A Pesada Herança de Vargas  
 

Agosto, mês de desgosto. Passados exatos 50 anos do suicídio de Getúlio Vargas, sua figura está mais presente do que nunca na mídia, em uma variedade de artigos, análises e ensaios. Para seus contemporâneos, gente cuja relação com o "paizinho dos pobres" sempre foi passional, a passagem do tempo pouco importa - a figura de Vargas continua existindo tal como foi concebida em sua imaginação, ora como o mártir da causa trabalhista, ora como tirano maquiavélico e ardiloso. As novas gerações não têm uma opinião bem formada a seu respeito, mas indubitavelmente sentem a sua influência. Para aqueles, entretanto, que procuram ter um mínimo de isenção intelectual, esta é uma boa oportunidade para, dissipada a emocionalidade pela passagem dos anos, fazer um balanço e avaliar quem realmente foi esta polêmica figura, qual foi seu verdadeiro papel em nossa evolução histórica, e o quanto sua herança ainda marca o país da época atual.

É necessário primeiro examinar as características da época em que surgiu e as condições que permitiram o seu aparecimento. O país vivia a crise da República Velha, período caracterizado pelo exagerado federalismo. Cada estado era quase um país independente, e os governadores eram denominados os "presidentes" das províncias. Na realidade, não apenas os governadores mandavam mais que o Presidente da República, como mandava e desmandava qualquer chefete regional, municipal ou distrital, membros de uma teia de autoridade cujo ponto de origem era o "coronel" do sertão - figura que o imaginário popular fixou como um rico proprietário de imensa extensão de terras, mas que na realidade, muitas vezes não passava de um criador de porcos rodeado por meia-dúzia de jagunços, exibindo um poder desproporcional a suas posses.

Nesse universo profundamente atomizado, tão carente de um mínimo de centralismo que até as bitolas das ferrovias eram diferentes em cada estado, impossibilitando o trem que saía do sul de chegar ao norte, muitos tinham como bem-vindo o surgimento de um poder forte, uma autoridade central saneadora, acima das picuinhas regionais, definidora de um projeto político válido para todos, com a missão de conduzir o país à modernidade. Enfim, uma boa dose de um centralismo algo comteano (a influência do positivismo ainda era forte) destinado a remediar o arcaico federalismo de que a nação padecia. Mas, como bem sabem os médicos e as viúvas dos imperadores romanos, aquilo que é servido em pequenas doses é remédio, mas em grandes doses é veneno...

Vargas não tinha inicialmente este perfil (ele próprio era uma típica cria da República Velha), mas soube amoldar-se com habilidade ao papel que lhe era requerido. Com habilidade e astúcia, certamente. Em sua biografia, conseguiu a proeza de flertar ao mesmo tempo com o nazi-fascismo, o comunismo e os EUA; de fundar a Petrobrás e entregar aos americanos a construção da Companhia Siderúrgica Nacional; de ser o "pai" dos pobres e a "mãe" dos ricos. Mas seria repetitivo repassar as múltiplas contradições desta complexa personalidade. Prefiro simplificar. Os analistas estrangeiros fazem isto sem pudor algum: como só reconhecem duas categorias de governante para a América Latina - o oligarca e o ditador populista - então Vargas seria este último, o Perón brasileiro, e pronto. Sinceramente não acredito que Perón e Vargas pudessem se encontrar na ponte de Uruguaiana, vir Perón para o Brasil e ir Vargas para Buenos Aires, que ninguém jamais notaria a diferença (bem, talvez Evita notasse). Mas sem abastardar tanto a nossa história, vou simplificar à minha maneira: vejo Vargas como o fundador do Estado Máximo, sucessor do estado raquítico da República Velha. É precisamente este - o Estado Máximo - o verdadeiro legado de Vargas ao Brasil. A evolução histórica deste Estado Máximo transcende em muito à história pessoal de seu criador - quando Vargas suicidou-se, ele apenas começava a se consolidar. Seus sucessores eram nominalmente contrários ao varguismo, mas aumentaram o estado ainda mais. O tamanho máximo do estado, com tributação recorde, burocracia máxima, número máximo de ministérios e número recorde de funcionários públicos, foi atingido na Era Lula que vivemos agora. É perda de tempo discutir se Lula seria mais um herdeiro de Getúlio Vargas, ou se, na qualidade de genuíno ex-operário, representaria a emancipação do operariado e sua ruptura com o paternalismo varguista ("Hoje estais com o governo, amanhã sereis governo"). Seja como for, hoje este estado hipertrofiado é a maldição do Brasil.

Mas nem sempre foi assim. O primeiro (e discreto) sinal aconteceu já nos anos 30, com o extraordinário aumento do número de funcionários públicos. Vargas mostrava a que veio, e não decepcionou aqueles que acreditavam que os graves problemas de um gigantesco país só poderiam ser atacados por um governo forte, centralizador e dirigista. Contabilizando as "grandes conquistas" ocorridas entre os anos 30 e os anos 80, vê-se que todas elas - inclusive as de utilidade duvidosa - foram implementadas pelo Estado: a Consolidação das Leis do Trabalho, o Salário Mínimo, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Petrobras, o BNDES, o BNH, a Sudene, a Sudam, a Embraer, a rodovia Transamazônica, etc. Argumentava-se que a iniciativa privada não dispunha de capital suficiente para estes empreendimentos, o que não deixava de ser verdade, mas escondia uma contradição fundamental: uma vez que os recursos do Estado são oriundos dos impostos pagos por estes mesmos cidadãos e empresas privadas, a longo prazo não seria matematicamente possível substituir o capital privado nacional, insuficiente, pelo capital do Estado, afinal, igualmente insuficiente. Na prática, impunha-se apenas uma troca de gestão sobre um mesmo montante de recursos: a gestão do Estado substituindo a gestão do empresário, característica que aproxima o Estado Máximo ao comunismo, o que não deixa de ser irônico, pois os comunistas propriamente ditos conheceram longo período de prisão e perseguições durante a era Vargas, assim como durante os governos que o sucederam.

Fundamentado na formação patriarcal da sociedade brasileira, que incute no homem do povo um clamor por um estado paternalista, um patrono que supostamente irá defender os fracos contra os poderosos, não é surpreendente que aquilo que conhecemos como "varguismo" na realidade já existia antes de Vargas, e mais ainda, que continuasse a existir depois de Vargas. Até 1964 esta política teve continuidade com os herdeiros políticos do líder, sendo João Goulart o último deles. Com a deposição de Goulart, pareceu haver uma reação diametralmente oposta a todo o ideário e às velhas práticas do varguismo; e de fato, durante o governo Castello, se praticou uma política econômica liberal pela primeira vez na história do Brasil. Mas o interregno seria breve. As práticas varguistas simplesmente tinham sólidas raízes nos costumes dos brasileiros, inclusive naqueles que odiavam Vargas, ao passo que o discurso de Roberto Campos, o "Bobby Fields", era visto como exotismo. Pior: os bons resultados da política de austeridade de Castelo Branco geraram divisas que, aliadas aos dólares fáceis de uma época de juros internacionais baixos, logo fariam ressuscitar os velhos hábitos: gastar mais do que se arrecada, pedir emprestado e não pagar, produzir inflação para jogar sobre os assalariados o custo dos deficits do orçamento - era o Milagre Brasileiro, basicamente uma reedição da mesma "mágica" usada por Juscelino Khubitscheck 10 anos antes. O Estado crescia cada vez mais.

O "milagre" de Medici terminou em crise, assim como terminara o de Juscelino. Mas depois os feiticeiros não puderam mais repetir a mágica. Lá pelo final dos anos 70, havia no ar a nítida impressão de que alguma coisa havia mudado, e que nunca mais seria como antes. Mas com Geisel, o Estado cresceu ainda mais. Tímidas vozes de protesto foram silenciadas. O último a tentar uma mudança de rumo foi Mário Simonsen, já no primeiro ano do governo Figueiredo, e ninguém lamentou sua queda; nem os trabalhadores, nem os empresários, nem os governistas, nem os oposicionistas. Removido do caminho a Simonsen e suas inconvenientes propostas, estava aberto o caminho para a "década perdida", cujo coroamento foi a constituição "cidadã" de 1988, marcada pelo retorno aos preceitos varguistas - os direitos trabalhistas ampliados, o "nacionalismo" expresso na reserva das jazidas minerais e na reserva de mercado para a informática - preceitos estes que retornavam com força total, após haverem sido reprimidos durante 20 anos. Quase ninguém reparou que já estavam largamente ultrapassados. Emblemática deste período foi a votação no senado que sancionou a Lei de Informática, hoje reconhecida como desastrosa, mas que só não foi aprovada por unanimidade porque houve o solitário voto contrário do senador Roberto Campos, o Bobby Fields. Bem dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra...

Tardiamente implantado o varguismo na letra da lei, ficaram os governos seguintes com a pesada tarefa de remove-lo. Acompanhando-se a trajetória de algumas conquistas emblemáticas de Era Vargas, nota-se com nitidez sua curva de ascensão e declínio. Um bom exemplo é a CLT. Implantada a duras penas, a "carteira assinada" tornou-se um marco, um símbolo que distinguia o trabalhador do marginal, a ponto de os policiais, ao fazerem batidas, exigirem mais a Carteira de Trabalho do que o documento de identidade (quem se lembra?) Complicada com regulamentação excessiva, pesada tributação e a parcialidade dos juízes do trabalho, a CLT acabou se tornando um fardo, bem como a causa do desemprego e da informalidade de muitos trabalhadores. Outro exemplo é o Salário Mínimo. Quando surgiu, era equivalente a mil reais em moeda de hoje. Uma maravilha, só que era uma ficção. Coisa para inglês ver. Quase ninguém ganhava o salário mínimo, pois quase ninguém tinha carteira assinada na época. As empregadas domésticas ganhavam um quinto de seu valor. Passados os anos, o salário mínimo foi definitivamente implantado, mas desvalorizou-se de forma tal que tornou-se outra ficção. Tal como ocorria nos primórdios, hoje em dia quase ninguém ganha um salário mínimo. Nem as empregadas domésticas, que atualmente ganham entre 2 e 3 vezes o seu valor. Ele obviamente não atende à sua função original de proporcionar uma renda mínima digna, mas assumiu uma outra função: a de indexador-mor da economia. Sobe o salário mínimo, sobe tudo, e quem paga a conta, como de costume, é o assalariado que ganha mais de um salário mínimo. De anjo de luz, tornou-se espírito maligno; seria melhor simplesmente extingui-lo.

Embora seja notório o esgotamento do modelo nacional-desenvolvimentista patrocinado por Vargas, poucos têm se dado conta disto. Continuam creditando ao abandono de sua política os maus resultados da economia e o crescente empobrecimento da população. O Estado fez mal? A solução é mais Estado para consertar. O mau desempenho do Estado nada mais é que a Síndrome do Perdulário: quanto mais arrecada, pior gasta, e mais se endivida, obrigando-se a arrecadar cada vez mais. Os mais velhos hão de se lembrar que, durante a República Velha, os escândalos de corrupção eram muito mais esporádicos do que hoje em dia. Não que os políticos fossem mais honestos então - certamente que não eram - mas passava menos dinheiro pelas mãos deles. Os orçamentos eram mais apertados, as oportunidades mais raras. A dívida externa também ficava em patamares perfeitamente razoáveis na época. Não que os políticos não quisessem obter mais dinheiro emprestado, mas os banqueiros internacionais certamente não emprestariam grandes quantias a Estados que tinham um orçamento tão modesto. Sem recuar tanto no tempo, não é preciso ser muito velho para se lembrar como, até época recente, os serviços de educação e saúde pública eram perfeitamente razoáveis, a ponto de muitos preferirem fazer seus estudos elementares na escola pública, mesmo podendo pagar uma particular. E no entanto, os impostos eram bem menores naquela época. Maiores impostos, piores serviços: quanto mais o Estado se imiscui naquilo que não é de sua alçada, mais ele descuida daquilo que efetivamente é de sua alçada, como educação, saúde e segurança.

Enquanto queimamos incenso no altar de Vargas, o mundo lá fora avança sem nós.

 

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