O Poder das Palavras | ||
Bem que eu tentei mudar de assunto, e na semana passada falei de religião. Mas não tem jeito. O assunto do momento é crime e violência. Não estranha que seja assim, pois conforme já demonstrou uma pesquisa, o segundo maior medo do brasileiro é ser vítima de um crime (o primeiro é o medo de perder o emprego). E falar de violência é, também, falar de violência policial. Já tivemos o vergonhoso caso daquele comerciante chinês, e agora vem essa inspetora da ONU de nome esquisito derramar sentidas lágrimas diante das histórias contadas pelas mães e viúvas das vítimas dos Grupos de Extermínio. Todos da minha geração cresceram ouvindo falar dos Grupos de Extermínio. Eu era garoto quando surgiu o famigerado Esquadrão da Morte, o pai de todos. Depois vieram outros menos glamurosos, mas sempre despertando na população um misto de horror e fascínio. O último que eu me lembro era um suposto matador solitário auto-intitulado O Mão Branca, que exterminava marginais lá pelo final dos anos setenta. Depois acabou. Mas acabou como? Se todos continuamos a falar de Grupos de Extermínio? E ainda vem essa mulher da ONU nos informar que eles são nosso pior problema? Ah, mas é aí que entra o Poder das Palavras. Tenho muito, muito medo de palavras, pois eu sei o poder que elas tem. Há palavras e palavras. Às vezes elas limitam-se a cumprir seu papel de dar forma a idéias e codificar pensamentos. Mas outras vezes levam uma vida própria e diabólica, como os cadáveres animados por espíritos que se levantavam das tumbas nos velhos filmes de vampiro. Seu intento não é mais exprimir idéias, mas sim induzi-las. É o caso da expressão Grupo de Extermínio. Somos levados a crer que eles ainda existem, e que estão em toda a parte, e que estão no centro de nosso drama, quando na realidade, eles estão há muito extintos. Tudo isso conseguido pela mágica de repetir slogans sem reflexão - grupos de extermínio, grupos de extermínio, grupos de extermínio, quem eles são, afinal? Não se pode negar que existem muitas quadrilhas especializadas em homicídios. E é fato que muitas dessas quadrilhas são integradas por policiais. Mas sua dinâmica de ação não pode, nem de longe, ser comparada com a dos grupos de extermínio originais. Aqueles matavam marginais a esmo, com o intuito de promover uma limpeza social, sob o beneplácito de um estado autoritário. Hoje em dia se mata obedecendo a uma lógica de rivalidades entre bandos ou de vinganças pessoais, quando não pura lógica comercial, no caso dos matadores de aluguel. Suas vítimas são, em geral, bandidos, mas é normal. Os inimigos de um criminoso via de regra são outros criminosos. Não há absolutamente nada em comum entre a ação dessas quadrilhas e a ação dos grupos de extermínio dos anos sessenta e setenta, exceto o fato de que suas vítimas são marginais. Mas levados pela infinita repetição de rótulos, acreditamos que o tempo não passou, que ainda estamos nos anos sessenta, e que este espetáculo de mortes que vemos diariamente consiste da ação de um Estado Policial dedicado a exterminar cruelmente os pobres excluídos da sociedade, ao invés de dar-lhes condições de uma vida digna. Até a Chacina da Candelária é apontada como um exemplo de ação de grupo de extermínio, como se esta matança estúpida, mas esporádica, pudesse ser comparada a um genocídio friamente planejado. A Luta de Classes marxista tem que obrigatoriamente estar por trás de qualquer conflito. Outro grande escândalo que ocupou as manchetes por estes dias foi o caso da prostituição infantil naquela cidade do interior de São Paulo, onde se descobriu que menores de idade participavam de orgias promovidas por vereadores da câmara local. A expressão "prostituição infantil" apareceu dezenas de vezes na mídia, em diversas matérias de diversos periódicos. Mas onde está o infantil? A mais jovem das meninas envolvidas tinha 14 anos completos. É claro que a prostituição de adolescentes é um crime, mas não é a mesma coisa que prostituição infantil. Isto é reconhecido, inclusive, pelo Código Penal brasileiro, que para o crime de cometer atos libidinosos com menores, prevê penalidades diferentes no caso de menores púberes ou impúberes. O que é de todo coerente, pois um adolescente, bem ou mal, sabe o que é o sexo, enquanto uma criança molestada sexualmente sofre de um trauma que a afetará por toda a vida. Mas não adianta usar estes argumentos quando todos repetem como papagaios as palavras com que a mídia nos bombardeia. Foi decretado que o caso é de prostituição infantil, então tem que ser. Envolvidos por slogans e rótulos, somos levados a crer naquilo que se deseja que acreditemos. Então o grande problema brasileiro não se trata dos tiroteios, nem dos assaltos, nem dos seqüestros e nem do tráfico - trata-se da prostituição infantil. O grande perigo não são os bandidos matadores, mas sim os policiais matadores. As vítimas dos bandidos não merecem lágrimas da inspetora da ONU. Elas nem tem rosto. Afinal, os bandidos não têm o costume de lavrar um boletim de ocorrência sempre que matam alguém, muito menos entregam o corpo ao IML. No mais das vezes não sobra nada, como foi o caso daqueles restos calcinados que foram encontrados no lixão da favela, e que por um instante se aventou a possibilidade de serem os restos de Tim Lopes. O interesse pelo cadáver desapareceu tão logo esta premissa foi desmentida. Quem seria ele? Um bandido, ou um infeliz a quem sucedeu estar passando no lugar errado na hora errada? Não importa, ele não era Tim Lopes. Ah, e não nos esqueçamos: o ladrão verdadeiramente perigoso é o político corrupto, e não o assaltante que nos leva a carteira. Isto é demonstrado, inclusive, numericamente: o deputado corrupto leva milhões, o ladrãozinho leva tostões. Mas falta alguém dizer que essas duas situações não podem ser comparadas. O desvio de verbas é indolor: está ausente o trauma de sentir o cano de uma arma apontado para sua cara, ou coisa pior. E além disso, o dinheiro desviado não pertence a um indivíduo, mas à coletividade, o que nos permite concluir, após uma conta simples, que um corrupto que desvia R$ 1 milhão está roubando de cada cidadão brasileiro a quantia de meio centavo, aproximadamente. Enquanto escrevo, ouço os tiros lá longe, no morro. Felizmente meu apartamento não é de frente, e os projeteis são de grosso calibre, mas ainda não aprenderam a fazer curva. Menos sorte tem os meus vizinhos de frente: dois ou três já tiveram vidros quebrados. Ontem mesmo cruzei com uma vizinha, que estava lamentando a má pontaria dos bandidos: eles estavam atirando contra uma Blazer da PM na entrada do morro, por que diabos não acertavam nos PM's? Tinham que acertar sua janela! Bom, pensei, se os bandidos faziam os policiais de alvo, isso significa que os consideravam como inimigos. Algo estranho haveria se os policiais estivessem lá, e os bandidos não estivessem atirando. Mas se nem quando estão cumprindo seu dever, minha vizinha fica satisfeita, o que deseja ela, afinal? Não importa. Foi decretado que polícia é do mal, e bandido é do bem. Como disse o faxineiro: no dia que uma velhinha conhecida dele ficou doente, sozinha em seu barraco, foram os traficantes que providenciaram a longa descida até a entrada da favela, onde ela foi metida em um taxi e mandada ao hospital. Todos que ouviram se comoveram com tamanho rasgo de generosidade, e convenceram-se de que a presença dos traficantes é absolutamente indispensável. Mas eu pensei: se o caso era simplesmente transportar um doente escadaria abaixo, é necessário que essa tarefa seja feita por traficantes? Os vizinhos da velhinha não poderiam fazer isso? Pensei apenas, não me animei a falar. Decididamente, o hábito de raciocinar predispõe à solidão, mas eu vou levando. Pelo menos ainda não estou na linha de tiro. E metáfora por metáfora, há uma que reputo absolutamente verdadeira: as palavras têm um poder de destruição bem superior a uma AR-15.
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