A Intifada Européia | ||
Começou
com a notícia que chegou de repente da Itália, onde mora
a irmã de meu cunhado. Alguém havia entrado sorrateiramente
no estacionamento do prédio e ateado fogo a vários veículos.
Quem teria feito semelhante coisa? Não sei. Mas não há
muito entraram na garagem de meu prédio, aqui no Rio de Janeiro
mesmo, não para incendiar carros, mas para arromba-los, e curiosamente
não roubaram nada. Então deixa para lá, já
temos problemas suficientes por aqui, e a Itália fica bem longe.
Mas logo vim a saber que aquilo que eu julgara ser um acontecimento fortuito
e inexplicável, na verdade já estava acontecendo a rodo
em toda a Europa desde uma semana antes. A onda começou na França,
onde dois garotos habitantes de um gueto local, fugindo da polícia,
foram se esconder em uma central elétrica, e ao subir em um transformador
de alta tensão, levaram um choque e viraram churrasquinho. Já
vi coisa semelhante acontecer no Brasil, mas a reação dos
franceses foi bem diversa. Simplesmente saíram pelas ruas incendiando
veículos, ônibus, lojas e até escolas. E a explosão
de fúria não durou um dia, mas continua até agora.
E não ficou restrita às vizinhanças do gueto onde
moravam os dois meninos, mas se espraiou por todo o continente: onde quer
que houvesse um gueto - ou favela, como diríamos aqui - os enragés
saíram a queimar veículos e tudo o que encontravam pela
frente.
A boa-nova caiu com todo o impacto sobre os nossos comentaristas políticos, intelectuais e intelectualóides. Vários desta chusma ergueram as mãos para os céus, julgando ver chegada a revolução que vem com a crise terminal do capitalismo, aquela que eles aguardam desde o século XIX. Este pessoal me lembra os primeiros cristãos da época de São Pedro. Em sua maioria escravos, eles julgavam, não sei bem por qual motivo, que o fim dos tempos estaria próximo, e logo os anjos desceriam dos céus para exterminar a humanidade, castigar os maus e premiar os bons. Inebriados por esta expectativa, eles viam qualquer acontecimento um pouco fora do comum, como o nascimento de um bezerro com duas caldas ou o aparecimento de andorinhas fora de época, como um sinal de que o fim dos tempos estava para chegar. Hoje em dia, são os neo-marxistas que se esmeram em identificar em qualquer arruaça no interior da Bolívia um sinal da tal "crise terminal do capitalismo". Em breve eles se igualarão a outro grupo de místicos, os sebastianistas, aqueles que ficaram esperando a volta do rei Dom Sebastião até 200 anos após o dito monarca ter sido trucidado na batalha de Alcácer-Quibir. Outros, mais metidos a anarquistas, interpretam o fato de os revoltosos estarem queimando veículos como um protesto contra a sociedade de consumo e a poluição do ar. Acham muito certo eles queimarem escolas, pois afinal é lá que se aprende a servir ao "sistema". Quase todos evocam a grande rebelião estudantil de maio de 1968 em Paris, e suspiram nostálgicos, ao mesmo tempo satisfeitos de ver renascer o velho espírito rebelde e libertário dos franceses. Só não entendem porque, desta vez, os brasileiros não estão imitando-os, e os favelados tupiniquins não estejam nem aí para o que estão fazendo seus colegas franceses. Poucos conseguiram suplantar a barreira do politicamente correto, e apontar um fato óbvio: os jovens franceses que estão queimando carros não são exatamente franceses. Na verdade, não são exatamente europeus. Não é segredo para ninguém que os guetos pobres da Europa não são habitados exatamente por pobres, mas por estrangeiros, nem todos eles pobres segundo a acepção terceiro-mundista do termo. A maioria destes estrangeiros é árabe e muçulmana. É também um engano julgar que os revoltosos são imigrantes ilegais protestando contra suas desumanas condições de vida e trabalho - os verdadeiros imigrantes ilegais estão bem escondidos numa hora destas, pois sabem muito bem que se forem parar em uma delegacia, no dia seguinte estarão no avião. Os revoltosos são todos imigrantes naturalizados ou seus filhos, todos eles, legalmente, cidadãos franceses. Mas que não se vêem como franceses. O sentimento é recíproco: muitos franceses nativos tampouco os vêem como seus compatriotas. Mas se a rejeição da parte dos franceses nativos, tipificada como discriminação e racismo, tem sido amplamente denunciada e combatida na medida do possível, não há o mesmo desprendimento em denunciar a rejeição que parte do próprio imigrante, que continua a se identificar cultural e espiritualmente com seu povo de origem. Ele é o outro, e ao mesmo tempo que é rejeitado, ele também rejeita, sem que haja necessariamente uma correlação entre estes dois impulsos. Há quem veja o dedo de poderosas organizações terroristas, tipo Al Qaeda, por trás destes distúrbios. Em defesa desta tese, apontam a origem muçulmana da maioria dos baderneiros e a forma aparentemente coordenada com que os motins têm eclodido em diferentes cidades da Europa. Eu não acredito nesta hipótese. Não tenho dúvida de que os chefes terroristas estão contentes com o que está acontecendo, mas trata-se de uma operação de envergadura simplesmente grande demais para eles. A única explicação é que os distúrbios estão ocorrendo de forma espontânea, como produto de um sentimento de identificação entre os jovens das periferias de diversas cidades européias, bem como de rejeição comum contra a população em torno. Nota-se que não há líderes, nem reinvindicações colocadas por escrito. Trata-se, portanto, de uma intifada - nome dado à revolta espontânea dos jovens palestinos contra as tropas de ocupação israelenses - mas uma intifada européia. Para bem entender a natureza deste tipo de revolta, é útil estabelecer um paralelo com o caso brasileiro. Aqui também há guetos, denominados favelas, aliás bem maiores e mais miseráveis que os subúrbios habitados por imigrantes na Europa. Os habitantes das favelas brasileiras também são olhados com desconfiança e vítimas de violência policial. Por que motivo, então, aqui não eclode uma revolta ainda pior do que a que está acontecendo do outro lado do Atlântico? É certo que nossas favelas também são palco, esporadicamente, de explosões de violência, mas o padrão é diferente. Quando a polícia chega distribuindo porrada e acaba machucando ou matando um favelado, a população desce, há revolta e quebra-quebra, como não poderia deixar de haver. Mas a desordem fica restrita às vizinhanças da favela, não dura de um dia para o outro, e o alvo preferencial são os policiais e suas viaturas. Coisa ainda não vista por aqui é favelado saindo pela cidade a incendiar carros, e menos plausível ainda seria uma favela de Belo Horizonte se revoltar porque a polícia matou um garoto em uma favela de São Paulo. Já se viu por aqui os favelados incendiando ônibus, como ocorreu no Rio de Janeiro em 2002, na época da governadora Benedita. Mas é sabido e notório que foram ações patrocinadas pelos traficantes, e não pelo povo. Desde muito as facções criminosas aprenderam esta tática de simular atos de insurreição popular, com a finalidade de pressionar as autoridades. O fato é que as explosões de violência nas favelas, ou são retaliações em razão de episódios isolados de violência policial, os são ações coordenadas pela chefia do crime, obedecendo a uma dinâmica de guerras entre quadrilhas e disputa pelo poder. Insurreição do povo da favela contra o povo do asfalto, simplesmente nunca houve. Isto prova que, ao contrário do que afirmam os marxistas, a diferença social, por si só não é suficiente para provocar um antagonismo duradouro entre as classes sociais. Um bom exemplo é a Daslu, luxuoso centro comercial em São Paulo, freqüentado por ricaços. Vizinho à Daslu está uma favela, e no entanto jamais se viu um habitante desta favela a jogar pedras, ou mesmo fazendo pichações na parede do templo de consumo. O favelado brasileiro não sai por aí a queimar carros e escolas porque estes objetos não têm para ele nenhum conteúdo simbólico identificado com o "inimigo" - ele é capaz de roubar um carro, mas não de queima-lo. Enfim, o favelado brasileiro não vê o cidadão de classe média ou alta como o "outro" - o outro, no caso, é ele próprio, só que mais rico, e pronto. A recíproca também é verdadeira: existem gangues de jovens voltadas contra determinados grupos - negros, nordestinos, homossexuais - mas nunca existiu uma gangue de rapazes da classe média dedicada a atacar habitantes de favela. Os bagunceiros franceses pouco tem a ver com os favelados brasileiros, como se vê. O que desejam eles, afinal? A única coisa que se sabe com certeza é que eles não se sentem franceses, nem estão satisfeitos. Outros analistas, mais pragmáticos, procuram jogar a culpa no desemprego, que nas periferias é duas vezes maior que a média nacional. Mas este pessoal está coberto pela previdência social, tão generosa quanto onerosa, e afinal de contas, ninguém passa fome lá. A verdadeira explicação, creio eu, deve ser buscada em um estudo visionário de Jean-Christophe Rufin, denominado O Império e os Novos Bárbaros. Publicado em 1990, fez sucesso instantâneo, mas logo foi esquecido. Servindo de contraponto a outra visão do mundo pós-guerra fria - O Fim da História, de Francis Fukuyama - Rufin previu que a divisão "vertical" do mundo em dois blocos ideológicos, o ocidente capitalista e o leste comunista, cederia lugar a uma divisão "horizontal", opondo de um lado os países do norte rico e estável, e do outro o sul pobre e convulsionado. Uma fronteira seria erigida para separar estes dois mundos. A situação seria análoga ao que era no tempo da Roma Imperial, detentora da civilização e cercada de bárbaros turbulentos e incivilizados. Os paralelos são evidentes, conforme é bem sabido por qualquer um que já tenha tentado emigrar para os EUA ou para algum país da Europa. Como se sabe, os bárbaros terminaram por cruzar as fronteiras e invadir o Império. Pelo menos é o que dizem os livros escolares. O que estes livros freqüentemente omitem é que não houve bem uma invasão - a maioria destes bárbaros já vivia desde muitas gerações do lado de dentro das fronteiras romanas, na condição de povos aliados. O que eles fizeram foi se rebelar. Mais ou menos o mesmo que estão fazendo agora os habitantes das periferias da Europa. O que vai sair desta bagunça terrível? Difícil dizer, pelo menos a curto prazo. Com certeza os ânimos vão se serenar, e muita gente vai presa. Depois... bem, talvez não seja um sinal do Fim dos Tempos, daqueles que eram esperados pelos primeiros cristãos da época dos velhos bárbaros. O mundo só termina na bíblia. Na História, o mundo nunca termina, o que ocorre é um mundo ser sucedido por outro, e estas transições se dão lentamente. Quem viver, verá. Uma coisa, porém, é certa: o mundo dos sonhadores jovens de maio de 1968, este já se foi para as brumas da História. |
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