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Nova Abolição de Cristovam |
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Publicado em junho de 2002 na revista Isto É, o artigo de Cristovam Buarque - Por Uma Nova Abolição - aponta uma analogia entre a abolição da escravatura, ocorrida no passado, e a necessidade presente de "abolir" a pobreza. Com este fim, ele defende um projeto que supostamente acabaria com a pobreza em uma década ao custo de R$40 bilhões por ano. Não chega a ser muito inspirador o artigo, mas também não é mera coleção de chavões. Na verdade, percebi nele um interessante painel dos erros conceituais que tem sido desde sempre repetidos por nossos políticos e intelectuais, frutos de uma abordagem necessariamente polarizada - povo X elite, esquerda X direita, capitalismo X socialismo - muito embora a "elite" sempre seja os outros, a direita praticamente não exista no Brasil (também são os outros), e o nosso regime econômico se pareça tanto com o capitalismo quanto uma chaminé se parece com um pára-raios. Já apontei essas distorções em vários artigos de minha página. Em suas afirmações, Cristovam revela-se confuso e perdido entre os antigos dogmas do pensamento de esquerda, nos quais já não crê integralmente, e sua constatação da real complexidade dos fenômenos sociais e econômicos, os quais não entende direito. Mas a confusão mental não deixa de ser um sinal de que ainda existe um fiapo de raciocínio, posto que, intelectualmente falando, nada há mais semelhante ao silêncio dos cemitérios do que o discurso monocórdio dos militantes. Munido de paciência, procurarei apontar, uma a uma, as contradições neste labirinto de pensamento tortuoso. ISTO É- Criança continua sendo sua principal preocupação? Cristovam- Continua. Toda criança na escola, toda escola de qualidade. Se fizermos isso, o resto se resolve. É claro que junto tem a erradicação da pobreza. Do ponto de vista conceitual, creio que estou contribuindo ao romper com a visão tradicional de que a pobreza se erradica através do crescimento econômico. Ele é um instrumento fundamental para aumentar a riqueza, não para reduzir a pobreza. Até há algumas décadas, havia lógica e evidências na idéia de que aumentando riqueza se reduziria a pobreza porque a riqueza se espalhava. A riqueza não se espalha, concentra-se. A estrutura econômica força a isso. E a maneira de erradicar a pobreza também não é desarticular a economia dos ricos como se pensava na época da proposta socialista. Cristovam faz várias afirmações corretas - que a base de tudo é a educação de qualidade, que o crescimento econômico pode ser concentrador de riqueza, que a proposta socialista está superada. Mas a colocação é feita de forma a induzir ao erro. Ao concluir que o crescimento não é a solução, posto que concentra a riqueza ao invés de espalha-la, insinua-se que o crescimento econômico per si não traz nenhum benefício para o pobre, ou que, pior ainda, o enriquecimento do rico é conseguido ao custo de empobrecer o pobre. Há um enorme mal-entendido nisso. É verdade que o crescimento econômico pode causar o aumento na concentração de riqueza (embora isto não seja a regra), mas o que sucede, na verdade, não é o aumento apenas da renda do rico, mas sim o aumento diferenciado das rendas do rico e do pobre. Tanto a renda de um quanto a renda do outro aumentam, mas a renda do rico aumenta mais rápido que a renda do pobre. Uma vez que em uma família de operários todos trabalham, uma situação econômica onde haja pleno emprego por si só permite o aumento da renda familiar, mesmo que os salários não tenham aumentado nada. O crescimento acompanhado de concentração de renda tem sido uma característica da economia brasileira nas últimas décadas, mas está longe de ser exclusividade nossa. A economia dos EUA também tem apresentado uma tendência concentradora, e a concentração de riquezas, no mundo todo, é hoje ligeiramente maior do que era anos atrás. Não conheço fórmulas infalíveis para combater esta tendência, mas conheço alguns exemplos. Veja o caso da Coréia do Sul, que foi, desde os anos sessenta, o exemplo mais notável de crescimento econômico acompanhado de distribuição mais eqüitativa de riquezas. Este resultado foi conseguido graças a investimentos massivos na alfabetização e na educação básica. Há uma lógica nisso: o pobre vive do trabalho, a educação aumenta a qualidade deste trabalho, e portanto, aumenta o valor deste trabalho (desde que, é claro, se esteja em uma economia de mercado. O socialismo educou as massas e produziu doutores que ganham 30 dólares mensais). A Coréia do Sul, desta forma, segue o mesmo caminho do Japão, que é hoje o país onde há menor distância entre ricos e pobres no mundo inteiro. Nessa mesma época (anos sessenta), o que fizemos por aqui? Algumas tentativas. Houve o boom do ensino superior, mas como os ensinos médio e básico não tiveram uma expansão similar, eles não puderam suprir um pool adequado de candidatos à universidade, e o resultado foi uma queda aguda na qualidade do ensino superior - aumenta a quantidade, baixa a qualidade. O governo dos generais tentou o Mobral, lançado com alarde, mas de pouca eficácia. Já a esquerda, alijada do poder, via o ensino básico como mero pretexto para doutrinação política das massas (método Paulo Freire). O fato é que ninguém, seja "direita" ou esquerda, percebeu a real importância da educação básica como motor do crescimento econômico. ISTO É- Aumentar o salário mínimo é um bom começo? Cristovam- Dobrar ou triplicar o salário mínimo em curto prazo é demagogia. (...) Aí quebra a economia brasileira, que foi montada para atender à demanda dos ricos e não às necessidades dos pobres. (...) A solução para o problema da pobreza da pobreza não está no salário e sim na garantia de que todos terão acesso a bens e serviços essenciais. É mais ou menos como na época da escravidão. A abolição não aconteceu para aumentar a renda do escravo nem para resolver um problema de crescimento econômico. Era uma questão ética. Cristovam está ciente de que não se cria riqueza por decreto, o que já é um bom começo. Mas seu raciocínio derrapa no maniqueísmo piegas. A economia brasileira, diz ele, "foi montada para atender à demanda dos ricos e não às necessidades dos pobres". Mas todos sabemos que a única demanda que a economia atende é a demanda do mercado. Os ricos não são mais gananciosos ou mais egoístas do que os pobres, eles simplesmente detém uma parcela maior do mercado por terem mais capital para gastar ou investir. A analogia que Cristovam traça entre a escravidão e a pobreza sugere que esta, assim como aquela, é uma situação deliberadamente imposta ao indivíduo por uma classe (os donos de escravos antigamente, os ricos hoje em dia) e que poderia ser abolida mediante em ato político-legal (uma lei de abolição). Isto é simplório. Uma coisa é status legal, outra coisa é quantidade de riqueza. Se houvesse uma fórmula infalível de acabar com a pobreza, ela já teria sido descoberta, mas tudo o que sabemos é o que a experiência mostra: quanto mais o Estado define políticas e regulamentos com a intenção de acabar com a pobreza, mais a pobreza se expande. Também é ilusória a idéia de que a riqueza do indivíduo não consiste de sua renda e de seus bens privados, mas sim dos serviços do Estado de que ele dispõe. Se fosse assim o comunismo não teria caído, pois o que não faltava nos países comunistas eram serviços do Estado para todos os cidadãos. Mas aparentemente os cidadãos preferiam ter renda e bens de consumo. Um favelado que não tem sequer comida para por à mesa não se sente mais feliz porque uma tubulação de esgoto é colocada na favela. Se pudesse escolher, ele preferiria ganhar melhor e construir sua casa em um local onde já houvesse esgoto. A ilusão de que a miséria das favelas deve ser sanada com obras de benfeitoria traz péssimas conseqüências. Para começar, as favelas são dominadas por facções criminosas, que não permitirão em seus domínios nenhuma obra que não seja de seu interesse. Isso implica em negociações com os líderes do crime, e o resultado, que está à vista de todos, é o estreitamento cada vez maior das relações entre bandidos e autoridades públicas. ISTO É- O que fazer com as famílias pobres até cinco anos? Cristovam- A direita propõe o crescimento econômico para aumentar a renda e possibilitar o pagamento das creches particulares. A esquerda quer garantir creches para todas as crianças até cinco anos. As duas são fantasiosas. Para essas crianças seriam necessárias entre 30 mil e 50 mil creches. O Estado não tem dinheiro para fazer nem competência para gerenciar isso. Imagina contratarmos gente para trabalhar em 50 mil creches. A minha proposta é mais simples e dentro do mercado: garantir licença remunerada para toda mulher, trabalhadora ou desempregada, para que ela crie os filhos até cinco anos.
Cristovam insiste na dicotomia direita X esquerda como sinônimo de Nós X Os Outros, mas isso não é o mais importante aqui. Cristovam lança teses, mas os argumentos que expõe, ao invés de confirma-las, refutam-nas. Ele afirma serem fantasiosas tanto a proposta da "direita" quanto a da esquerda. A proposta da esquerda ele explica porque: falta dinheiro e pessoal (e isto é verdade). Mas a proposta da direita, ele abstém-se de dizer por que motivo seria fantasiosa. E se o Estado não tem dinheiro para montar creches, de onde viria o dinheiro para pagar essas longuíssimas licenças-maternidade? Alguém fez as contas para provar que isto realmente estaria mais "dentro do mercado"? E se as licenças serão pagas até a mulheres desempregadas, aí está um ótimo motivo para se fazer um filho atrás do outro ao invés de procurar emprego. E as que trabalham, quem garante que elas não vão continuar trabalhando ao invés de ficar em casa cuidando dos filhos, para assim acumular salário mais benefício? E talvez - ironia - pagar uma creche particular com essa renda extra... Cristovam, em outro trecho, reclama dos empresários que desvirtuam os incentivos fiscais e os usam para montar ranários, mas aparentemente considera que a perfídia e a malandragem são exclusivas dos ricos. ISTO É- A reforma agrária não seria a base de todos esses programas sociais? Cristovam- Seria. Ela faz parte do que chamo de projeto áureo e está dentro da mesma lógica: mobilizar uma quantidade de terras sem homens e de homens sem terra para que juntos produzam comida. Isso resolve o primeiro problema da pobreza, além de gerar renda para aqueles que vão trabalhar no campo. Esse é um dos itens mais caros do meu projeto, R$ 5 bilhões por ano. (...). Mais uma vez a lógica simplista a serviço do raciocínio simplório. Há terras sem homens e homens sem terras, então a solução é dar estas terras àqueles homens. Há pessoas passando fome, então a solução é plantar para comer. A solução de tudo seria, portanto, a agricultura de subsistência... Cristóvam esqueceu-se de questionar por que motivo aquelas terras estão "sem homens". O imaginário esquerdista vê o latifundiário como um sujeito gordo, bruto, burro, egoísta e insensível, que por pura maldade mantém uma gleba imensa abandonada e coberta de capim, enquanto do outro lado da cerca os trabalhadores olham famintos... Pode-se até apontar muitos defeitos nos latifundiários, mas geralmente eles gostam de ganhar dinheiro. E se eles deixam aquela terra improdutiva, ao invés de plantar, é porque a exploração daquela terra não é economicamente viável no momento. Isto ocorre por uma variedade de razões: solos inférteis, clima ruim, ausência de vias de escoamento para a produção, baixa cotação no mercado. Esses mesmos fatores determinarão o insucesso dos assentamentos feitos naquelas terras. Bom, pelo menos os assentados poderão plantar para comer, e assim viverão sem fome, na base de uma dieta de arroz no almoço e feijão no jantar, sete dias por semana. Isto se uma praga ou seca prolongada não destruir o roçado - aí a fome voltará, e não restará sequer o recurso de jogar a culpa do latifundiário. A persistência dessa lógica simplista, de Terra Sem Homem = Homem Sem Terra = Fome, revela uma tenaz incapacidade de compreender os princípios mais elementares da economia de mercado. Há fome no Brasil, não devido à falta de terras para plantar, mas sim devido à falta de dinheiro para comprar o alimento produzido por fazendeiros profissionais. Aliás, a posse de um lote de terra não é de modo algum requisito fundamental à existência, a menos que se deseje voltar no tempo e recriar uma sociedade rural arcaica. O rótulo "Sem Terra" faz eco com "Sem Teto", e sugere que o primeiro seria tão essencial quanto o segundo. Mas então, por que não há o movimento dos "Sem Restaurante", "Sem Barbearia", "Sem Consultório", "Sem Botequim" ou dos "Sem Oficina"? ISTO É- Não é uma comparação injusta com um país de Terceiro Mundo? Cristovam- Não. A pobreza brasileira é culpa dos brasileiros. FMI e imperialismo podem impedir o crescimento, mas não são eles os culpados da existência da pobreza. É um notável progresso ouvir um petista reconhecer que a pobreza brasileira é culpa nossa mesmo (embora a questão toda seja demasiado complexa para que se possa falar de "culpa" de um indivíduo ou grupo de pessoas). Mas a seguir, ele se contradiz ao afirmar que o FMI e o imperialismo podem impedir o crescimento. Afinal, a culpa é deles ou não? Como de costume, todos abrem a boca para protestar contra as absurdas exigências dos banqueiros internacionais, que provocam a paralisação do crescimento, mas ninguém se lembra de questionar por que motivo, quase 200 anos após a independência, ainda temos uma dependência aguda do dinheiro emprestado, que não serve de base para nenhum crescimento auto-sustentado. Onde está a nossa poupança interna? Bem, aí a culpa é nossa mesmo. O índice de poupança por aqui nunca passou de 10% da renda, enquanto que em Taiwan ou na já citada Coréia do Sul, chega a 25%. E já era assim desde os anos sessenta, quando esses países eram mais pobres do que nós. Podemos procurar aumentar a poupança interna, ou então cruzar os braços e esperar que os banqueiros estrangeiros se conscientizem de suas graves responsabilidades quanto a sustentar o crescimento dos países de Terceiro Mundo... Não sei dizer se Cristovam Buarque é um típico representante do ministério petista, ou se é uma exceção individual. Mas é provável que a mesma confusão de conceitos que apresenta aqui também esteja na mente de toda uma geração, que é pós-anos sessenta, pós-muro de Berlim, mas ainda bastante influenciada pela esquerda ortodoxa. Não deixa de ser um progresso. Há rachaduras no muro do dogma...
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