O Império da Malandragem  
 

A imagem do "toc toc toc" para as vítimas do desastre de Congonhas não me sai da cabeça, e com certeza também não sai da cabeça de muita gente, embora os comentários tenham sido escassos. Para mim, a cena tem um ar de dejà-vu ao contrário. Explico: não é algo que eu já houvesse antes presenciado em autoridades de Estado - nunca antes vira tal coisa - mas é nítida a sensação de que a tomada estava programada em um script para um futuro próximo, e de certa forma correspondia aos nossos desejos secretos; não foi uma ocorrência fortuita, é isso o que eu quero dizer. Em meio ao silêncio constrangido daqueles que por anos a fio acreditaram piamente que o PT era o sopro de renovação que finalmente romperia com o arcaísmo de nossas práticas políticas, a realidade cai pesadamente. E a realidade é que o estado foi tomado por uma corja que veio de baixo, que hoje se refestela no poder com a mesma desfaçatez com que o rato da cidade, aquele do conto infantil, se refestelava nas sobras do banquete dos donos da mansão, e ainda convidava seu primo pobre do campo para impressioná-lo. Acompanhando o pessimismo quanto ao futuro, vem uma sensação de perda. Não se trata do lamento por perder alguma coisa de que se gostava, refiro-me à sensação da perda em si, a angústia do irrevogável. Não faz muito tempo, as cadeiras do poder eram ocupadas por uma trupe de caciques que pareciam saídos de novelas da Globo, daquelas ambientadas no nordeste dos "coronér". Hoje, o ostracismo em que morreu ACM é emblemático dos novos tempos. Não que eu esteja com saudades desta gente. Os velhos oligarcas, cevados no servilismo de seu eleitorado cativo, sempre manifestaram infinita arrogância, mas também não lhes faltava a compostura própria de quem está ciente de ser "otoridade". Diga-se de ACM o que se disser, a verdade é que não consigo imaginá-lo protagonizando uma cena tão vulgar quanto aquele "toc toc toc".

Pois se os antigos eram cevados no servilismo dos hábitos patriarcais, os novos foram cevados nos mimos da mídia, que sempre os apresentou como a facção boa e genuína de nossa gente, guardiã da ética e dos nobres ideais, predestinada a suplantar a malvada "zelite" e colocar o povo no poder. Como acabei de dizer, nada do que está acontecendo é fortuito, tampouco surpreendente. O Lula que está no poder representa nada mais que a materialização de nosso antigo ódio à elite e apreço pelo popular. Só que, em nosso imaginário, nenhum ícone popular é mais representativo de nossa identidade do que a figura do malandro-esperto. Ou alguém aí jamais ouviu falar em Macunaíma e no jeitinho brasileiro? Lula é precisamente isto: um malandro, na mais genuína acepção do termo. Como todo bom malandro, Lula há muito ganha a vida sem trabalhar - já era assim quando sindicalista profissional, e como político não administrou sequer uma prefeitura do interior, sem falar na aposentadoria precoce como anistiado político, por haver passado 45 dias preso em uma sala sem grades na Polícia Federal.

Como todo malandro, Lula é bem apessoado, veste-se com apuro e representa ser o que não é. Como todo malandro, é bem falante e sempre tem resposta para tudo - não cola, mas ele tem. Como todo malandro, sabe mentir com distinção. Como todo malandro, ele acoberta as falcatruas dos asseclas, mas não hesita em entregar o pescoço deles se necessário for para salvar seu próprio pescoço. E sobretudo, como todo malandro, Lula tem uma irresistível empatia com o povão, que com ele se identifica inequivocamente.

Enfim é isso, realizamos nosso sonho: colocar o povo no poder. Digo "nós" porque a classe média, à qual pertenço, sempre foi a primeira a apoiar Lula, nele votando maciçamente em todas as eleições que ele perdeu. Classe média que só agora começa a abandoná-lo, quando ele não mais dela necessita, pois a custa de esmolas angariou o apoio da fatia mais pobre e numerosa do eleitorado, aquela que antes apoiava ACM, Maluf e Jader Barbalho quando eram esses senhores que estavam com a chave do cofre. Agora que está feito, resta perguntar: por que fizemos isso?

A verdade é que confundimos o ator com o personagem. O Lula que entrou para a política jamais foi ou quis ser um estadista: em 1979, ele era, isto sim, um extremamente bem-sucedido sindicalista profissional. Na realidade, Lula foi um subproduto não-planejado do regime militar. Como muitos hão de se recordar, até 1964 a máquina sindical montada por Vargas era loteada entre os partidos de esquerda da mesma forma como os bicheiros loteavam as esquinas: uns sindicatos "pertenciam" ao PTB, outros eram do PCB, e assim por diante. Os militares cassaram a pelegada, mas mantiveram a legislação varguista, e desta forma abriram espaço para o surgimento de uma nova geração de dirigentes sindicais, nos mesmos moldes que os antigos, mas - estes sim - oriundos dos trabalhadores. O operário Luís Inácio foi um dos escolhidos. Com a liberalização do regime ao final dos anos setenta e o aumento do poder de barganha dos operários metalúrgicos, categoria que mais havia crescido com a industrialização promovida desde JK, a demanda reprimida de reivindicações explodiu em greves, que Lula soube comandar com habilidade de líder e negociador. Tendo obtido as primeiras vitórias dos trabalhadores desde 1964, Lula tornou-se um herói para as esquerdas que começavam a se reagrupar, recém-retornadas ao país após a anistia: aparecia, enfim, um operário genuíno, pronto a canalizar o apoio das massas trabalhadoras ao recém-fundado Partido dos Trabalhadores, que apesar do nome não tinha trabalhador nenhum, só estudantes, intelectuais universitários, padres e ex-guerrilheiros anistiados, quase todos oriundos da pequena burguesia. Esse pessoal não percebeu que a razão do sucesso de Lula era justamente ele conduzir uma luta isenta de ideologia, pragmática e voltada à obtenção de ganhos para aquela categoria que já pontificava como "a aristocracia do proletariado". Data daí o fim da carreira do sindicalista profissional e o início da carreira do militante profissional, designação que lhe é bem apropriada, pois o Lula-político jamais administrou sequer uma prefeitura do interior, teve um mandato de deputado federal do qual não se conhece um único projeto apresentado, e todo o resto do tempo não fez outra coisa além de representar o papel do trabalhador que legitimava o partido que se intitulava "dos trabalhadores".

Ganha a eleição, Lula passa a representar outro papel, o de presidente da república. Viaja, discursa, parece um candidato em eterna campanha, mas dele não se conhece rotina administrativa: não realiza sequer reuniões de ministério, mesmo porque não há mesa no palácio onde caibam os mais de 35 ministros. Foi nesse ator que votamos, ou antes, no personagem que ele representava, mas quem toma posse não é o personagem, é o homem. Lula nos enganou? Bem, mas nós quisemos ser enganados. Desde o início os petistas procuraram erigir em torno de sua tosca figura um ícone de grande impacto simbólico, o homem do povo que vem derrotar as elites. Ironicamente, conseguiram criar um ícone ainda mais impactante para o imaginário popular, o malandro-esperto, aquele que se deu bem. Se eles pretendiam colocar no poder um líder revolucionário, quem subiu ao poder foi um malandro, e é sob o império dessa malandragem que viveremos até sabe-deus-lá-quando. Mas afinal, nós não idolatramos há décadas a figura do malandro, não a apontamos sempre como coisa muito nossa, verdadeiro emblema da autenticidade popular? Já dizia o ditado, nunca deseje demais alguma coisa, você corre o risco de obter o que deseja.

 

 

 

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