Rocinha Outra Vez  
 

Mais uma vez a cidade é abalada pela guerra entre os traficantes. Só varia o morro. A bola da vez foi a Rocinha, que andava meio tranqüila há algum tempo. O último imbroglio sério que eu me lembro ocorreu há mais de 15 anos atrás, quando houve uma sangrenta disputa entre facções que culminou com o acordo celebrado entre os líderes Buzunga, Naldo e Cabeludo. Uma foto mostrou o trio no alto de um mirante, dando tiros para o alto para celebrar o fechamento do acordo. Desconfio que foi por causa desta foto que, menos de três meses após, os três traficantes já se encontravam devidamente fuzilados.

Mas a discussão não termina. Antes mesmo que alguém consiga balbuciar uma sugestão qualquer, já se levantam vozes para reiterar que aquilo é inútil, que reprimir não adianta, que os efeitos só cessam quando cessam as causas. A razão do crime é a ausência das instituições do Poder Público nas favelas - escola, emprego, posto médico, polícia. O crime seria conseqüência da ausência da cidadania; cumpre ao estado leva-la aos favelados, ao invés de inutilmente combater os efeitos sem atacar as causas.

Esta tese segundo a qual o crime não deriva de uma deformação de caráter, mas de uma deformação social, é uma tese tipicamente iluminista. Tem sua parcela de verdade, mas também é velha de dois séculos. Eu questiono se ela efetivamente se aplica às complexidades da época atual. Em primeiro lugar, qual é a verdadeira relação entre miséria e crime? Entre ausência de escolaridade e delinqüência? Entre desemprego e furtos?

Ninguém necessita ser um gênio para perceber que os países mais pobres tendem a ter uma criminalidade maior que a dos países ricos, ou que os jovens que não freqüentam escola são mais susceptíveis a cometer crimes do que os jovens que estão na escola. Mas também ninguém necessita ir à escola para saber que não se deve roubar e matar. Por trás da aparente coerência destes argumentos, há um mundo de perguntas não respondidas: Por que motivo, por exemplo, os EUA tem uma taxa de homicídios dez vezes maior que a da Espanha, país que tem 1/3 de seu PIB per capita? Por que motivo a máfia surgiu na Sicília, mas não no Algarve, em Portugal, onde o quadro social era semelhante? Por que motivo o país com a mais baixa taxa de homicídios do mundo (zero) é o Principado de Sikkim, paupérrimo paiseco de camponeses encravado na cordilheira do Himalaia? E sobretudo, por que motivo alguns dos países de mais baixa taxa de crimes do mundo tem, concomitantemente, legislações bastante severas, que prevêem inclusive a pena de morte? Lembra a história de Chapéuzinho Vermelho: "mas vovó, para que esses dentes tão grandes?"

O buraco, decididamente, é mais embaixo. O crime é fenômeno complexo, e para erradica-lo não basta uma boa legislação social, se fosse assim os países ricos já teriam fechado as suas prisões. Mas gostamos de atribuir o crime à pressão irresistível de uma carência material extrema. Isto é prático: ao mesmo tempo que exime de culpa o criminoso, vitimiza-o. A culpa é daquele "outro" - o governo, o rico - supostamente culpado pela miséria do infeliz. Infelizmente para os simplistas, nem todo crime é motivado por uma carência material. Se fosse assim, todo servente de pedreiro seria um ladrão, e nenhum político seria corrupto. Além disso, a substituição de um julgamento moral por um julgamento "social" surte o efeito de remover a culpa dos faltosos ao preço de lança-la sobre os inocentes. Quem afirma ser compreensível e desculpável que um servente de pedreiro cometa crimes, está atirando sobre todos os serventes de pedreiro a pecha de ladrão em potencial. Não sou um servente de pedreiro, mas se fosse, não gostaria de ouvir isso. O fato é que não basta remover as causas para cessarem os efeitos. As causas sociais e psicológicas do crime não podem ser, sequer, conhecidas com exatidão, muito menos eliminadas. Antes de mais nada, é necessário admitir duas verdades:

1) O crime, no Brasil, é um problema sem solução; e

2) O fato de não haver solução não é desculpa para não se fazer nada.

A própria idéia de "solução" é cartesiana e imprópria para um problema crônico. Se a questão da criminalidade não foi solucionada em nenhum lugar do mundo, certamente que não o será aqui. Mas por força e obra de doutrinamentos recebidos no passado, estamos imbuídos da crença de que a eliminação das causa remotas do crime se fará mediante "obras sociais" nas favelas. Na prática, essa política só resulta em tornar cada vez mais promíscuas as relações entre a autoridade política e os chefes de quadrilhas, com a conseqüente desmoralização destes e a legitimação daqueles como genuínos representantes de suas comunidades. Como se sabe, os grandes traficantes exercem total controle sobre seus territórios, e não admitirão ali nenhuma obra, "social" ou não, que não seja de seu interesse. A realização dessas obras só é possível após complicada negociação, via de regra bastante lucrativa para ambas as partes. A utilidade das obras também é discutível. Afirma-se que a razão da hegemonia dos bandidos seria a ausência das instituições do poder público nas favelas, e os bandidos estão lá para suprir essa carência com o seu assistencialismo. Mas confrontemos teoria e fato. Essa carência é particularmente aguda em distantes favelas da periferia, onde não há nem esgoto, e às vezes, nem bica d'água. Mas é nessas favelas que o crime organizado é mais poderoso? Falso. Nesses locais distantes, a organização criminal ainda é incipiente, e predominam pequenos marginais. As poderosas quadrilhas de traficantes se encontram nas favelas antigas encravadas no centro da cidade, onde, bem ou mal, há proximidade de tudo: escola, hospital, polícia, comércio, ponto de ônibus, locais de emprego. Como se pode, então, afirmar que o banditismo prospera na ausência do poder público? Houve um ligeiro engano no enunciado desta tese. A falha do estado não foi negar aos favelados as instituições, mas sim permitir que as instituições existentes se desmoralizassem. Enfim, permitir que os traficantes ordenassem o fechamento de escolas e comércio, corrompessem a polícia, invadissem os hospitais, etc. etc. Ofertar mais "instituições" aos favelados é dar mais carne à fera. Pergunto-me se não seria mais proveitoso promover o crescimento econômico para que o favelado ganhasse um pouquinho mais e pudesse ir construir sua casinha em algum lugar que não seja uma favela.

Se conseguirmos nos livrar da quimera de remover as "causas sociais" da criminalidade, e assumirmos de vez que o problema é policial-militar, bem poderíamos nos mirar no caso do confronto Israel X Palestinos, que contitue um cenário bastante semelhante ao nosso, ao menos em termos da forma como é feita o enfrentamento. Os acampamentos palestinos são semelhantes às nossas favelas - labirintos de casas e ruelas - e são igualmente dominados por um contrapoder belicoso e organizado (aqui os traficantes, lá os terroristas). Quando o exército israelense incursiona por estes territórios, o faz seguindo uma estratégia há muito estabelecida: primeiro um grupamento cerca a área, e não deixa ninguém entrar ou sair; enquanto isso, outro grupamento vai dando batidas casa a casa. Se encontram resistência, botam tudo abaixo - afinal, seus adversários não estão armados de pistolas, mas de armamento pesado, o que tipifica uma situação de guerra. Esta tática funciona? Não muito. Aqueles labirintos são cheios de passagens secretas e rotas de fuga, assim como as nossas favelas, e a maioria dos terroristas escapa. Mas deixam para trás o armamento pesado, a munição, as bases de operação, tudo o que não podem carregar. Essa tática derrota os terroristas? É óbvio que não. Mas causa um duro baque, do qual eles custam a se recuperar, e desta forma o estado de Israel vai vivendo. Poderíamos fazer aqui semelhante operação "pente fino": o exército cerca o morro, e a polícia varre casa a casa. A maioria dos bandidos escapará, mas deixarão para trás o estoque de drogas, a munição, o armamento pesado. Esta operação pode ser feita, aleatoriamente, nos principais morros, sempre de surpresa - é ilusório manter um contingente em um só morro em caráter permanente, pois a conseqüência inevitável a longo prazo será a corrupção dos soldados pelos traficantes. Isso resolverá o problema? É claro que não. Como já foi dito, o problema não tem solução. Mas a cada "pente fino", as quadrilhas dominantes sofrerão duro baque, os bandos rivais se aproveitarão disso para invadir, e a disputa freqüente daí resultante enfraquecerá consideravelmente as quadrilhas.

Se isso fosse seriamente proposto, haveria um berreiro de protestos. Então os nossos favelados são "palestinos", aquele povo oprimido pelos judeus? Se os palestinos tem mesmo direito à terra e são realmente oprimidos, eu não pretendo discutir aqui. O que eu não concordo em absoluto é quanto à suposta analogia entre o favelado e o palestino. As favelas, no Brasil, não constituem guetos onde vive uma minoria, um "outro povo" cultural e etnicamente distinto; o favelado é tão brasileiro quanto o "povo do asfalto", exceto que é pobre e vive em lugar dominado por quadrilhas de bandidos. Mas forçoso é reconhecer, eles procuram afirmar uma identidade própria, cultivam uma subcultura de gueto, e sofrem bastante nas mãos da polícia. Quem quiser conferir, pode levar rolos e rolos de fita, passar o dia todo subindo morro após morro, entrevistando os moradores, e ouvirá sempre a mesma queixa: a polícia é que é ruim; o bandido não incomoda, contanto que não se mexa com ele, e até ajuda quando pode. Você ouvirá esta sentença centenas de vezes. Quem quer que você aborde, repetirá sempre as mesmas palavras. É claro que ele dirá isso. Não pode dizer outra coisa. O bandido o conhece, sabe onde ele mora, cruza com ele todos os dias. No lugar dele, você abriria a boca?

Foi a repetição desta cantilena o que mais se ouviu, quando foram entrevistados os chorosos acompanhantes do enterro do chefão da Rocinha, morto pela polícia. Uma impressão ficou: o traficante era um santo. Não oprimia ninguém e mantinha a paz e a ordem. Mas o outro, o rival que tentou invadir e provocou toda aquela confusão, este foi retratado como belzebu de casco e chifres. Ora viva, pensei, então nem todo bandido é santo, quem diria! Alguns ainda cultivam o hábito ancestral da maldade... Mas por que estranha coincidência o bandido malvado é sempre o de fora, aquele que está invadindo, enquanto o bandido bonzinho é sempre aquele cujo bando mantém os habitantes da favela sob a mira de suas armas? Digam o que disserem, ainda acho que a polícia, por pior que seja, é muito melhor que o bandido. Eu entendo que o favelado não deseje ver a polícia invadindo a sua casa. Digo isso de posição cômoda; eu não moro em favela e sei que a polícia nunca vai invadir minha casa. Mas minha casa pode pegar fogo. Eu sei que os bombeiros vão chegar arrombando portas, quebrando vidraças, molhando os móveis, fazendo uma bagunça dos diabos.

Mas nem por isso eu deixaria de chamar os bombeiros.

 

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