O PT e o Emburrecimento do Brasil  
  Esta semana a revista VEJA publicou uma reportagem com a provocante manchete: O PT Deixou o Brasil Mais Burro? O título é de pasquim, mas a matéria é de revista séria. A VEJA não carregou nas tintas. Apontou um fenômeno bem palpável, uma estratégia em andamento que tem por trás de si sabe-se lá qual ideologia deformada, ou mero conjunto de complexos e recalques. Não é brincadeira. Vem-me à memória um artigo escrito por Arnaldo Jabor logo após a posse de Lula, manifestando temor quanto ao que poderia vir a ser a colocação em prática de todo aquele ideário tão gostoso de declamar quando se está na oposição: "Temos uma grande chance nas mãos. Mas corremos também o risco de parir um filho feio, uma deformidade que há de comprometer o futuro do país para sempre". Jabor foi militante de esquerda, sabia o que dizia.

Primeiro de tudo, devo dizer que votei em Lula, e que ele não me decepcionou. Votei em Lula por dois motivos: primeiro, o outro candidato era pior ainda; e segundo, porque o fato de Lula haver-se convertido em candidato eterno, invariavelmente derrotado nas urnas, fazia dele um herói mítico, espécie de Che Guevara tupiniquim, aquele indivíduo que, como jamais conquistou o poder, ninguém pode afirmar como as coisas teriam se passado caso ele houvesse sido bem-sucedido, e cada um pode imagina-lo do jeito que quiser. Urgia, então, descer o mito Lula para o plano material, pois esta é a única maneira de acabar com os mitos.

E digo que Lula não me desapontou, porque ele fez exatamente aquilo que eu esperava dele: atirou no lixo os empoeirados códices leninistas que entupiam os estatutos do PT (peço perdão por parafrasear o artigo da VEJA, mas não encontro palavras melhores). Se estes estatutos ainda estiverem no site oficial do PT, recomendo aos leitores que os vejam, pois hão de dar boas risadas. Tinha certeza de que Lula o faria, pois ele nunca levou a sério tais teorias. Lula surgiu como líder sindical na periferia de São Paulo, ignorante de teorias pedantes, mas eficaz ao lidar com operários. Do outro lado, havia a esquerda brasileira tradicional, composta de uma elite de intelectuais, estudantes e sacerdotes católicos. Lula surgiu como um messias, um enviado, o esperado elo de ligação entre o povo sem líderes e os líderes sem povo. Lembro-me bem do começo da trajetória de Lula ao final dos anos setenta. Inicialmente ele resistiu aos mauricinhos, e sequer permitia a presença de estudantes em seus comícios. Posteriormente cedeu a seu assédio, e optou pela aliança com os intelectuais universitários. Eu teria feito o mesmo. Imagine um sujeito que sempre trabalhou sob uma telha de amianto brasilit, movido a cachaça, de súbito encontra um bando de idiotas que quer de qualquer maneira envia-lo ao paraíso. Quem não cederia? Para este grupo, Lula era a materialização de uma utopia, O Operário, ser impoluto que sucederia à infame elite de capitalistas.

Assim erigido sobre fantasias utópicas, o PT se deu bem enquanto foi oposição. Seu discurso era bem mais palatável do que o carcomido palavreado do petebismo herdeiro de Vargas, ou do que os dogmas rançosos do comunismo ortodoxo. Mas as palavras-de-ordem que são úteis para malhar quem está no poder, de nada valem no mundo real, quando se chega ao governo. O projeto político do PT era irrealizável, e disso bem sabiam seus líderes mais pragmáticos. O que fazer então? Continuar a política monetarista de FHC, para manter a economia funcionando e não matar a "gansa dos ovos de ouro". Mas alguma satisfação, sem dúvida, havia de ser dada ao eleitorado. É precisamente aí que, a meu ver, se insere o conjunto de medidas que a VEJA apontou como "emburrecedoras".

"Isoladamente, essas ações seriam estrelas sem brilho. Juntas, elas formam uma constelação de péssimo desenho que não combina com a orientação geral dada por Lula a sua administração", afirma a VEJA. O que é visível neste "péssimo desenho"? Basicamente, os projetos visam controlar a imprensa e a produção cultural do país, mediante a criação de agências reguladoras constituídas pelos petistas no governo, mais uma ampla e esdrúxula reforma no ensino superior. Considerando que o PT não nasceu no chão das fábricas, e sim nas universidades e nas sacristias, berço de intelectuais e líderes messiânicos, não é difícil entrever neste projeto o sonho supremo do intelectual que aspira reformar a seu bel prazer o seu meio de origem - a universidade, a redação do jornal, o palco do teatro e o set de filmagem. Uma vez dominados estes pólos disseminadores de informação, ensino, pesquisa e arte, está controlada toda a produção cultural de um país. E sem a necessidade de uma "polícia do pensamento", como a imaginada por Orwell em "1984". Mas estas tentativas estão fadadas a naufragar no congresso, vala comum de boas e más idéias. Mais grave é a reforma universitária, que só depende do executivo, e já está em andamento. Suas diretrizes vão do polêmico ao grotesco. A obrigatoriedade de um conselho onde a participação dos donos se limita a 20%, a limitação em 30% da participação acionária de grupos estrangeiros em universidades brasileiras, tudo isso só resultará em afugentar a iniciativa privada da educação superior, diminuindo ainda mais o número de instituições, e privando de investimentos as instituições já existentes. O fim da meritocracia e a reserva de cotas para alunos "socialmente excluídos" pode ferir de morte as principais universidades públicas, que, até o momento, ainda são superiores à maioria das instituições privadas. O fim da obrigatoriedade do inglês para o ingresso no Instituto Rio Branco, então, chega às raias do absurdo. Tal nível de irracionalidade já não pode ser creditado à antiga propensão que os intelectuais marxistas têm de controlar o pensamento. Revela um sentimento mais profundo, de recalque, de revanche contra aqueles que sabem mais e se saem melhor. Afirma-se, se a elite não resolveu os problemas deste país, então é o povo que deve resolve-los. A prova viva desta premissa é o próprio Lula, o presidente-operário. Se Lula não precisou de curso superior para atingir o posto máximo da nação, então qual é a importância da educação e da cultura?

Esta deformação, que a VEJA denominou de misologia - aversão à lógica, ao raciocínio, à inteligência - já ocorreu de forma calamitosa em regimes comunistas do passado, como a China de Mao, onde indivíduos de elevada cultura eram humilhados e obrigados a executar trabalhos braçais, e mais recentemente, no Camboja de Pol Pot, onde quem usasse óculos arriscava-se a ser executado por ser tomado por intelectual. Evidentemente, o Brasil não chegará a tanto. Mas os danos podem ser consideráveis. Se, hoje em dia, os poucos negros e pobres que conseguem chegar a uma universidade pública são tratados de igual para igual, daqui a pouco não será mais assim. Um aluno de pele escura será visto como alguém que "entrou pela janela", um futuro profissional sem preparo, que não encontrará o seu lugar no mercado. Com o irreversível declínio das universidades públicas, abarrotadas de alunos despreparados, os alunos de bom nível social que hoje são maioria nestas universidades, debandarão para as instituições privadas, que, pressionadas pelo aumento da demanda, aumentarão ainda mais os preços das mensalidades. Se hoje em dia um aluno pobre e negro ainda consegue, com grande sacrifício, entrar para uma boa universidade pública e obter uma boa formação, em breve nem isto será mais possível. A escolha será, ou ter dinheiro para pagar uma instituição privada, ou ganhar de mão beijada um diploma que não vale nada.

Mas em que ponto as supostas boas intenções se perderam? Não é lamentável que as instituições públicas, gratuitas, abriguem alunos de boa condição financeira, que poderiam perfeitamente pagar uma faculdade privada, ao invés de abrigar alunos pobres, que não tem recursos para o ensino pago? Sim, é injusto. Mas não ilógico. Se os estudantes pretos, índios e pobres em geral não entram para a universidade, não é porque sejam discriminados. A situação não é análoga aos EUA dos anos 60, berço das políticas de "ação afirmativa" agora imitadas pelos petistas. Lá havia um grande número de estudantes pretos perfeitamente aptos a ingressar em uma universidade, mas que não entravam porque não eram aceitos. Aqui, os "excluídos" simplesmente não tem capacitação, porque a escola pública não lhes deu preparo. Reformar o ensino básico e médio, contudo, passa bem longe dos projetos do PT.

Se o Brasil de 2000 não é o Mississipi de 1960, tampouco Lula é o Lincoln brasileiro. Lincoln, como se sabe, foi o presidente americano de origem humilde que acabou por se tornar um dos mais importantes da história. Isto, mais o fato de haver ele libertado os escravos, fazem de Lincoln um símbolo da ascensão do humilde. Eu concordo que nível superior não deva ser pré-requisito para se atingir a presidência, mesmo porque ninguém governa sozinho, e se o presidente não dispõe de um diploma universitário, seus assessores, sem dúvida, o possuem. E além do que, a história é abundante de exemplos de indivíduos que tinham alta formação cultural e foram péssimos governantes. Basta lembrar o primeiro ministério republicano. Tinha Rui Barbosa na pasta da fazenda e Benjamin Constant na pasta da educação. Rui promoveu a desastrosa política do encilhamento, que resultou em descontrolada inflação, coisa que nunca se viu no tempo do império. Benjamin Constant promoveu uma esdrúxula reforma educacional de acordo com suas convicções filosóficas, que só não causou maior dano porque nenhum funcionário a levou a sério. Uma das disposições declarava que, a partir de então, a freqüência passava a ser facultativa - e no dia seguinte ninguém foi à aula. Rui Barbosa e Benjamin Constant são um desagradável exemplo de que inteligência, cultura, honestidade e boas intenções não são garantias de um bom governo. Na política, antes de tudo, é necessário que se saiba agir politicamente. E isto Abraham Lincoln sabia. De fato, ele teve origem humilde, mas esta nunca foi apontada como sendo uma credencial que o tornaria superior aos demais - ao contrário, foi apontada como um obstáculo que ele teve o mérito de superar. Lincoln não deixou de prosseguir seus estudos no decorrer de sua carreira política, tornou-se rábula (advogado prático) e posteriormente obteve um diplomazinho em uma faculdade onde não precisava assistir às aulas, só fazer as provas. Os discursos de Lincoln eram toscos, repletos de metáforas sobre a vida no campo, a semeadura e a colheita, mas eram coerentes com as idéias políticas que defendia. Nada semelhante a Lula.

Eu quero crer que estas sandices não sejam mais que os cacos do velho programa utópico do PT, que foi jogado fora, mas nem tudo coube na lata do lixo. Mas repito, os danos podem ser consideráveis, e mesmo irreversíveis. Como afirmou um certo filósofo, a ignorância se cura com o aprendizado, a luxúria se remedia com a temperança, a ira se doma com a sabedoria, a insensatez juvenil desaparece com a maturidade.

Mas a burrice é para sempre.

 

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