O Paradoxo Amado x Machado | ||
Sem dúvida que não sou crítico literário. Na verdade, nem leio muito ficção, pois minha preferência mesmo é não-ficção. Por que motivo meti-me a tecer uma comparação entre aqueles dois que foram os maiores expoentes da literatura brasileira, o mulato Machado de Assis e o baiano Jorge Amado? Por causa de um paradoxo que sempre chamou minha atenção, mesmo eu nunca havendo lido muito nem um nem o outro. Chamou minha atenção, não só pelo inexplicado em si, mas também porque eu antevi que a solução deste paradoxo poderia explicar muitas outras coisas que a princípio não tem nada a ver com literatura. Trata-se do seguinte: no Brasil, poucos duvidam que Jorge Amado e Machado de Assis foram nossos maiores escritores nos dois últimos séculos - Machado no século XIX, Amado no século XX. Não coloco em dúvida esta premissa, e uma comparação mais profunda entre estes autores não é possível, primeiro porque não sou crítico literário, segundo porque ambos tinham estilo bem diverso e viveram em épocas bem diferentes. Mas se esta é a visão do ponto de vista local, por que motivo, do ponto de vista externo, Amado permanece notável e Machado simplesmente desaparece? Como se sabe, Amado é o autor brasileiro mais vendido no exterior, foi traduzido em inúmeras línguas, e se não chegou a ganhar o Prêmio Nobel, ao menos esteve sempre cotado. Machado de Assis, fora do Brasil, é um ilustre desconhecido, sempre permaneceu na obscuridade, volta e meia redescoberto por algum pesquisador curioso e logo em seguida retornando ao esquecimento. Como se explica isso? Teria o estrangeiro uma percepção diferente da qualidade literária das obras? Será que ele, ao ler os textos nacionais, vê algo que nós não vemos, e deixa de ver alguma outra coisa que nós vemos com clareza? Como já disse anteriormente, não vou entrar no mérito da qualidade dos textos, mesmo porque isso é grandemente relativo, e depende do gosto do freguês. Poucos até agora têm se dedicado a explicar este fenômeno. Uma pesquisadora britânica associou esta aceitação internacional de Amado ao fato de haver sido ele o único capaz de "transformar as energias populares em literatura", e ressalta que o escritor baiano, apesar de "vulgar", foi "o único a celebrar a negritude". Para o caso de Machado, li certa vez um artigo bem interessante, que afirmava ter sido o autor de "Dom Casmurro" vítima de uma síndrome que também acometeu ao português Eça de Queirós, o qual, embora bastante traduzido no estrangeiro, jamais fez sucesso na França, sua pátria espiritual. Esta rejeição, afirma o autor do artigo, "não se deve a nenhum questionamento quanto à qualidade de seus textos, mas ao fato de haver sido ele considerado demasiado francês". Conclui-se que, para gozar de fama internacional, não basta ser bom escritor - também é preciso não ser português nem brasileiro, e somente um francês deve estar autorizado a escrever como um francês. Aparentemente, Amado foi bem recebido no estrangeiro porque escrevia algo que correspondia ao que o mundo globalizado acha que deve ser a literatura de um país como o Brasil. Regionalista com certeza ele foi. Mas também seus críticos apontam certo artificialismo em suas construções, um marcado direcionamento à exportação. Taxam suas personagens de "baianas de gringo". Basicamente, Amado produz imagens da Bahia destinadas ao consumo de não-baianos. Sua popularidade entre seus conterrâneos, aliás, não é unânime, conforme eu próprio pude constatar; já ouvi comentários de que Jorge Amado incentiva o turismo sexual na Bahia. A acusação pode parecer insólita, mas é facilmente entendida depois de se ler uma resenha estrangeira qualquer sobre a obra de Jorge Amado: é impressionante a profusão de termos como "sensual", "ardente", "tropical lust" (tesão tropical, será?) e coisas do gênero. Quem não conhece Amado pode até pensar que ele é um escritor pornográfico. Seus defensores atribuem essas distorções a maus tradutores. Mas eles se esquecem de que, no mundo globalizado, a versão que passará à posteridade será a versão desses "maus tradutores". Pois na Europa e nos EUA, quem lê Jorge Amado é o povão, e o que o povão espera é justamente este tipo de descrição de um mundo tropical ardente e repleto de mulheres sensuais e dispostas a servir seu homem. Na Itália existe uma gíria, "Jerusa", análoga à nossa "Amélia", que foi inspirada em um personagem feminino de Jorge Amado, mulata pobre que se casou com um italiano. Sem dúvida, o que o leitor europeu médio percebe nas histórias amadianas de coronéis e mulatas não são sofisticadas metáforas acerca da Luta de Classes marxista... Embora tenha prestado um desserviço à sua terra ao apresentar ao mundo a mulher baiana como sendo uma Gabriela pronta a abrir as pernas ao primeiro Nacib que a sustente, Amado morreu bem conceituado, tanto no Brasil como no exterior. Mas em suas exéquias eu percebi uma certa ironia pairando no ar. O NY Times escreveu o seu obituário comparando-o a "O Pelé das letras", o que mereceu um réplica de um raro crítico nacional lúcido o suficiente para deplorar a visão preconceituosa do estrangeiro, "sempre pronto a negar espírito ao brasileiro e dizer que ele é só um corpo animado pela ginga". Li a comovente mensagem de seu colega português Saramago, e me lembrei de uma outra mensagem, que lera tempos atrás na seção de cartas de um jornal, creio que o JB. Saramago estava insatisfeito com a adaptação em forma de minissérie de O Primo Basílio, feita pela TV Globo, e pôs-se a dizer grosserias para a jovem repórter que o entrevistava, como se a moça tivesse culpa daquilo, e terminou por perguntar-lhe: "Por que você não vai entrevistar Jorge Amado, aquele escritorzinho de mulatas?" Chocada, a moça enviou o relato à seção de cartas. Se Jorge Amado apresentou ao mundo uma imagem do Brasil que foi aceita como genuína, aparentemente o mesmo não sucedeu a Machado de Assis. Mas por que? Seria o "bruxo do Cosme Velho" um mistificador, um estrangeirado? Influenciado pela literatura francesa e inglesa, sem dúvida, ele foi, e teria sido impossível não sê-lo, a menos que ele escrevesse seus livros isolado em uma caverna. Mas os que vêem nisso um defeito revelam, mesmo sem admiti-lo, uma boa dose de preconceito racial: afinal, deveria ser vedado a um mulato abeberar-se em uma cultura "branca"? Se, entretanto, seu estilo revelava influências estrangeiras, seus personagens eram brasileiros legítimos. Vários deles, de fato, eram tipos bem populares, e estavam ambientados em um meio que Machado conhecia muito bem: os velhos bairros do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Por que, com tudo isso, nem assim foi Machado aceito como um porta-voz do Brasil no exterior? O verdadeiro motivo é mais sutil. Lembrem-se da afirmação da pesquisadora inglesa, de que Amado triunfou porque foi o único a "celebrar a negritude". Machado, embora mulato, não "celebrou a negritude", e a visão estrangeira não o perdoou por isso - assim como um Eça de Queirós não podia ter a audácia de pensar e escrever como um francês, tampouco a um preto deve ser permitido agir como um branco. Sendo um mulato em um país onde havia escravidão, sem dúvida que Machado de Assis sofreu preconceito racial, e em dose muito maior do que sofreria se vivesse na época atual. Mas não mencionou isso em seus livros, pois via o ambiente social e político como coisa de somenos importância - para Machado, importavam os dramas pessoais e psicológicos de seus personagens, e não sua raça ou condição social. Já é uma falha bastante grave um escritor brasileiro não se referir à opressão política, social e racial que o estrangeiro vê como indissoluvelmente ligada a nosso dia-a-dia. Mas há uma falha ainda mais grave. Estão ausentes da narrativa de Machado as descrições lânguidas do corpo feminino, aquelas comparações entre os atributos do corpo da mulher e produtos da natureza como frutas e especiarias. Não que os personagens de Machado fossem assexuados - estavam longe disso - mas suas mulheres não cheiravam a cravo e canela. Não havia "tropical lust". Faltava aquela associação entre pele escura, natureza luxuriante e sexo selvagem, que é a base de todas as fantasias nutridas pelos europeus em relação aos trópicos. Seus personagens careciam de uma tipicidade brasileira. E de fato, muitos deles não se prendiam exageradamente ao contexto sócio-cultural do Rio de Janeiro do século XIX, e podiam ser imaginados surgindo em outro lugar, ou mesmo em outra época, ao contrário dos personagens de Amado, que são inconcebíveis fora da Bahia. Os personagens de Machado, embora brasileiros genuínos, não eram do jeito que o estrangeiro esperava que fossem. A conclusão final é: um escritor oriundo de um lugar periférico (Brasil ou Portugal) só é reconhecido pelo núcleo que concentra a Civilização e a Cultura se ele produz imagens que correspondam a uma tipicidade local, sendo que essa tipicidade já se encontra definida previamente pelo núcleo. Se ele aborda temas universais, ou cria personagens desvinculados de seu meio de origem, ele é acusado de estar abandonando suas raízes, ou de ser um reles imitador. Não fica explícito se o rótulo de "imitador" contém uma insinuação de plágio, ou um desagravo por haver o autor da periferia se utilizado de temáticas e estilos cujo uso é, ou deveria ser, exclusividade de autores provenientes do Primeiro Mundo. Enfim, o autor da periferia deve não só restringir seus temas às peculiaridades regionais de seu país de origem, mas também retratar essa tipicidade local de uma forma que corresponda àquilo que o grande núcleo espera que ela seja. Jorge Amado fez sucesso no exterior porque pactuou integralmente com essa condição. Esse dilema nunca ocorreu a Machado de Assis porque ele viveu em uma era pré-globalização; melhor dizendo, já existia uma globalização no campo da cultura (tanto que ele foi muito influenciado por estilos estrangeiros) mas não existia ainda uma globalização comercial que tornasse obrigatório a um autor de renome ter grande vendagem também no exterior. Dessa forma, a cultura brasileira torna-se prisioneira de seu exotismo. Podemos até achar um grande motivo de orgulho o fato de ter sido Jorge Amado tantas vezes homenageado lá fora, ou de ter "quase" faturado o Nobel, mas o fato é que a reclusão de nossas manifestações culturais a um contexto "exótico" significa, na prática, uma segregação. A começar que a própria definição do termo "exótico" depende do ponto de vista: somos exóticos para os demais, mas obviamente não somos exóticos para nós mesmos. A definição de "exótico" só pode ser dada de fora para dentro, e portanto, aceitar produzir somente imagens que nos tipifiquem como exóticos significa aceitar que o olho estrangeiro comande nossa produção cultural. Temos que ser tudo aquilo que o Outro não é, e estamos proibidos de ser aquilo que o Outro também é, ou neste caso deixaremos de ser exóticos. Na realidade, a exotificação do mundo periférico (paradoxalmente muito comum nessa era de globalização) traz em si uma intenção imperial: sob o aspecto de estar "resgatando as origens", preservando uma cultura "nativa" contra a influência de uma cultura "colonizadora" propugnada pelas elites, na prática se está reinserindo o mundo periférico em uma localização provincial, "primitiva", "selvagem", permanecendo a cultura da metrópole como coisa de uso exclusivo dos "civilizados". Ser considerado exótico não é, na verdade, nenhum elogio. Que os outros nos considerem assim, não chega a surpreender; espantoso é que nos agrademos com isso. |
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