O Poder Militar | ||
Recentemente adquiri em um sebo o livro O Poder Militar, de Hélio Silva. Aprecio este historiador, cujas obras pautam pela descrição sucinta e desapaixonada dos fatos, e o tema é atemporal, posto que a influência dos militares no país tem sido constante em nossa história, mas apesar disto, muito mal compreendida. Persiste a lenda do Poder Moderador exercido pelos militares,supostamente salvando o país em momentos de grave impasse e reconduzindo-o à normalidade. Um ponto que está fora de discussão, é que a república foi uma criação dos militares. Havia um partido republicano no país, mas não foi ele que proclamou a república, surgida por um golpe do exército. As contradições, contudo, começam aí. A maioria dos militares não era republicana - estes estavam concentrados em uma minoria intelectualizada, reunida em torno de Benjamin Constant e adepta da filosofia positivista de Comte, que descria da democracia representativa e preconizava o governo ideal como uma "ditadura republicana", conduzida por homens de caráter isento, que governariam acima de interesses partidários visando o bem comum, de forma "racional e científica". Evidente que os militares, até por sua própria formação, consideravam-se naturalmente credenciados para esta tarefa. Coerentemente, os primeiros dois presidentes da nascente república foram dois marechais - a chamada República da Espada, considerada o primeiro governo militar do país, embora na época houvesse mais militares na cadeia do que no poder. Mas a República da Espada foi um desastre. Nada se viu dos devaneios positivistas. A crise eonômica se instalou, provocando desenfreada inflação, e focos de guerra civil pontilharam pelo país. Ironicamente, a estabilidade política e econômica só retornou quando voltou ao poder a mesma elite civil deposta pelo golpe, agora convertida ao republicanismo. Do episódio, ficou a lição de que um governo fortemente centralizado e autoritário, conforme queriam os positivistas, era inviável no quadro social do país à época, dominado pelos "coronéis do sertão", que não hesitavam em arregimentar tropas de jagunços para defender seus interesses políticos. A insistência em um poder central discricionário inevitavelmente redundaria em descontentamento nos estados, seguido de rebeliões armadas. De fato, cena recorrente por toda a República Velha foram tropas de jagunços levando a melhor sobre tropas regulares - estas melhor equipadas, mas os jagunços mais numerosos, conhecedores do terreno e de táticas de guerrilha, podendo acoitar-se nas fazendas de seus patronos quando necessário. As polícias estaduais também prestavam-se a este papel. Até os anos 30, a polícia de São Paulo possuía até Força Aérea. Evidentemente não era uma polícia de verdade, mas um exército disfarçado. Portanto, a governabilidade só era exequível mediante protocolos e conchavos que garantissem os interesses dos chefes políticos estaduais, uma engenharia política complexa que só podia ser urdida por políticos, e não por generais. Os pactos foram sendo costurados, delineando o perfil da Primeira República - o Café-Com-Leite, a Política dos Governadores, o Pacto dos Coronéis no nordeste. Havendo sido a República da Espada identificada com desordem e revolução, os próceres da oligarquia cafeeira trataram de fechar o espaço político aos positivistas, e conseguiram alijá-los. Mas o positivismo permaneceu sendo a ideologia preferida dos militares, e continuaria a sê-lo pelo século 20 adentro, mesmo que já não se apercebessem disso. A partir de então, as intervenções dos militares foram pontuais, o que reforçou o mito do poder moderador que servia de árbitro. A Revolução de 30 não foi feita pelos militares, e sim pelos governadores com suas polícias - os militares deram o golpe final que retirou o presidente, mas não assumiram o poder. Os militares apoiaram o golpe de 1937, mas quem assumiu como ditador foi um civil. Os militares deram o golpe que depôs Getúlio em 1946, mas de novo não assumiram o poder - é certo na eleição seguinte os dois candidatos eram militares, mas o regime era democrático. Um militar garantiu a posse de Juscelino em 1955. Os militares se ergueram contra a posse do vice-presidente Goulart em 1961, mas novamente tudo se resolveu por um acordo. Entretanto, uma análise cuidadosa de cada um destes eventos mostra que sempre houve uma tentativa dos militares de assumirem efetivamente o poder, ao invés de servirem de árbitros. Em 1964, este objetivo foi finalmente alcançado. Alguns mais ingênuos chegaram a julgar que se trataria de mais uma intervenção pontual, mas o que se seguiu foi a implantação daquilo que havia sido o verdadeiro propósito dos militares desde o final do século 19, o regime positivista. De fato, os generais-presidentes tinham poderes absolutos, mas o formato republicano foi mantido, com cada presidente sendo substituído ao final de seu mandato - isso não era outra coisa senão a "ditadura republicana" preconizada por Comte. Os políticos foram afastados do centro das decisões administrativas, que ficou a cargo de ministros e acessores com formação técnica, sem filiação a partidos - era a ditadura "racional e científica" comandada por tecnocratas. A solução pareceu funcionar por alguns anos, quando houve rápida taxa de crescimento econômico, mas tudo terminou com a crise dos anos 80, que pôs fim à crença dos militares como governantes mais competentes do que os civis. De fato, até recentemente, não se ouviu mais clamores por uma intervenção militar, embora o mito dos militares como salvadores da pátria em situação de perigo tenha permanecido. Contudo, não se vê no mundo país desenvolvido que tenha tido um período de governo militar no passado como etapa construtora de sua pujança econômica e estabilidade política. O exemplo mais contundente é o do Japão, que foi efetivamente governado por militares no princípio do século 20, mas o resultado foi a guerra que representou o pior revés de sua história. Acrescente-se que a modernização do Japão só teve início depois que a Era Meiji pôs fim ao feudalismo militarizado dos Xóguns. Governos militares abundam em países do Terceiro Mundo, e é difícil não crer que são a causa, e não a consequência do atraso e da instabilidade. Com tantos exemplos desastrosos, fica evidente que um exército que governa seu país não constitui a salvação, mas a dissolução do Estado - é como se o país houvesse sido invadido e estivesse sob o controle de tropas de ocupação. O legado mais palpável do período militar no Brasil foi a deterioração da classe política, resultado das cassações e das mudanças na legislação eleitoral que privilegiavam os políticos das regiões atrasadas em detrimento dos grandes centros - assim os militares foram sucedidos por tipos como Sarney e Collor. Evidente que essa não era a intenção declarada dos militares de 1964, mas em razão de sua formação positivistas, viam a política como uma inutilidade inócua, daí não enxergarem consequências na manipulação do quadro político para fim de manter uma fachada democrática do regime, consoante com a Guerra Fria, que se apresentava como uma luta dos regimes democrátricos contra o totalitarismo comunista. |
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