O Papel da Religião | ||
A religião anda em baixa ultimamente. Tomando-se o horizonte histórico dos últimos três séculos, vemos que sua importância declinou na maior parte do mundo, seu espaço encolheu e suas atribuições foram reduzidas. Tomando-se uma perspectiva de história recente, das últimas décadas, observamos altos e baixos. Vez por outra a religião é reciclada, novos cultos entram na moda, e os velhos cultos procuram ocupar novos espaços que compensem os espaços que foram perdidos. Nos últimos tempos, entretanto, a tendência de baixa é pronunciada. Em todo o mundo ocidental diminuíram as ordenações e a freqüência às igrejas. Os únicos cultos que florescem são aqueles acusados de explorar a boa-fé e a carteira dos devotos. No oriente, o islamismo é cada vez mais vinculado ao extremismo político. O papa mal consegue erguer os olhos, e para cúmulo dos cúmulos, o novo papa pode vir do Brasil. Triste fim. Diante de tal quadro de infortúnio, só nos resta concluir que esta é uma ótima oportunidade para refletirmos acerca do papel e da importância da religião na história humana. Na época atual, a maioria dos intelectuais tidos como "esclarecidos" vê a religião como uma crença íntima que, justamente por ser uma crença íntima, deve permanecer no íntimo dos pensamentos e dali não sair. Não deve invadir os outros ramos do conhecimento, muito menos a vida quotidiana, e sobretudo, não imiscuir-se na política. Fundamentam essa opinião em diversos exemplos desastrosos ocorridos no passado de interferência da religião católica em assuntos não-religiosos. Ao imiscuir-se na Ciência, retardou o progresso científico nos países católicos (lembram-se de Galileu?) Ao imiscuir-se na política, criou uma casta poderosa e tentacular, de que os reis custaram a desvencilhar-se (o Marquês de Pombal penou para livrar-se dos jesuítas). Ao imiscuir-se nas guerras e conflitos, aumentou-lhes a violência por impregna-los de fanatismo. E pior do que isso tudo, criou o Tribunal da Inquisição. Como minhas opiniões nunca batem com as da maioria, eu concordo com quase tudo o que citei acima, menos com aquilo que é visto como o mais grave - a criação do Tribunal da Inquisição. Não lanço esta culpa sobre a Igreja. Em um tempo em que o estado não dispunha de aparelho judiciário próprio, era natural que os reis estivessem ansiosos para entregar esta função à Igreja, a única instituição "globalizada" da época. Não foi a Igreja a inventora das horrendas torturas infligidas aos hereges, elas eram práticas perfeitamente comuns na época, e ninguém estranhava o seu emprego. Nesse campo, a única novidade introduzida pela Igreja foi a criação de um regulamento especificando quais torturas podiam ser praticadas, e qual o tempo máximo que elas podiam durar. Mas a associação da Igreja com torturas até hoje horroriza aqueles que se acostumaram a ver a Igreja como uma instituição fora do tempo, que devesse aplicar no passado a moral do presente. Quanto à interferência da religião na política e na ciência, concordo plenamente. Foi um desastre em todas as épocas, a ponto ser a extinção dessa influência uma extraordinária conquista do Mundo Ocidental, sem dúvida associada ao progresso que se verificou nessa parte do globo. Mas toda praga tende a voltar periodicamente, e este fenômeno, após longo tempo de declínio, está em ascensão no mundo atual. O século XX viu o ressurgimento do governo teocrático no Mundo Árabe, coisa que há menos de 50 anos atrás se pensava estar extinta. O terrorismo é cada vez mais islâmico. E por aqui temos os padres militantes, cujas Comunidades Eclesiais de Base pariram o MST. Mas o fenômeno aqui é menos grave do que no oriente, posto que aqui a tendência é os padres militantes se tornarem cada vez mais políticos e menos padres. O discurso religioso, em um primeiro momento, é misturado ao discurso político, mas a longo prazo termina totalmente substituído por este. Menos mal. No fundamentalismo islâmico, é o discurso religioso que invade o discurso político, e termina por esvazia-lo e substitui-lo completamente, introduzindo na luta política um fanatismo que por estas bandas, até o momento, não existe. Mas por outro lado, a politização dos sacerdotes tem sido uma das causas do encolhimento do rebanho dos católicos, pois os seguidores ansiosos por valores místicos e espirituais, não os encontrando no discurso rançoso dos militantes, vão busca-lo no discurso teatral dos pastores, e aderem em massa aos cultos evangélicos. Que, por sua vez, também se imiscuem em política (já temos até uma Bancada Evangélica, mesmo sem ter um Bible Belt). Mas será a influência da religião invariavelmente deletéria? É difícil falar de religião sem paixão (assim como falar de futebol) mas em se observando a História com imparcialidade, a resposta é um categórico não. Acaso não tem valor nenhum o fato de o cristianismo, subindo ao poder, haver abolido o circo romano e seus sangrentos combates de gladiadores? Só por ter fechado o Coliseu, a meu ver, os cristãos prestaram um serviço à humanidade que lhes dá saldo positivo para no mínimo três séculos. Qualquer observador, exceto um fanático por relativismo cultural, concordará que a ascensão do cristianismo como religião do mundo romano provocou um extraordinário avanço nos usos e costumes das populações locais. Avanço, é claro, no sentido de aproximar-se daquilo que é reconhecido hoje em dia como padrão civilizado, e distanciar-se das práticas correntes no mundo pré-cristão. O islamismo, hoje em dia tão estigmatizado como obscurantista, teve o mesmo papel em relação aos costumes dos povos do deserto. Muitos dos aspectos hoje em dia criticados na religião muçulmana, como a inferioridade civil das mulheres, na verdade representaram avanços em relação ao que era praticado anteriormente (Maomé foi o primeiro a permitir que as mulheres participassem, ainda que de forma desigual, da herança paterna, direito que só seria reconhecido pelos cristãos bem mais tarde). Já o escandaloso costume da infibulação e da circuncisão feminina, este simplesmente jamais constou no Alcorão. Não passa de um costume tribal falsamente atribuído ao islamismo. No extremo oriente, o confucionismo, embora não seja estritamente uma religião, deu origem a uma ética que hoje em dia está por trás do sucesso econômico daquelas nações, papel análogo ao desempenhado pela ética dos reformadores protestantes no ocidente. Nem mesmo o ateu mais empedernido é capaz de afirmar que Javé, o deus único e incorpóreo dos hebreus, é equivalente a um ídolo de barro qualquer, jazendo sobre um altar fedendo a sangue e carne calcinada. Javé distinguia-se das outras divindades porque não se limitava a receber oferendas e conceder graças, mas também exigia um comportamento ético da parte de seus seguidores. É sintomático que as grandes religiões monoteístas tenham se espalhado tão rápido e obtido uma acolhida tão entusiasmada entre as massas populares. Isso dá uma idéia da angústia e da imensa fome que o homem comum do povo sentia por novos valores éticos, pelos quais ele ansiava, mas que não sabia exprimir em palavras. A tarefa de codifica-los coube aos profetas, que deram forma definitiva às grandes religiões do mundo atual. Mas a religião é a moral de um mundo estático. Aquilo que representa avanço em uma época, pode ser atraso em outra época. Seria bom se a religião pudesse se adequar facilmente aos novos tempos, mas não pode. Isso decorre da maneira como a pregação religiosa é ministrada. Uma vez que argumentos de ordem filosófica só seriam compreendidos por uma minoria instruída, e a religião tem que valer para todos, a solução é colocar os ensinamentos religiosos na forma de dogmas cuja veracidade não há necessidade de demonstrar. Estes dogmas devem ser convenientemente ditados por uma entidade supra-humana, e aceitos sem discussão pelos devotos. Mas um dogma, por definição, é imutável. Não pode ser alterado, ou deixa de ser dogma, e com isso desmoraliza todo o edifício da crença. Desta forma, o terreno da religião fica restrita somente àquilo que, dentro da ética e da moral, é permanente e imutável. Resta saber se realmente existem coisas que são permanentes e imutáveis. |
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