Lula e o Futuro  
  Nestes dias de crise do PT, nosso futuro anda incerto, o que não é novidade. Brasileiros, desde muito nos acostumamos a viver em uma exígua janela de tempo - voltando os olhos para trás, pouco vemos, dada nossa propensão a esquecer o passado; tentando divisar o futuro, vemos ainda menos, dada nossas indefinições e falta de estratégias de longo prazo. Tendo o hábito de leitura e memorização, eu consegui enxergar mais fundo no passado e tirar algumas conclusões sobre o presente, mas confesso que, para perscrutar o futuro, sou bem menos eficiente. Já foi pior, sem dúvida - na época da alta inflação, o futuro de todos os brasileiros não ia além do fim do mês - mas ainda é muito difícil o exercício da futurologia nesta terra. Um dado, entretanto, parece estar ganhando contornos cada vez mais nítidos: o futuro é Lula.

Parece contraditório. O PT se esfacela em uma crise interminável, e no entanto, lá está o homem liderando todas as pesquisas. Na realidade não há contradição alguma, simplesmente Lula e PT nunca foram a mesma coisa - e quem está em crise é o PT, e não Lula. Se no início dos tempos Lula foi mera figura-de-proa de um partido que se intitulava "dos trabalhadores", mas que não tinha trabalhador algum - só estudantes e intelectuais marxistas, padres adeptos da Teologia da Libertação e ex-guerrilheiros anistiados - agora os papéis estão invertidos, e é Lula quem leva de reboque o PT. É até uma boa oportunidade para ele se livrar da carcaça de um partido do qual se serviu no passado para chegar ao poder, mas que atualmente não lhe tem mais qualquer serventia. Já é notória a fama de mentiroso de Lula, mas houve uma vez no passado em que todos julgavam que ele pregava uma boa mentira, mas no entanto falava a mais pura verdade: refiro-me àquela entrevista em que o recém-eleito presidente afirmava que "não era de esquerda". Ele não estava mentindo. Lula jamais foi de esquerda no sentido de comungar ideologicamente com aqueles refinados intelectuais marxistas que, vinte e cinco anos atrás, o cooptaram para entrar no recém-fundado PT. Ele nunca se interessou por ideologias ou teorias políticas. Mas afinal, de qual Lula estamos falando? Aquele de antes de chegar a presidência, ou o de agora?

Há, sim, dois Lulas, mas ao contrário do que pensa a maioria daqueles que se decepcionaram com ele, os dois Lulas a que me refiro não são o "antes" e o "depois". Lula não mudou em nada após chegar à presidência. O caso é que sempre houve dois Lulas, desde o início. O primeiro deles é o ícone ao qual nos habituamos há vinte e cinco anos: o herói-operário, o legítimo representante da classe trabalhadora, aquele que não apenas defende os interesses do povo, mas encarna este mesmo povo, uma vez que também foi um trabalhador. Enfim, há um tosco, porém espontâneo sentimento de identificação do zé-povinho para com o barbudo metalúrgico ao qual falta um dedo na mão, que assim seria "um de nós", com as mesmas idéias, a mesma cara, os mesmos sentimentos, a mesma fala errada, igual a qualquer operário encontrável em qualquer botequim de qualquer esquina. Faz um certo sentido - ao menos no início da vida Lula foi um simples trabalhador. Mas por trás desta tosca utopia do zé-povinho existe uma outra utopia, esta mais sofisticada, e criada não pelo povo, mas pelos intelectuais universitários. A teoria marxista da Luta de Classes afirma a existência de uma ideologia da classe dominante, que supostamente seria a crença de todo e qualquer indivíduo oriundo desta classe. Assim sendo, nenhuma mudança é possível com um presidente vindo das classes burguesas, ainda que formalmente identificado com as aspirações populares, pois seu modo de pensar e agir é determinado pela ideologia da classe dominante à qual pertence. Para se chegar ao socialismo, faz-se necessário colocar no poder um indivíduo que não esteja imbuído desta mentalidade - espécie de criatura pura, autêntica, um filho do povo não corrompido pelas elites. Somente esta mítica criatura seria capaz de romper com a ideologia da classe dominante e implantar o verdadeiro governo do povo, livre da corrupção burguesa e imbuído de uma ética proletária. Aqueles indivíduos influenciados por esta linha de pensamento - em geral indivíduos de condição social e cultura acima da média - tenderam a ver em Lula a encarnação deste messias operário, espécie de bom selvagem rousseauniano transplantado da selva para a linha de montagem de uma fábrica. Neste contexto, sua rusticidade e ignorância não constituiriam defeitos, mas qualidades intrínsecas àquele que veio romper com as elites, a marca da simplicidade e da autenticidade do puro homem do povo, contrapostas à erudição e falsidade peculiares aos ricos. Muitos quiseram crer que Lula, uma vez empossado, seria tudo aquilo que eles imaginavam.

Mas há o segundo Lula. Mais precisamente, o verdadeiro Lula, aquele homem de carne e osso que nada tem a ver com as fantasias dos intelectuais e intelectualóides. A história de Luiz Inácio começa lá pelos anos setenta. Ironicamente, ele é um produto - não planejado - do regime militar. Explico: antes de 1964, os sindicatos "pertenciam" a partidos políticos, e eram loteados pelos líderes destes partidos tal como os pontos de Jogo do Bicho são loteados pelos bicheiros de hoje em dia. Após o golpe, as lideranças sindicais foram cassadas, e inicialmente substituídas por interventores. Mas esta remoção de pelegos abriu caminho, a longo prazo, para o surgimento de uma nova geração de sindicalistas desvinculados de partidos políticos e realmente oriundos do operariado - homens assim como Lula. Ao mesmo tempo, o crescimento industrial promovido na época multiplicou o número de operários e fez crescer o poder de barganha de diversas categorias, como os metalúrgicos. Com a liberalização do regime, ali pelo fim dos anos setenta, esta demanda reprimida explodiu em reivindicações, e Lula liderou as primeiras greves vitoriosas desde o início do regime militar, provocando a euforia das lideranças de esquerda, que logo o escolheram como seu herói. Não passou pela cabeça destas pessoas, contudo, que o sucesso de Lula devia-se a ser ele um exemplo de sindicalista profissional, desvinculado de partidos e ideologias, que conduzia uma luta voltada unicamente para a obtenção de ganhos salariais para a categoria que representava, a qual logo seria considerada uma espécie de "aristocracia" do operariado. Não importava. Ali estava o messias, e Lula foi seduzido por estes senhores fundadores do PT para trocar a carreira de sindicalista profissional pela de militante profissional. Lula topou, e desde então tem executado o papel que lhe foi dado executar. Chegou à presidência sem haver administrado uma única prefeitura do interior, e sua carreira política consiste de um único mandato de deputado federal, do qual não se conhece um único projeto de lei que tenha apresentado. Empossado, não tem rotina administrativa. Não permanece em seu gabinete despachando, não faz reuniões de ministério - mesmo porque não há mesa no palácio onde caibam todas as suas dezenas de ministros - mas dedica-se a uma infindável representação, como um ator em um palco, ou um político em eterna campanha, ora aqui, ora no exterior, mas sempre em turnê. É este o Lula que tem reais chances de ser reeleito.

Fica a pergunta no ar: como pode desfrutar de tanto prestígio um personagem tão oco, tão vazio, com tanta discrepância entre promessas e resultados, envolto em escândalos de tal magnitude? Acaso nosso eleitorado terá perdido de vez o juízo? Pois é óbvio que se trata de um enganador. Então, por que?

Mas afinal, a quem Lula enganou? Àqueles que o viam como redentor do proletariado, portador da sabedoria e das virtudes do povo humilde, destruidor dos poderes da elite corrupta? Se é assim, pode-se afirmar que Lula só enganou àqueles que queriam ser enganados. Categoria não muito numerosa, pois como já foi dito, aqueles que pensam assim não são homens do povo. Já o verdadeiro homem do povo, este jamais idealizou Lula como figura imaculada. Pois o homem do povo sabe muito bem que um apurado senso de ética e moral no trato com a coisa pública não é de modo algum característica do populacho. E justamente por ver em Lula um igual, eles admitem em Lula os mesmos defeitos que reconhecem em si próprios. O zé-povinho jamais cobrou de Lula ética na política. Cobrou de Lula, isto sim, programas assistenciais, conforme é esperado de cidadãos demasiado pobres e ignorantes para terem uma visão de longo prazo, e como Lula tem sido pródigo em conceder-lhes este assistencialismo rasteiro - são tantos os programas que nem me vêm à memória agora, mas os pobres com certeza os conhecem - então pode-se afirmar que Lula não enganou a este eleitor pobre e numeroso, confinado aos rincões do Brasil profundo. Justamente por merecer a confiança deste eleitor é que Lula tem seu voto.

É bastante lícito, portanto, admitir que nosso futuro é Lula. E como será este futuro? Impossível prever, mas a julgar pelas experiências que tivemos, este futuro não será muito diferente do passado. Pois o estilo de Lula nada tem de novo: este populismo rasteiro, recheado de promessas e despido de ideologias, é praticado há várias gerações pelos chamados políticos tradicionais. Assim como Lula, Antônio Carlos Magalhães e Severino Cavalcanti também sabem falar uma linguagem que o povão entende. Considero mesmo relativamente secundária, como elemento catalisador do eleitorado, a condição de Lula como homem oriundo das massas, condição esta freqüentemente apontada como sendo o grande trunfo de Lula, que assim induz o homem do povo a se identificar com ele. Mas no julgamento do homem do povo, a riqueza pessoal do candidato jamais constituiu um defeito. Vale a Lei de Joãozinho Trinta: o povo gosta é de luxo, quem gosta de miséria é intelectual. Vá lá que intelectuais oriundos da classe média idealizem a miséria como um estado superior de consciência social, ou que religiosos bem alimentados vejam na miséria um estágio superior de evolução espiritual. Mas o zé-povinho, que conhece a miséria desde que nasceu, dela só sente aversão.

Por quanto tempo durará esta "Era Lula"? Bem, se mesmo o futuro próximo é difícil de prever, o futuro longínquo é ainda mais difícil. Acredito que Lula extorquirá o máximo de impostos dos cidadãos e empresas privadas capazes de contribuir, concentrará o máximo possível da riqueza do país nas mãos do Estado, tudo isto para que permaneça operando a máquina assistencialista que manterá no poder a si próprio e a um eventual sucessor. Este método de governo pode não ser eficiente para conduzir à prosperidade, mas representa o desejo da maioria do eleitorado, ao menos no presente. Depois, não sei. Haverá um momento em que mesmo este eleitor pobre e ignorante se cansará de tanta incapacidade e roubalheira, e acabará por direcionar suas intenções de voto a candidatos com outro discurso. Então poderemos, talvez, prosseguir do ponto em que pararam as reformas iniciadas pelos "neoliberais" Collor e FHC, e quem sabe leva-las a termo. O problema é que, por esta época, o tal do neoliberalismo já será um sistema arcaico...

Mas uma coisa acabou mesmo: o PT. Pode até continuar como partido majoritário, mas o encanto foi quebrado: nunca mais se poderá acalentar a doce fantasia de que o operário é moralmente superior ao burguês. Agora já provamos do remédio. Ao abandonar o discurso marxista-fantasioso dos intelectuais petistas, Lula em verdade não cometeu traição alguma. Apenas deu por encerrado o compromisso que pactuou com estes senhores vinte e cinco anos atrás, cessou de representar e retornou a seu elemento original.

 

 

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