Reciclando a História  
 

Estou bem no meio de um feriadão. Dia 15 é a proclamação da república, feriado tradicional. Dia 20é dia de Zumbi dos Palmares, feriado novo.

Mas minha intenção não é protestar contra o número excessivo de feriados, nem começar mais uma polêmica quanto ao esquecido papel dos negros em nossa História. Quero falar de algo bem mais sério. É notória a ignorância nacional quanto a assuntos históricos, e afirma-se por aí que a cada 15 anos o brasileiro esquece de tudo o que aconteceu no passado, e começa tudo outra vez da estaca zero. Mas se o brasileiro, no geral, revela pouco apreço por estudar História, bem mais talento possui em outra atividade: reescrever a História, modificando o passado para servir ao presente. É grande a quantidade de personagens "reciclados" pelos intelectuais metidos a historiadores, e notável a durabilidade dos mitos engendrados em torno dessas mistificações.

A moda começou para valer lá pelos anos sessenta, com o cinema novo de Glauber Rocha. À cata de um herói popular, camponês e revolucionário, não o encontrou em nossa História. Então resolveu reciclar o cangaceiro nordestino para o papel de Pancho Villa tupiniquim. O engodo pegou muito bem, e até hoje não falta, aqui ou lá fora, quem acredite que Lampião foi um herói popular, assim como hoje se luta para crer que os traficantes das favelas são heróis populares. De verdadeiro nesse mito, só existe o fascínio que o bandido despertava em um populacho ignorante e imbuído de uma mentalidade machista, que muito prezava o "cabra-macho" que tinha palavra de honra e cumpria promessas e ameaças. Muito contava, também, a independência de Lampião: ele não atuava sob as ordens de nenhum coronel do sertão, isso em uma época em que era praxe os cangaceiros contarem com um coronel-protetor.

Mas o que os falsificadores da História se esquecem de mencionar é que, se Lampião não estava vinculado a nenhum coronel, tampouco via inconveniente em ajudá-los, se fossem seus amigos. E há pelo menos um caso confirmado do bando de Lampião expulsando posseiros em uma região na divisa entre Alagoas e a Bahia, nas terras de um fazendeiro a quem Lampião devia favores. E se o populacho admirava o cangaceiro, a recíproca decididamente não era verdadeira. A forma cruel e caprichosa com que Lampião tratava os prisioneiros, ora castrando-os se mostrassem covardia, ora poupando-os se mostrassem coragem, deixa bem claro o arraigado desprezo que o rei do cangaço nutria por aquele povinho submisso, que não era cabra-macho como ele e seu bando. Lampião nada tem de revolucionário, nem de amigo do povo.

Outra mistificação duradoura foi a de Antonio Conselheiro e do arraial de Canudos. A lenda começou com Os Sertões de Euclides da Cunha, que contém mais literatura que reportagem. Mas Euclides não pode ser responsabilizado pelos rumos que o mito tomaria mais tarde: de que Canudos seria um reduto de rebeldes anarquistas em luta contra o poder constituído, que foram massacrados porque afrontaram os latifundiários ao abolir a propriedade privada. Antonio Conselheiro teria sido, então, um precursor do MST.

Que em Canudos a propriedade era comunal, isso é verdade. Mas não há conteúdo político nas falas de Antonio Conselheiro. Ele não se refere a uma reforma agrária, não desanca os latifundiários, não prega a conquista do poder pelas armas. As cartas enviadas por fazendeiros da região se referem vagamente à possibilidade de "desordens", mas não há relatos do povo de Canudos invadindo fazendas ao estilo do MST. Aliás, se fosse possível conferir uma classificação política ao Conselheiro, teríamos que defini-lo como reacionário, pois ele era contra a república e favorável a uma restauração monárquica.

Evidente que Antonio Conselheiro não era monarquista de fato: ele queria a volta do rei, sim, mas não de Dom Pedro II. Profetizava a volta de Dom Sebastião, rei português morto pelos mouros 300 anos antes. O messianismo sebastianista era recorrente em Portugal, e costumava ressurgir em tempos de calamidade e desespero. Os sebastianistas eram fanáticos ignorantes, assim como o próprio Antonio Conselheiro. Ele não queria fazer revolução nenhuma, queria apenas o mesmo que é desejado por todas as seitas de ascetas: viver de uma determinada maneira no interior de seu reduto. A abolição da propriedade privada, portanto, devia-se à ascese religiosa, não a um projeto anti-capitalista. A pressa do governo em eliminar aquele corpo estranho deveu-se, sem dúvida, à versão inicialmente veiculada de que os habitantes de Canudos seriam rebeldes monarquistas. O engano, provavelmente, não durou muito tempo, mas aí já era tarde: duas ou três expedições já haviam sido totalmente massacradas, e tornou-se uma questão de honra castigar exemplarmente aqueles rebeldes, ainda mais para um governo novo e necessitado de dar provas de força, como era o governo republicano recém saído de uma guerra civil no sul. O massacre daquela gente foi, sem dúvida, um episódio lamentável, mas quem disser que eles eram revolucionários que buscavam alterar a ordem social vigente, estará mentindo. Eram apenas fanáticos religiosos.

A mistificação que está na moda agora é a reciclagem do líder quilombola Zumbi dos Palmares, agora transformado em líder "negro", abolicionista e anti-imperialista. O feriado que foi criado para homenageá-lo se chama, significativamente, O Dia da Consciência Negra, deixando claro que Zumbi não deve ser considerado herói de um país, mas herói de uma raça. Entram em cena os falsificadores da História e procuram criar em torno da figura de Zumbi uma dicotomia preto X branco e escravo X livre. Zumbi, presumivelmente, foi um líder de negros em luta contra brancos, e o reduto que comandava - o Quilombo dos Palmares - era um lar de homens livres, sem senhores nem escravos.

Mas se por um lado, os negros que fugiam para o quilombo queriam, obviamente, deixar de ser escravos, por outro lado sequer lhes passava pela cabeça a idéia de abolir a escravidão. Aliás, esta idéia não ocorria a ninguém no século XVII, e só foi surgir no século seguinte, entre os filósofos iluministas. Havia escravos em Palmares, e Zumbi, bem como os outros líderes, era um senhor de escravos. Apenas os que conseguiam chegar ao quilombo por seus próprios meios eram livres, aqueles a quem os quilombolas capturavam nas incursões que faziam aos engenhos continuavam escravos, só que dos quilombolas, até que comprassem sua liberdade participando de uma futura incursão e capturando novos escravos para substituí-los. Escravos eram rotineiramente comprados e vendidos nas transações comerciais entre o quilombo e as vilas vizinhas. Os quilombolas só eram rebeldes no sentido de não se subordinar às autoridades coloniais, mas de resto nada tinham de revolucionário. Palmares incorporava as instituições, usos e costumes da sociedades tribais da época, aí incluída a escravidão. Tampouco a luta encestada por Zumbi teve um caráter racial. Não havia apenas negros em Palmares, mas também índios, caboclos, cafuzos e até brancos (fugitivos da justiça, ou talvez, mercenários). Nem a tropa que destruiu o quilombo era composta só de brancos, mas também de índios, caboclos e inclusive negros. Zumbi não foi um líder de negros, nem de libertários; Zumbi foi um líder de foras-da-lei escravocratas no interior de uma sociedade escravocrata.

Já dizia Cícero dois mil anos atrás, aquele que não conhece a História será para sempre um menino.

 

 

 

 

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