualquer que não fosse produzido ali. Com o passar do tempo, foi sendo abandonada a idéia de que o ato de produzir destinava-se a suprir as necessidades básicas daqueles que produziam, e estabeleceu-se a convicção de que o trabalho destinava-se a formar estoques de excedentes destinados ao consumo de terceiros, em troca de bens diversos adquiridos por escambo. Isto impôs a modificação da forma como se trabalhava, levando à divisão do trabalho e à especialização. Já não era mais concebível uma comunidade de agricultores e pastores, todos vivendo e trabalhando de forma idêntica: agora havia setores especializados de produtores, consumidores e trabalhadores variados. Nascia, assim, a Economia de Mercado. O sistema antigo era denominado a Economia Natural, na qual o produtor e o consumidor eram a mesma pessoa. Antes, as pessoas comiam o que plantavam e confeccionavam elas próprias tudo o que necessitavam, fosse roupas ou ferramentas. Agora, as pessoas se dedicam a uma ou duas atividades específicas, as quais, por este ou aquele motivo, elas tem condições de desempenhar melhor, e aquilo que não produzem é adquirido no mercado. A conseqüência inevitável dessa nova forma de trabalhar foi um brutal aumento na produção. De fato, uma vez que todos se dediquem a fazer apenas aquilo que podem fazer bem, e sejam dispensados do esforço ingrato de fazer tudo aquilo que tem pouca ou nenhuma capacidade de fazer, toda a cadeia de produção é otimizada.

A Economia de Mercado, como se vê, surgiu a partir das novas necessidades resultantes do progresso (o aumento dos rebanhos) e teve como conseqüência a geração de mais progresso ainda (a otimização da cadeia produtiva). Outra conseqüência foi o aparecimento das disparidades sociais e a desaparição do relativo igualitarismo em que viviam as tribos nômades (o mongol Gengis Khan, quando príncipe, tinha entre seus afazeres de rotina ordenhar cabras e recolher esterco). Isso foi decorrência das complexidades inerentes à nova divisão do trabalho, que criava setores como o senhor e o servo, o patrão e o empregado, o gestor e o produtor, o capataz e o contratado, o meeiro e o arrendatário, o dono e o sócio minoritário, o grande e o pequeno acionista, o trabalhador braçal e o trabalhador intelectual, o chefe e o subordinado, cada uma dessas funções gerando uma renda grandemente variável conforme as cotações do mercado específico: mercado de produtos agrícolas, mercado de ações, mercado de trabalho, etc. Havia também o fator sorte, a riqueza podia ser acumulada ou perdida. Nesse quadro, foi inevitável o surgimento de ricos e pobres. Mas embora desiguais, as comunidades sedentárias onde se praticava a Economia de Mercado eram muitíssimo mais ricas que as tribos que praticavam a Economia Natural, a ponto de ter ocorrido uma enorme explosão demográfica no sexto milênio antes de Cristo, época do final da Revolução Agrícola, quando se formaram as primeiras comunidades sedentárias. A produção de alimentos aumentou muito, possibilitando o aumento da população, que nos milênios anteriores não passava de pequenos bandos nômades vagando aqui e ali, todos vivendo no igualitarismo da pobreza, mas morrendo em massa durante os períodos de escassez, como é regra ocorrer com quem não tem excedentes de produção nem celeiros para armazena-los. Durante toda a Idade Antiga, o mundo consistiu de uns poucos núcleos civilizados cercados de populações nômades, que vagavam ao redor em busca de uma oportunidade de invasão, pois era lá, nas cidades, que se encontrava o que valia a pena ser pilhado.

Infelizmente, esse quadro não está restrito aos livros de História Antiga. No século XXI ainda existem populações nômades, comunidades sem agricultura, gente que passa fome e gente que vive à margem da Economia de Mercado. Com um pouco de capacidade de observação, pode-se perceber um elo de ligação entre cada uma destas situações. Vejamos o caso da fome. Passa-se fome, por exemplo, em regiões onde a população vive da agricultura e o clima ou o solo são ruins, como é o caso do nordeste do Brasil e de vastas regiões da África. É tentador estabelecer uma causa natural para essa situação de miséria e fome: é a seca, é a praga, é o desmatamento, é a queimada. Mas por que estranha coincidência essas pragas naturais só acontecem no Terceiro Mundo? Convém lembrar que a Califórnia é tão árida quanto o nordeste brasileiro, o Japão é uma ilha montanhosa e cheia de vulcões, e a Islândia tem 93% do solo rochoso e improdutivo. Não há dúvida que as secas e as pragas ocorrem também no mundo rico. Mas por que lá elas não causam dano, e nas regiões pobres são devastadoras?

Para responder essa questão é preciso notar que as regiões pobres, além de pobres, tem uma outra característica: a persistência da já referida Economia Natural, aquela em que o produtor e o consumidor são a mesma pessoa. No nordeste brasileiro e na África, é comum se viver da agricultura de subsistência, ou se produzir para pequenos mercados puramente locais. Qual é a diferença quando a seca ocorre em uma região onde há Economia de Mercado, e quando ocorre em um lugar onde impera a Economia Natural? Onde há Economia de Mercado circula o dinheiro, o que vale dizer, o alimento que foi perdido pode ser adquirido pelo comércio. Como se trata de uma importação, ele custará mais caro do que custaria se não se houvesse perdido, e uma maneira de interpretar isso é: para adquirir o alimento com esse preço majorado, as pessoas estarão deixando de adquirir alguma outra coisa. É precisamente neste ponto que reside toda a vantagem da Economia de Mercado: ela possibilita uma troca. Ao invés de privar-se de alimento, o indivíduo se privará de alguma outra coisa que lhe é menos útil no momento. Semelhante possibilidade não existe sob a Economia Natural. Lá, uma seca, uma praga, é um fato cabal e incontornável: sem colheita, sem comida na mesa. Podemos, com segurança, concluir que a verdadeira causa da fome no mundo é a ausência da Economia de Mercado.

Mas há os que pensam que a causa da fome no Brasil é a ganância dos proprietários de terra, e propugnam uma reforma agrária profunda, com o propósito declarado de dar ao "faminto" um lote de terra para tirar seu sustento. Entretanto, a ausência de uma Economia de Mercado afeta igualmente latifúndios e assentamentos, e mesmo que, em um esforço de imaginação, pudéssemos conceber o governo concedendo subsídios, sementes, fertilizantes, maquinário, construindo vias de escoamento e fornecendo transporte, há uma coisa que o governo não é capaz de criar: o mercado que irá absorver aquilo que os assentados conseguirem produzir. E para piorar, o Mercado não é nacional, mas mundial. Refiro-me ao Mercado com M maiúsculo, não aos pequenos mercados que existem em qualquer cidadezinha. E o fato, que está a vista de todos, é que boa parte dos assentados recua a um estágio de Economia Natural, tendo que plantar para comer, sem ter quem compre sua produção. Aos poucos, o problema social dos Sem Terra vai sendo substituídos pelo problema dos Com Terra - os indivíduos que foram assentados, mas que não conseguem produzir, e dedicam-se à agitação revolucionária. Esquecem-se de que ter a posse da terra só é proveitoso em um regime de Economia de Mercado, onde ele possa produzir, hipotecar, vender, arrendar o lote, enfim, dele tirar dinheiro e não mandiocas. Se o regime é o de agricultura de subsistência, tanto faz o lote pertencer ao assentado ou ao fazendeiro. Afinal, nossos fazendeiros sempre permitiram que seus colonos plantassem culturas de subsistência, pois se morressem de fome não haveria quem trabalhasse em suas terras... A Reforma Agrária, tão decantada como modernizante, nos moldes como é feita, é arcaizante, tendo o efeito de recriar um universo rural primitivo e desligado do Mercado. Nota-se que projetos de Reforma Agrária há muito saíram da agenda dos países mais desenvolvidos do mundo, onde elas só foram implementadas em épocas em que o campo era capaz de absorver mão-de-obra. Lá como aqui, houve grande êxodo rural resultante da mecanização da agricultura, a diferença foi que lá os migrantes foram inteiramente absorvidos por um modo de produção urbano, e aqui essa absorção foi parcial, dando origem à multidão de "excluídos" - os Sem Terra, que tem a ilusão de voltar ao campo, e os favelados urbanos, que não tem ilusão nenhuma, iludidos somos nós.

Curiosamente, entre nós, a idéia de uma Reforma Urbana (esta sim extremamente necessária) é pouco usual e muito menos popular que a Reforma Agrária. Não consigo deixar de especular que o motivo desta alta popularidade, sobretudo entre os universitários e a classe média urbana, seja a expectativa de que ela fará os pobres e favelados darem as costas e voltar correndo ao campo, deixando as cidades limpas de sua presença. Já a Reforma Urbana é menos popular, porque implica que os pobres continuarão vivendo nas cidades. Ou talvez, no fundo, tudo não passe de um projeto de reeditar o Socialismo Primordial, desejo este inculcado em nosso subconsciente pelas aulas dos padres professores... Fazer uma nova Canudos, aquele reduto de fanáticos religiosos que aboliram a propriedade privada, e por este motivo até hoje querem nos fazer crer que seu projeto era, na verdade, uma revolução social. Fossem quais fossem suas reais intenções, a abolição da propriedade privada não melhorou em nada suas condições materiais. Tanto não melhorou, que a colina onde se erguia a maior parte do arraial - chamada Colina da Favela - era atulhada de casebres tão precários, que até hoje o termo "favela" é paradigma de miséria.

 

  Início

adidas superstar adidas stan smith adidas stan smith zwart adidas superstar dames adidas yeezy adidas yeezy boost 350 adidas superstar canada adidas nmd adidas superstar adidas nmd canada adidas stan smith adidas superstar adidas stan smith dam adidas superstar dam