Livro Partido

 
 

Poucos livros tem um título tão bem escolhido quanto Cidade Partida, de Zuenir Ventura. Lançado após 1968, O Ano que Não Terminou, confirma a reputação do autor como criador de títulos sugestivos, bem como o misto de brilhantismo e equívocos grosseiros que marca a geração 68.

Dividido em duas partes - o passado e o presente - o livro é de fato um livro partido, na medida em que a competência da primeira parte nada tem a ver com a repetição de acintosos clichês que marca a segunda parte. Zuenir é brilhante ao identificar, nos "dourados" anos 50, as sementes do caos que está agora à vista de todos. Entre as duas metades há um salto de 24 anos - de 1960 para 1994, ano da chacina de 21 pessoas em Vigário Geral, episódio que o autor considera emblemático dos novos tempos - e nesse salto, ele parece ter perdido a capacidade de unir as causas às conseqüências. Unir as causas, que identificou com competência, às conseqüências, que estão aí e não precisam ser explicitadas.

Zuenir e sua comitiva deslocaram-se numerosas vezes para a favela de Vigário Geral, tornaram-se íntimos e gravaram horas de conversa com Flávio Negão, o chefe do tráfico de área - fato que em si já me parece repugnante, mas vá lá, o homem é um jornalista e está fazendo o seu trabalho - mas o retrato que produz é a reedição pela enésima vez do surrado mito do bandido bonzinho, protetor da comunidade, primitivo mas de puros sentimentos, não mais que um inocente fantoche da "elite" maléfica.

Começa dando uma descrição da aparência do bandido, na qual procura afastar qualquer aparência ameaçadora: "lá ia pela rua, magro e minúsculo, anoréxico, com um vislumbre de cavanhaque e um bigode irrisório". Ele conta como protege a comunidade: "'Tomamos conta da favela 24 horas por dia. Tem duas turmas de vigias'. Como não cheira nem bebe, às seis da manhã Negão está sempre lampeiro para passar em revista as suas tropas. (...) 'Procuro ensinar a eles. (...) Às vezes tenho que dar um arrocho maior. Mas só mato em último caso'".

Que bonzinho, hein?

Ele conta como começou a vida de crimes: "O cara vai levando a gente para roubar um carro, depois rouba uma loteria, uma padaria, rouba uma farmácia, posto de gasolina. Eu nunca roubei foi ônibus, porque eu não queria roubar trabalhador. Ônibus só tem trabalhador".

Magnífico! Ele entende perfeitamente a diferença entre um trabalhador e um capitalista. Um modesto comerciante, dono da padaria da esquina, é um desprezível membro da classe dos proprietários, e supostamente nunca viaja de ônibus...

Ele conta o que fez com uma mulher que traiu o bando:

"Deve ter uns dois mês: foi o caso de uma mulher que rodou lá na boca e foi para a 39a DP. Chegou lá e disse pro delegado que sabia onde um moleque tinha escondido uma metralhadora. E levou os homes onde tava a arma. (...) O moleque pegou, não matou não. Deu um socão por dentro da cara dela e ela veio com o olho roxão aqui pra dentro. (...) Aí eu olhei pra cara dela e falei bem assim: 'Vem cá! Não foi a senhora que foi na 39?' 'É, realmente eu fui lá na 39' (...) Ela tava se passando como maluca. 'Ah, é? Então vamo embora conversar!' Levei lá na cachanga, peguei uma folha dela e tinha uns telefones da DRE. (...) Eu falei: 'Não precisa falar mais nada não!'. Levei prum canto e quebrei ela logo.

- Quando você diz que quebrou, quer dizer que você matou?

- Eu matei, é. No caso, eu matei.

- Você nunca sente remorso?

- A gente fica sentido, né? Mas também tirar a vida da pessoa, vamo dizer, sem ter fundamento nenhum, eu não tiro. Tiro sim, quando tou sabendo o que tou fazendo."

Mas como é sábio o sentimento inato de justiça do simples e puro povo da favela! São eles o generoso e genuíno homus brasileirus, em seu estado natural, não contaminado pela justiça corrupta das elites... Será que os autores da chacina de Vigáro Geral também ficaram sentidos?

Um coronel do exército analisa a situação da cidade com uma imagem: "para ele, diante de peixes bravos dentro de um aquário, há três alternativas: mergulhar no aquário, desde que se saiba nadar tão bem quanto os peixes; tirar os peixes de seu habitat, isto é, do aquário, deixando-os sem oxigênio; retirar a água do aquário com canudinho, acabando aos poucos com o oxigênio. (...) O coronel demonstrou sua preferência pela última alternativa. 'É preciso acabar com o oxigênio para os peixes bravos e oferecer cidadania para a população', disse a seu interlocutor surpreso. Como vocês estão fazendo com o Viva Rio'".

Os dois acabaram rindo porque Rubem César completou: "O problema, coronel, é que, enquanto a gente vai tirando com o canudinho, a água vai entrando aos baldes'".

Zuenir surpreendentemente reconhece a falência da falácia que sua geração impingiu a todas as mentes, até aos ex-inimigos coronéis do exército: a crença de que o combate ao crime só pode ser feito eliminando-se as causas sociais do banditismo. Ora, qualquer um que conhece mínimamente a criminalística sabe que o fenômeno é complexo, não necessáriamente ligado a carências materiais, e que as causas sociais e psicológicas da criminalidade não podem, sequer, ser conhecidas completamente, muito menos eliminadas.

Ao final do livro, Zuenir chega à previsível conclusão: "Onde estará a cabeça desta cobra de que só se vê o rabo? Nesses dez meses tive a quase certeza de que o verdadeiro controle do tráfico de drogas no Rio não estava nas mãos desses moleques (...) São semi-analfabetos, a maioria nunca saiu do Rio, muitos não saem nem da favela, se forem jogados dentro de um aeroporto internacional de perderão..."

Pronto! Chegamos ao ponto que o autor perseguia desde o início do livro - podemos dormir sossegados, os bandidos das favelas não passam de um bando de garotos levados, tão bobos, coitados, que se fossem levados ao aeroporto internacional se perderiam. Os verdadeiros e perigosos criminosos são os grandes traficantes de colarinho branco, membros da tal "elite" abominável cujos integrantes são sempre os outros. Mas quem são esses figurões? Flávio Negão prossegue:

- "Ah, isso eu já disse que num posso dizer pro senhor. É gente muito importante.

- Mas essas pessoas vem aqui?

- Que vem nada! Eu nunca vi a cara delas aqui. (...)

- Quer dizer que eles é que são o verdadeiro crime organizado?

- Ah, são, eles são muito organizados."

Mas quem são, afinal? Bem, já que não tem nome, podemos imaginá-los como quisermos. O rico. O delegado. O deputado. O empresário. O fazendeiro. O general. O almirante. O patrão. Qualquer um, menos o zé-povinho. Qualquer um, desde que esteja acima de nós. E assim, anestesiados pelo doce prazer que advém da falsa sensação de superioridade moral que experimentamos ao erguer o dedo acusador àqueles que, por este ou aquele motivo, estão acima de nós, consolamo-nos de nossa impotência frente a bandidagem. E assim vamos vivendo, se é que isso é vida.

 

  Início

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