Ressentimentos Luso-Brasileiros
 
 

Não adianta disfarçar. Repetem a toda hora o chavão dos "países irmãos" - como se todos os irmãos fossem obrigatoriamente amigos - mas o fato é que poucos povos tem um histórico tão longo e notório de ressentimentos mútuos. Isso é surpreendente, em se lembrando que o domínio colonial português, embora opressivo, não era muito diferente do de outras potências européias, e o nosso rompimento com a antiga metrópole foi relativamente pouco traumático, com muito menos luta, por exemplo, do que a guerra de independência norte-americana, e os americanos de hoje em dia não tem nem de longe o mesmo ressentimento em relação a seus antigos dominadores britânicos. Mas por aqui não há intelectual que não repita, em alto e bom tom, que a causa remota de todos os nossos problemas atuais é herança do nefasto colonialismo lusitano, espoliador de riquezas, matador de índios e escravizador de africanos.

Até que faz um certo sentido. As desvantagens do tipo de dominação empreendida pelos ibéricos são reconhecidas mundialmente, especialmente se este é comparado ao colonialismo britânico. Mas o sentido se vai quando a questão é colocada em números: 503 anos de História, 322 de domínio português, 181 de vida independente. Se já passamos mais de 1/3 de nossa História livre dos portugueses, e ainda não conseguimos reconstruir o que eles supostamente destruíram, sem dúvida que algo está errado nesta premissa. Como é possível que, tantos anos depois, ainda se queira acertar alguma conta com a antiga metrópole? Esta presunção ridícula é objeto de justa irritação da parte de alguns portugueses, como o escritor Miguel de Souza Tavares, que escreveu esta crônica para o jornal O Público por ocasião dos festejos dos 500 anos, da qual reproduzo alguns trechos abaixo:

"Simplificando, a história terá sido assim: até 1820, Portugal explorou, saqueou, matou, destruiu. Do "grito de Ipiranga" para cá, "o povo brasileiro" (do qual, estranhamente desaparecera, com a partida de D. Pedro IV para Portugal, qualquer cromossoma português), tem-se esforçado para das ruínas erguer um país."

"De tão absurda, esta versão histórica tem qualquer coisa de patológico. O Brasil foi descoberto há 500 anos, é independente há quase 200: estamos a falar de uma eternidade, em termos de construção de um país, para mais tão rico como o Brasil. Ocorre lembrar que, no mesmo ano em que a América foi descoberta se pôs fim à ocupação árabe da Península. Lembraria a algum espanhol ou português, mesmo que grosseiramente ignorante, lastimar-se hoje da herança dos mouros?"

Como mostra Miguel de Souza, não é preciso grande esforço para demonstrar o disparate que é esta tese. "Patológico" foi o termo que empregou. Quanto a mim, o que vejo é um traço de infantilidade, de falta de hombridade de nossa parte, por nos esquivarmos de nossas responsabilidades e atirar sobre os outros a culpa, e sobretudo de hipocrisia: exceto por uns poucos índios, todo o resto da população é descendente dos dominadores, e portanto, herdeira e usufrutuária de tudo de bom e de mau que nos foi legado por eles:

"(...) Compreendo que os índios brasileiros não estejam entusiasmados com a perspectiva de verem comemorada a sua "descoberta". Compreendo pior que vagamente crioulos, como Caetano Veloso, se juntem ao protesto. Mas o que não consigo acreditar é que haja um só ser inteligente no Brasil que reduza o significado do acto científico, histórico e cultural da descoberta do Brasil à matança de índios ou ao saque do ouro de Minas."

Disso gostemos ou não, nossa matriz européia é portuguesa. A matriz apenas, pois de lá para cá tivemos tantos outros componentes étnicos e culturais, que certamente a herança portuguesa não pode ser unicamente responsabilizada por qualquer característica boa ou má que tenhamos nos dias de hoje, como bem colocou o cronista:

"(...) porque, por maior que seja a tal nostalgia imperial, não acredito e não sinto que o vírus permaneça vivo quase 200 anos. Depois, porque, tendo feito a minha descoberta do Brasil, como quase todos os portugueses, pelo eixo Rio-São Paulo, não senti que naquela fantástica civilização de cidades e praias houvesse, fosse a que nível fosse, o mais leve vestígio da nossa marca. Pelo contrário, sempre achei que o Brasil é um país à parte, não apenas totalmente diferente de Portugal, como de qualquer outro país que eu conheça."

Deveriam os americanos odiar seus ancestrais ingleses apenas porque eles cobravam impostos escorchantes e não fizeram o obséquio de ir embora sem luta? Deveriam os ingleses odiar seus ancestrais romanos, anglos, saxões e vikings apenas porque eles chegaram em sua ilha matando, pilhando e estuprando? Qualquer um que já tenha assistido a uma aula de História no colégio sabe que era desta forma que todos os conquistadores da antiguidade agiam. Mas, ao se aceitar e usufruir da herança cultural do conquistador, a conquista torna-se um episódio do passado, e ao fim de algum tempo já não há mais dominador nem dominado, mas um novo povo originado de ambos. A persistência do sentimento anti-lusitano entre nós só pode ter raízes psicológicas. Diga-se de passagem, temos em comum com eles a falta de auto-estima. Entre um passado glorioso que não volta mais, e um futuro promissor que não chega nunca, portugueses e brasileiros desenvolveram uma considerável bagagem de frustrações e recalques ao longo dos anos. O escritor Eça de Queirós tornou-se conhecido por verbalizar através de seus personagens a péssima imagem que seus conterrâneos nutriam a respeito de si próprios. Quanto a nós, disfarçamos melhor, mas nossa auto-estima também é baixa. O dramaturgo Nélson Rodrigues a definia como "Complexo de Vira-lata", e chamou a atenção para a necessidade que temos de nos orgulhar dos sucessos no esporte como forma de compensação. Comparando a inesperada derrota no mundial de 1950, em pleno Maracanã, com a vitória obtida na Suécia em 1958, ele atribuiu o insucesso à falta de hombridade dos jogadores que se deixaram intimidar:

"(...) no meu tempo era pior. Não podia passar a carrocinha que todos se escondiam, com medo de serem levados juntos. (...) Por que o Uruguai nos venceu no Maracanã, em 1950? Porque todos viram Obdúlio Varela, capitão uruguaio, a berrar com todos a plenos pulmões. Ele nos tratou aos berros, como se cachorros fôssemos."

O caso de Portugal tem um agravante: a comparação. A Europa é bem ali, e quase todos os vizinhos são muito mais bem-sucedidos economicamente. Já os vizinhos do Brasil tem um nível sócio-econômico similar ao nosso. Como somos maiores em território do que todos eles, dá até para sentir um vago sentimento de superioridade. Na verdade, eu defino o sentimento brasileiro como algo esquizofrênico: é um complexo ao mesmo tempo de superioridade e de inferioridade. De superioridade, quando lembramos a vastidão de nosso território, a imensidão dos recursos, e o destino grandioso que julgamos que virá como conseqüência disto; de inferioridade, quando constatamos que esse destino grandioso não chega, e tudo aquilo que conseguimos nos parece irremediavelmente aquém do que julgamos ser "nossa potencialidade". O sentimento português também é confuso: há aqueles que contemplam a vastidão dos domínios que o império português um dia possuiu, e sentem nostalgia e orgulho de haver Portugal, país tão minúsculo, conquistado e mantido territórios tão extensos. De fato, jamais houve na História uma metrópole tão pequena com domínios tão vastos. Mas esta mesma relação pequenez-vastidão é motivo de apreensão para outros, que temem que Portugal possa vir a ser submergido por uma avassaladora invasão, humana e cultural, da parte deste universo ultramarino desmesuradamente extenso. Este temor é agravado por já ter havido um procedente: a época da vinda da família real ao Brasil, quando o colonizador literalmente virou colonizado.

Tendo sido o Brasil fundado e colonizado por portugueses, como se explica que, nos dias de hoje, brasileiros e portugueses sejam tão diferentes?

Se não nos retivermos no aspecto étnico, mas considerarmos o aspecto estritamente cultural, veremos que a presença portuguesa no Brasil não é tão grande assim. Há uma distinção importante a fazer: os povoadores lusos que chegaram antes da independência, e aqueles que chegaram após a independência. Os primeiros eram reinóis, os segundos eram imigrantes. O imigrante é o estrangeiro que chega para viver, trabalhar e constituir família em sua nova terra; já o reinol considerava estrangeiro aos nativos, e não a si próprio - e estava certo, pois não havia ainda uma "cidadania brasileira", mas apenas uma cidadania portuguesa, que somente os reinóis possuíam plenamente (para os colonos havia diversas restrições). Os povoadores vinham por vários motivos - eram degredados, aventureiros, membros do governo, membros do clero, donatários, camponeses - mas não vinham com o intuito de ter uma forma de vida semelhante à que tinham em Portugal, pois isto era vedado por lei. Era proibido plantar oliveiras, videiras, ou produzir qualquer produto que fizesse concorrência à metrópole. O impacto disto nos costumes foi considerável, fato que pode ser entendido se lembrarmos que, naqueles tempos em que pessoas comuns do povo não freqüentavam escolas e a educação formal não tinha uso algum para os trabalhadores, a transmissão da cultura se fazia sobretudo pelo ensino às novas gerações de um ofício, o mesmo de seus pais e avós. Ao se proibir o povoador de viver da mesma forma como viveram seus ancestrais, na prática impunha-se uma descontinuidade cultural. Ao português era proibido ser português, ele tinha que reinventar-se, tornar-se alguma outra coisa. Com freqüência se tornava minerador, atividade sem nenhuma tradição em Portugal, e por isso mesmo feita de forma primitiva (os garimpeiros desconheciam o uso do mercúrio, e só apanhavam as pepitas visíveis, desperdiçando o ouro que se encontrava pulverizado e misturado à terra).

Já o português-imigrante, chegado após a independência, mantinha uma identidade cultural bem mais distinta. Na verdade, é ele o único português "verdadeiro", pois em cima dele, este modesto imigrante, foi calcada toda a imagem folclórica que o brasileiro até hoje faz do português. No cômputo geral, entretanto, ele foi apenas um entre vários grupos de imigrantes de diversas nacionalidades, e chegou em uma época em que os povos brasileiros e português já estavam nitidamente diferenciados. O elemento português não veio para dar o tom dominante, mas para ser um componente a mais em um país multicultural.

DAS GARRAFADAS ÀS ALFINETADAS

É certo que, tendo sido colônia de uma monarquia absolutista, e havendo declarado sua independência unilateralmente, seria milagre se esta ruptura não deixasse algumas cicatrizes. E de fato, durante todo o primeiro império e parte da regência, houve marcada polarização entre o "partido português", composto por indivíduos que tinham ligações com a antiga administração colonial e que eram beneficiados pelo imperador português de nascimento, e o nativista "partido brasileiro". As lutas políticas com freqüência resultavam em assassinatos políticos como o do jornalista Líbero Badaró, morto certamente a mando de portugueses. Em 1828 houve um gigantesco tumulto no Rio de Janeiro, opondo brasileiros e portugueses, conhecido como "A Noite das Garrafadas", que deixou largo saldo de mortos e feridos. Durante as constantes rebeliões nas províncias, era freqüente que cidadãos portugueses (conhecidos como "marinheiros pés-de-chumbo") fossem agredidos e linchados nas ruas - e isto aconteceu até meados do século 19. Mas com o tempo, a volta de Pedro I a Portugal, a chegada de levas cada vez maiores de imigrantes, trazendo o conseqüente fortalecimento dos laços familiares e comerciais entre portugueses e brasileiros, cessou esta hostilidade ostensiva. Mas não o ressentimento. Este iria se manifestar, daí por diante, na forma de um mútuo desdém, feito de comentários sarcásticos entre os letrados, e de piadas contadas pelo povo. Ironicamente, tanto as piadas de português quanto as de brasileiro tem a mesma origem nas anedotas regionalistas portuguesas. As alfinetadas substituíram as garrafadas, mas na época, o perfil de ambas as sociedades era tão análogo, as mazelas lá e cá eram tão parecidas, que nenhuma arrogância intelectual se sustentava por muito tempo sem cair na máxima do roto a falar do rasgado. Eça de Queirós, no início da carreira, escreveu uma crônica comparando seus compatriotas com brasileiros que ele conheceu em uma viagem ao Nordeste. O texto, cheio de comentários racistas e chistes desdenhosos ("Nós somos modestamente ridiculitos, eles são à larga ridiculões") gerou protestos e causou até agressões a uns portugueses em Olinda da parte de uma turba enfurecida. Mas Eça, que precisava entrar no mercado brasileiro, não tardou a eliminar este trecho das edições posteriores de seu livro.

Passadas muitas décadas, observa-se em Portugal a tendência de se distanciar das antigas colônias, e de integrar-se cada vez mais à Comunidade Européia. A influência brasileira em Portugal ainda é grande, mas se faz sobretudo no campo do entretenimento - a música, as novelas, os jogadores de futebol. Nenhum português nos dias de hoje tem qualquer motivo para nutrir ressentimentos pós-coloniais em relação aos brasileiros, mas nós continuamos a considerá-los a matriz de todos os nossos males. Não posso atribuir isso, senão, à persistência do pensamento marxista entre nossos intelectuais, e sua pretensão de explicar tudo pelo viés maniqueísta - opressor X oprimido, burguesia X povo, e é claro, imperialista X colonizado. Aí que entra Portugal, quando não é os EUA. Azar o nosso. Como comentou Miguel de Souza,

"(...) Se o Brasil entende que Portugal é a mancha na sua História, paciência. É como se nós nos lembrássemos de repudiar a nossa herança romana ou árabe: o ridículo seria só nosso."

 

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