Privatização ou Privataria?  
 

O tema soa meio requentado, mas ainda está no ar e se materializa aqui e ali, nas conversas e na mídia. A privatização é boa ou má? Lula escolheria a segunda opção, como era previsível; ele não chegou a rever as privatizações já efetuadas, mas de quebra criou mais estatais, cujo número aumentou pela primeira vez desde Sarney. Há quem esbraveje contra o "assalto ao patrimônio nacional", e há quem mantenha uma posição dúbia - caso do jornalista Elio Gaspari, que recentemente escreveu um artigo culpando o Estado pelo lento crescimento econômico nos últimos 20 anos, mas que sempre se refere às privatizações de FHC como "privataria". E de fato, muitas privatizações foram mal conduzidas, pouco transparentes, usaram dinheiro público e substituíram monopólios públicos por monopólios privados. Compensou ou não?

Passando ao largo do clima passional que costuma tomar conta desta discussão - sempre o embate nacionalistas X entreguistas - eu diria que, no tocante aos serviços de que sou usuário costumaz, como luz e telefone, a privatização melhorou consideravelmente a qualidade dos serviços. Afinal, não tenho memória tão curta assim, e ainda me lembro dos longuíssimos "planos de expansão" da TELERJ, então mais conhecida como TELERDA, um tremendo cabide empregos para militares reformados, de quem se dizia, oferecia poucas linhas porque tinha muito coronel e pouco cabo. Mas também me lembro da tarifa de 2 cruzeiros que era o valor do pedágio por ocasião da abertura da ponte Rio-Niterói nos idos de 1974, e hoje me dói o bolso ao passar pelas incontáveis cabines de pedágio das incontáveis rodovias sob concessão de firmas particulares. Estudos recentes têm demonstrado que a qualidade dos serviços privatizados, em média, não tem melhorado, sobretudo para os mais pobres, e que houve um enorme aumento das tarifas, mais uma vez prejudicando aos mais pobres. Talvez seja isto mesmo. Só que o objetivo das privatizações jamais foi o incremento da qualidade dos serviços, mas um outro bem mais urgente: salvar as finanças públicas. Até o princípio dos anos 90, o Estado estava atolado sob o peso de dezenas de companhias estatais deficitárias, e de alguma parte teria de vir o dinheiro que as mantinha funcionando. Vinha, obviamente, do contribuinte escorchado, do funcionário público sem aumento, das escolas de vidros quebrados, da delegacia sem computador, dos hospitais sem leitos, vinha sobretudo repartida por toda a massa de cidadãos em virtude do imposto inflacionário. Sem as privatizações, jamais teria sido possível acabar com a inflação. É verdade que muitas pessoas perderam o orgulho nacionalista e as tarifas baratinhas, e com justiça ficaram indignadas ao ver o governo vender por 10 o que valia 100, mas o fato é que, se a companhia dá prejuízo, o Estado fica no lucro até se pagar para se livrar dela.

Mas por que é assim? Por que o Estado, que em teoria devia prover o interesse público em lugar do lucro próprio, invariavelmente fracassa na gestão de empresas? Uma vez que, em termos organizacionais, não existe grande diferença entre uma grande empresa pública e uma grande empresa privada, nem tampouco os funcionários de uma empresa privada são mais abnegados que os funcionários do Estado, penso que a explicação se encontra resumida naquela frase escrita por Pedro Collor em seu livro-denúncia do irmão:

"A desvantagem de uma empresa pública face a uma empresa privada é inexorável a partir do momento em que se realiza uma licitação qualquer. Quando uma empresa privada faz uma licitação, ganha o fornecedor que oferece os preços mais baixos e os prazos de entrega mais curtos. Quando uma empresa estatal faz uma licitação, ganha o fornecedor que oferece os preços mais altos e os prazos de entrega mais longos. Isto porque a diferença vai parar no bolso de alguém"

O caso é esse: empresas públicas são, simplesmente, caras demais para o infeliz contribuinte, que de uma forma ou de outra paga toda esta bandalheira. Evidente que também se pode roubar de uma empresa privada. Mas quem rouba uma empresa privada sabe que está roubando uma pessoa normal de carne e osso, que tem reações típicas do ser humano saudável, como o impulso de reagir de imediato quando sente que lhe metem a mão no bolso. Quem rouba uma empresa pública está roubando uma entidade incorpórea chamada "Estado", fria e desprovida de paixões, letárgica e de lentas reações, que pertence a todos, e por isso mesmo não pertence a ninguém, tal como o orifício anal dos bêbados. Assim fica fácil. Difícil é explicar porque, a despeito de tantas mostras de corrupção e ineficiência, ainda há tantas pessoas que defendem a presença do Estado na economia. Mas vou tentar.

Observando o discurso dito "nacionalista" e "anti-imperialista" típico dos intelectuais de esquerda e seus imitadores, percebo dois equívocos fundamentais: a dicotomia interesse público X interesse particular e a condenação formal do lucro, objetivo normal das empresas privadas.

O primeiro equívoco origina-se de uma confusão de conceitos: a empresa estatal não pertence ao "povo" coisa nenhuma, pertence ao Estado. Povo e Estado não são sinônimos. Argumenta-se que uma empresa estatal, gerida pelo Estado, teoricamente o representante do povo, estaria a serviço do interesse público, ao passo que uma empresa privada estaria a serviço dos interesses egoístas de seus acionistas brasileiros e estrangeiros - o que não deixa de ser verdade, mas a teoria na prática é outra. Políticos gostam de estatais porque têm bastante de onde tirar, bem como bastante onde colocar - no caso, seus apaniguados. O loteamento de cargos nas grandes empresas é a melhor moeda de troca que um partido pode dispor para negociar com sua base aliada. E como todos devem se lembrar, o grosso do dinheiro que veio compor o "mensalão" foi subtraído dos fartos fundos de pensão de companhias estatais, quando não das próprias companhias. Sem estatal não dá para roubar.

O segundo equívoco origina-se de um preconceito intelectual, inerente à formação marxista: a crença de que o lucro, denominado a mais-valia, é uma apropriação indébita, uma quantia extra que o patrão tira do trabalhador, e desta forma causa a sua pobreza. Sob esta ótica, uma privatização corresponde inevitavelmente a um aumento das tarifas, já que o empresário precisa tirar o seu lucro, e o Estado não precisa. O usuário sai prejudicado, pois para ter o mesmo serviço, precisa pagar uma quantia extra referente ao lucro da empresa concessionária. Mais uma vez, isto não deixa de ser verdade. Mas por que motivo o lucro seria intrinsecamente mau? Trata-se de mais dinheiro injetado na economia, na forma de investimentos diversos, expansão de negócios, geração de encomendas e empregos, mais impostos recolhidos - usado desta maneira, o dinheiro beneficia mais a sociedade como um todo do que se fosse parar no bolso de algum deputado mensaleiro, que provavelmente o gastaria com bebedeiras e prostitutas. E depois, por que razão lógica o lucro deveria ser vedado às empresas estatais? Pois não é do lucro que o governo deveria obter os recursos para a expansão e melhoria dos serviços, bem como para usar na área social? Se e empresa tem lucro zero - arrecada exatamente o mesmo que gasta - o usuário paga uma tarifa baratinha, mas o cidadão fica a ver navios; financeiramente, é como se a empresa não existisse. Sem contar que este é um quadro teórico que não existe no mundo real: se uma empresa não dá lucro, na prática ela dá prejuízo. E o prejuízo, já se sabe do bolso de quem vai sair...

Se dos anos 30 aos anos 70, o Estado foi o motor do desenvolvimento, hoje é um elefante sentado no banco traseiro de um fusca - por mais que se pise no acelerador, não saímos do lugar. Mas nosso povo, imbuído de uma mentalidade paternalista, continua a enxergar no Estado o paladino que irá protege-lo do burguês malvado. E neste caldo de cultura, proliferam as estatais.

 

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