Judas e o Código Da Vinci  
  Um fim de semana desses, por falta de coisa melhor para fazer, entrei em um cinema e fui ver o Código Da Vinci. Interesse pelo filme, mesmo, não tinha nenhum, apenas uma vaga curiosidade. Nunca fui de correr atrás do que está na moda, meus interesses sempre foram muito específicos. O problema é que todo o mundo fala das "revelações" contidas neste livro, e ao mesmo tempo veio à luz um tal Evangelho de Judas, confirmando antigas suspeitas quanto à verdadeira natureza da relação entre Jesus e Maria Madalena, bem como do próprio Judas, que não seria um traidor, mas um apóstolo fiel executando a ordem de Jesus no sentido de "sacrificar o homem que me reveste", e assim torna-lo divino. Se esta é a discussão do momento, bem, queria ao menos falar com conhecimento de causa. Mas o filme decepcionou-me. Embora repleto de ação, é excessivamente longo, e lá pela metade eu já torcia para que tudo se desvendasse logo, pois só assim a sessão acabaria e eu poderia ir para casa. Se um filme é bem movimentado, e ainda assim consegue ser tedioso, temos a prova cabal de que a história é ruim. Mas ao menos matei minha curiosidade.

Curiosidade esta que vem de longe. Talvez por haver estudado em colégio de jesuítas, sempre tive interesse por assuntos religiosos. Não que eu seja devoto, nunca fui. Aprecio a Bíblia, mas como leitura erudita ou documento histórico. Descobri coisas interessantíssimas lá. Houve época que eu gostava de divertir meus colegas contanto episódios de sacanagem explícita que eu havia encontrado em passagens aqui e ali - histórias como as filhas de Ló embebedando o pai e transando com ele, pois não havia outro homem por perto, e elas queriam ter filhos. Ou a nora de Judá fazendo a mesma coisa com o sogro. O que mais havia era incesto, como o filho de Davi violentando a meia-irmã, Tamar, e anos mais tarde um outro filho de Davi, Absalão (aliás, irmão de Tamar) após depor o pai e expulsa-lo da capital, faz questão de montar um cercado no meio da cidade e, à vista de todos, transou com todas as mulheres do harém do pai (não é dito se ele incluiu sua mãe entre elas). Enfim, passagens que os padres do colégio nunca mencionavam nas aulas de religião. Paradoxalmente, a descoberta destes segredos ocultos não tiveram para mim um efeito desmoralizante do texto sagrado, mas ao contrário, meu interesse aumentou. Hoje eu encaro estes episódios com mais tolerância, ciente de que não posso julga-los com a moral dos dias atuais (moral esta em grande parte construída pelo catolicismo, ironicamente). Os costumes dos povos do deserto de três mil anos atrás eram bem diferentes. Os limites do círculo familiar, bem como o tabu do incesto, não tinham sua feição atual. E a importância de conceber, de gerar descendentes, era uma coisa inominável - morrer sem descendentes era a suprema desonra, a incorrer neste risco era preferível dividir o leito com o pai ou o sogro.

A Bíblia tem muito a dizer quanto à História e quanto à maneira de pensar dos povos antigos. Como documento histórico, já teve mais prestígio. Não muito tempo atrás, estava em moda a afirmação de que "a Bíblia tinha razão", e volta e meia se descobria que fatos narrados no Livro, tidos como lendários, teriam ocorrido na realidade. Hoje, sabe-se que a Bíblia está errada em muitos tópicos. Por exemplo, o esplendor atribuído pelo Livro dos Reis ao período de Davi e Salomão não é possível, pois registros arqueológicos confirmam que, nesta época, os hebreus ainda eram um povo de pastores nômades, e mesmo as evidências de que estes reis existiram são tênues. A riqueza propriamente dita só viria séculos mais tarde, e sua fonte foi a localização privilegiada de Israel como importante rota comercial entre o Oriente e a África. Nesta época foram erguidas as construções mencionadas na Bíblia, só que os hebreus de então não eram mais um pio povo de pastores do deserto, mas uma população sedentária, vivendo sobretudo do comércio, e que não praticava mais o monoteísmo, posto que havia adotado as divindades dos povos vizinhos. Os reis ímpios não mais obedeciam aos sacerdotes, que por vingança reescreveram a História, atribuindo suas realizações a reis míticos de um passado remoto. Sem dúvida, houve outros episódios em que a Bíblia mostrou efetivamente ter razão. Mas as causas são perfeitamente naturais e explicáveis. Por exemplo, as sete pragas do Egito: a Bíblia menciona, primeiro, que o Nilo foi convertido em rio de sangue, depois veio a praga das rãs, seguida pela praga das moscas, seguida por doenças cutâneas nas pessoas e no gado. Depois veio a tempestade de granizo, a escuridão, e por último a morte dos primogênitos. A "praga do sangue" foi recentemente explicada como tendo sido a proliferação nas águas dos rios, que ocorre periodicamente até hoje, de uma certa alga vermelha que consome o oxigênio e confere à água um aspecto turvo. Em conseqüência, há mortandade de peixes, e as rãs debandam para longe das águas fétidas - daí a praga das rãs. Longe da água, as rãs morrem, e não há mais predador para as moscas - daí a praga das moscas. As picadas de tantos insetos transmitem doenças cutâneas para as pessoas e o gado - daí a praga das úlceras. As três pragas restantes não obedecem a um encadeamento, mas são eventos que até hoje ocorrem periodicamente, e que só tiveram seu efeito daninho aumentado em virtude da população já estar debilitada pelas pragas anteriores. A escuridão teria sido uma tempestade de areia, e a morte dos primogênitos teria sido causada por uma bactéria habitante dos estábulos - no Egito antigo, era função dos primogênitos ordenhar as vacas logo de manhã cedo.

Sem dúvida que o assunto é fascinante, e pode-se ficar um longo tempo tecendo especulações e hipóteses variadas. Em minha juventude de estudante de colégio católico, uma coisa que deixou-me particularmente fascinado foi a descoberta de que existiam outros evangelhos além daqueles quatro abordados pelos professores de religião. Em leituras aqui e ali, eu fiquei sabendo da existência de um outro menino Jesus, com mais poderes supra-naturais, mas paradoxalmente também mais humano, permitindo-se até ser iracundo e vingativo: transforma em porcos os moleques que não querem brincar com ele, e chega a fazer o pai ficar petrificado no instante mesmo em que ele tenta lhe dar um cascudo para castiga-lo por tantas malcriações. Eram os tais evangelhos "apócrifos", tão citados hoje em dia. Estando eu na idade madura, eles me impressionam bem menos. A maioria deles tem todo o aspecto de narrativas folclóricas, e penso que a recém-fundada Igreja Católica não seria levada a sério se desse crédito a histórias de um menino mágico que molda passarinhos em barro e ao bater palmas, dá-lhes vida, e quando um outro garoto vem atrapalhar seu brinquedo, ele dá um grito e o faz tombar morto, para em seguida ressuscita-lo com um toque do pé...

Mas há um aspecto que não pode ser negado: Jesus difere consideravelmente dos demais profetas judeus, tanto por sua pregação quanto pela vida que levava. Os outros profetas eram nacionalistas - para eles, a religião vinha junto com a independência e o poder dos judeus. E todos eles eram casados, não havia nenhum empecilho em conciliar a vida familiar com a vida religiosa. Por seu ascetismo, seu celibato, seu caráter apátrida e desapego ao poder e aos bens materiais, Jesus assemelha-se aos budistas - e de fato, uma das lendas mais veiculadas sobre sua pessoa dá conta de que ele, durante os anos de sua "vida oculta", teria viajado pelo oriente, onde aprendeu e deu forma à sua doutrina. Como sempre, não há provas. Mas, teria sido este o verdadeiro Jesus? Ou teria sido o esposo de Maria Madalena, como afirma o Código Da Vinci? Tampouco há como saber. O indício apontado pelo filme é o conhecido afresco de Da Vinci, A Última Ceia, onde Jesus aparece ao lado de um apóstolo que tem traços suspeitamente femininos, e que representaria, na verdade, Maria Madalena. Mas isto é um traço recorrente da pintura de Leonardo Da Vinci, que era homossexual e com freqüência utilizava modelos masculinos de traços feminis (há quem afirme que a própria Mona Lisa teria sido o retrato de um amante de Leonardo travestido). Enfim, não tenho nada a dizer, nem sim, nem não. Mas há um outro personagem bíblico que, sempre notei, é descrito de forma muito contraditória pelas escrituras. Este personagem também tem estado em evidência nos noticiários.

Refiro-me ao traidor, Judas Iscariotes. Passando ao largo da discussão quanto a ter sido ele de fato um traidor ou mero instrumento da vontade divina, a história como um todo me parece mal contada. Primeiro, como é que um apóstolo, que vinha seguindo Jesus há tanto tempo, de um momento para o outro decide trai-lo? Estaria ele ofendido ou desapontado com Jesus? Ou apenas interessado na recompensa? Se esta for a hipótese escolhida, então caimos em outra contradição: a Bíblia afirma que Judas vendeu Jesus por 30 denários, quantia que, arrependido, tentou devolver, mas que não pôde ser reposta no tesouro sagrado por se tratar de "dinheiro de sangue", então foi usada para adquirir um terreno onde se edificou um cemitério para estrangeiros. Ora, segundo a religião judaica, tanto os cadáveres quanto os gentios eram considerados impuros, de modo que um cemitério, ainda mais para não-judeus, decerto que não ficaria em uma parte valorizada da cidade. Os 30 denários valeriam, então, o preço de um lote em um subúrbio inóspito. Ou seja, Judas não só vendeu Jesus, como vendeu-o barato. Seria, então, o dinheiro sua real motivação? Não parece. Estranha também foi a forma como Judas apontou Jesus para seus captores, com um beijo. Jesus não estava foragido, nunca se escondeu ou se disfarçou, e ao ser abordados pelos soldados, estava com os apóstolos em um descampado. Acaso não saberiam eles reconhecer Jesus? Ou mesmo se não o identificassem, não poderiam ter levado todos presos? E mais inexplicável ainda foi o súbito arrependimento de Judas, seguido pelo suicídio, apenas um dia após a execução de Jesus. Não saberia ele que, ao entregar Jesus, estava quase que certamente enviando-o para a morte? Ou alguma coisa teria dado errado no plano?

Muito mal contado, sem dúvida. Mas as pistas devem ser buscados em outros trechos do evangelho, as raras passagens que falam de Judas. Uma delas é a que narra o primeiro encontro de Jesus com Maria Madalena. Pecadora arrependida, ela se ajoelha e lava os pés do mestre com um perfume caríssimo, provocando a indignação de Judas, que diz em alto e bom tom que aquilo é um absurdo, um desperdício, que aquele perfume deveria ter sido vendido e o dinheiro distribuído entre os pobres. Jesus responde: "pobres, sempre os tereis, a mim, nem sempre o tereis". Esta polêmica me soa familiar. Parece que Judas antecipou, em 2 mil anos, a crença dos atuais teólogos da libertação, segundo a qual as necessidades materiais dos pobres vem antes das necessidades espirituais. O apóstolo seria, então, uma espécie de militante. Há fortes indícios neste sentido, a começar por seu próprio codinome, Iscariotes, que não parece uma palavra hebraica. Recentemente foi levantada a hipótese de que se trataria de corruptela do termo latino sicarius, ou "aquele que carrega um punhal". Havia de fato uma seita de fanáticos, na época, conhecida como os portadores do punhal. Judas pode ter sido um egresso desta seita que aderiu a Jesus, mas nunca abandonou de todo seu ideário original, que propugnava a rebelião contra os romanos e o estabelecimento de um novo reino - na terra, evidentemente, e não nos céus, como pregava aquele messias de fancaria. O termo messias significa "ungido", referindo-se à cerimônia de investidura dos reis de Israel, que consistia de derramar-lhes óleo na cabeça. Se Jesus até hoje tem o codinome de o messias (christós em grego), isto significa que, ao menos por algum tempo, ele foi considerado candidato ao trono, devendo desempenhar um papel político e libertador concreto, e não abstrato. Uma fração de seus seguidores, sem dúvida, esperava dele este papel. Vendo que o mestre recusa-se a assumir uma postura revolucionária, prega a submissão a Roma (a César o que é de César), só quer saber de assuntos espirituais (meu reino está nos Céus) e ainda zomba de suas admoestações (pobres sempre os tereis, a mim nem sempre o terei), é possível que Judas tenha ficado enfurecido, e decidiu unir-se aos inimigos de Jesus. O que foi que deu errado, e levou Judas ao suicídio, jamais saberemos.

 

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