O Brasil e o Mundo Ocidental | ||
Pouca gente se dá conta, e dos que dão conta, poucos dão a devida importância ao assunto, mas uma descoberta que fiz recentemente, e que chamou minha atenção, foi que boa parte do Mundo Ocidental não considera o Brasil parte do Mundo Ocidental. Outros também - jornalistas, acadêmicos - fizeram a mesma descoberta, com surpresa e alguma apreensão: o professor de literatura Alex Castro, trabalhando em uma universidade norte-americana, descobriu que seus alunos matricularam-se em seu curso porque queriam ter contato com uma literatura não-ocidental. O jornalista Guga Chacra fez a mesma descoberta. E a também jornalista Gisela Anauate conta como descobriu em Paris que não era ocidental. Faz diferença? Essa podia ser uma discussão bizantina sobre conceitos subjetivos, mas faz diferença, sim. Por detrás da exclusão do Brasil do imaginário ocidental, há posturas pessoais e atitudes que podem efetivamente prejudicar-nos. Não confio em quem pensa isso de mim. Podemos afirmar: afinal, acreditem ou não, nós somos parte do ocidente, como provam nossa colonização, nossa língua, nossa religião, nossa cultura, nossa inserção em uma História européia que teve início quando Cristóvão Colombo aportou neste continente. Inútil: não se pode provar, cabalmente, que pertencemos ao Mundo Ocidental, pois esse conceito não tem uma definição estabelecida, mas pertence ao senso comum. O senso comum, como se sabe, muda com o tempo, e na época atual a ideia de Ocidente está ligada aos valores políticos e econômicos tornados dominantes a partir da hegemonia mundial européia. Pertencem ao Ocidente os países da Europa Ocidental, Os EUA, o Canadá, a Austrália e Nova Zelândia, pois são capitalistas, ricos e democráticos. O Brasil e o restante da América Latina não pertencem ao Mundo Ocidental porque são pobres. Ponto. Mas seguindo essa linha de raciocínio, o Japão também é incluído no Mundo Ocidental porque, afinal, também é capitalista, rico e democrático. A inclusão do Japão parece-me ainda mais absurda que a exclusão do Brasil. O Japão tem sua própria civilização, a qual, tendo cinco mil anos de História, é mais antiga que a própria civilização ocidental, que tem apenas dois mil anos. O caso é que a acepção em uso do conceito de Ocidente exclui toda referência cultural. Tornou-se um paradigma, reduzido de fato a sinônimo de Primeiro Mundo. Entretanto, se o senso comum pode modificar o sentido das palavras, não pode apagar o significado anterior, pois este continua registrado em impressos e na memória das pessoas: ocidente, no dicionário, ainda significa um lugar específico do mapa, e no contexto da presente discussão, sabemos que este lugar é a Europa Ocidental, e não outra parte do mundo. Uma vez que o Brasil foi colonizado por países da Europa Ocidental e é herdeiro da cultura aqui deixada pelo colonizador, penso que temos motivos pertinentes para afirmar que somos parte do Mundo Ocidental, tanto quanto norte-americanos, canadenses e demais países do Novo Mundo colonizados por europeus. Uma alternativa para contemporizar seria lembrar que a formação do Brasil não incluiu somente europeus, mas também índios, africanos e asiáticos. Soa bem. Mas não resolve a questão: sob esta lógica, EUA, Canadá e Austrália também seriam países não-ocidentais. No entanto, não são apenas europeus e norte-americanos que querem nos excluir do Ocidente; muitos latino-americanos têm o mesmo propósito, mas com objetivos diferentes. Todos se lembram quando Hugo Chávez, na Venezuela, declarou que não mais comemoraria o dia da descoberta da América, posto que não havia nada a comemorar, uma vez que o que teria de fato ocorrido foi uma invasão que trouxe a desgraça aos povos originários. Esta não é a opinião apenas de líderes carismáticos, muitos antropólogos e historiadores endossam a tese: a civilização latino-americana já existia em 1492 quando foi invadida por europeus. Assim, o que existe hoje nessa parte do globo não seria uma parte da civilização ocidental, mas uma civilização créole, mesclando elementos europeus com ameríndios. Vale conferir. Há de fato locais da América do Sul e Central - os Andes, o México, o Caribe - onde existem descendentes de antigos povos autóctones que falam a língua e praticam costumes de seus ancestrais. Mas são apenas aqueles poucos grupos étnicos que eram evoluídos e tinham cultura vigorosa quando o europeu chegou. Na maior parte do continente, a população indígena era primitiva e foi totalmente aculturada, deixando como legado apenas vestígios de sua cultura original. O brasileiro pode ser caboclo ou mulato, mas não fala tupi ou ieorubá, fala o português deixado pelo colonizador. Não acredito ser válida, do ponto de vista antropológico, a definição de uma civilização sul-americana original e distinta da civilização ocidental. Ou melhor dizendo, a civilização sul-americana não é uma civilização, mas um gueto, um conceito que foi inventado para aparta-la do Mundo Ocidental. A quem interessa aparta-la? Do nosso lado, aos nacionalistas exaltados, que desejam afrontar o antigo colonizador, ao mesmo tempo em que cortejam os antigos descendentes de índios e criam um senso de solidariedade com o resto do Terceiro Mundo. Na extremidade oposta, os membros ricos do Mundo Ocidental desejam apartar-nos porque, do contrário, teriam que admitir que o Mundo Ocidental contém países pobres. Uma vez que na conceituação destes, o Ocidente foi reduzido ao paradigma Capitalista-Rico-Democrático, então por definição não existem pobres no ocidente. Vê-se que tanto de um lado quanto do outro a exclusão da América Latina do Ocidente esconde sentimentos mutuamente hostis, senão de baixa paixão, por detrás do arrazoado tecnicista. Nós nos excluímos porque desejamos renegar nossos colonizadores; eles nos excluem porque lhes é vergonhoso compartilhar seus contexto civilizacional com pobres. Uma abordagem desapaixonada, a meu ver, não pode concluir outra coisa senão que a América Latina é um ocidente pobre, e que a civilização ocidental, como toda civilização, também contém partes pobres. De resto, mesmo os membros do Mundo Ocidental tidos atualmente como efetivos não foram sempre ricos, nem foram sempre democráticos. E não custa lembrar que o comunismo, tanto quanto o capitalismo, surgiu no cerne mesmo do Mundo Ocidental antes de espalhar-se pela periferia. Acredito que devemos, sim, afirmar nossa condição de membros do Mundo Ocidental, ao invés de relativizar a questão. Somos um ocidente pobre, mas tão produto da colonização européia quanto EUA ou Austrália. Abir mão desse vínculo só tem o efeito de nos deixar à deriva, privados de referenciais, tentando construir do zero uma hipotética civilização latino-americano. O próprio nome é autocontraditório, pois afinal, de que outro lugar veio o latino, senão da Europa? Que eu saiba, o Latium era a região da Itália central onde surgiu Roma. Trata-se de outra mistificação que bem devíamos combater: assim como o conceito de Mundo Ocidental tem sido transmutado em Primeiro Mundo, o conceito de latino tem sido transmutado em não-europeu (ou não-branco), ou seja, o que é originado da América do Sul ou Central. É um erro enorme. Nossa latinidade é o vínculo que nos une ao cerne mesmo da civilização ocidental, que conforme se sabe, é formada pela conjunção da herança greco-romana (ou latina) com a tradição judaico-cristã.
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