Guias Politicamente Incorretos | ||
Já está na TV paga uma série mostrando reportagens sobre os conhecidos Guias Politicamente Incorretos, apresentada entre outros por Leandro Narloch, autor da maioria deles. Eu li todos, e saudei o seu surgimento como enfim um rompimento com os esquematismos ideológicos que vem dominando o ensino de História desde o quarto final do século passado. A popularidade dos guias bem mostra que o público estava cansado das repetições de sempre: que os índios foram sempre vítimas, que o Brasil promoveu um genocídio no Paraguai a mando dos imperialistas britânicos, que nossos heróis foram uns canalhas etc. Mas desde o primeiro ficou na minha cabeça uma advertência levantada por Narloch: não seriam esses guias tão politicamente enviesados quanto os textos que eles combatem? São, sim, politicamente enviesados como o próprio autor deixou implícito ao admitir que seu propósito era mostrar como é fácil exibir uma versão tendenciosa dos fatos históricos. E convém lembrar, Leandro Narloch não é um historiador, mas um jornalista. Ele não foi às fontes originais obter informações novas, apenas exibiu informações já sabidas mas que vinham sendo sistematicamente omitidas pelos cultores do politicamente correto, a fim de apresentar uma nova versão. Falsear a História é fácil porque não é preciso mentir, basta omitir. Enfatizar aqui e minimizar ali. Mas já é tempo de se fazer uma revisão dos guias politicamente incorretos. Controvérsias não faltam, mas vou me ater aos aspectos que considero mais triunfantes dos guias. O primeiro deles, sem dúvida, foi acabar com a imagem romântica que se tinha dos índios, vistos como um povo pacífico que vivia em comunhão com a natureza, procurando conservar a floresta que os colonizadores destruíram. Para começar, os índios não são um povo, mas vários povos, que não falavam as mesmas línguas nem eram exatamente amigos uns dos outros. Recentes descobertas arqueológicas, já comentadas aqui por mim, revelam que havia grandes aldeias no feitio de cidades, roçados e pomares em diversas regiões. Então, quinhentos anos atrás não devia haver muito mais floresta nativa do que há hoje. É claro que os índios também destruíam a floresta. Não foi devidamente explicado porque essas grandes aldeias desapareceram, mas a arqueologia também revelou que diversas culturas tiveram períodos de expansão e declínio antes da chegada dos portugueses, certamente o resultado de guerras e condições naturais adversas. Os índios não precisavam dos colonos para exterminar os índios, sabiam fazê-lo eles próprios. O que não deve causar surpresa, pois nunca foram vítimas patéticas, mas povos com interesses próprios, que como todos os outros, também jogaram o Jogo da Civilização. Às vezes ganharam, outras vezes perderam. Bem oportuno foi o desmentido da versão da Guerra do Paraguai lançada pela conhecida obra de JJ Chiavenatto: Guerra do Paraguai, Genocídio Americano, que vinha sendo adotada como versão oficial nas escolas, e contava a história de uma guerra onde Brasil e Argentina foram fantoches dos imperialistas britânicos, interessados em liquidar o Paraguai, que supostamente dispunha de um modelo desenvolvimentista independente das grandes potências. Na verdade, essa versão já havia sido derrocada pela excelente obra Maldita Guerra, de Francisco Doratioto, essa sim completa e com sólida base documental e metodológica. Os ingleses não tinham interesse em destruir o Paraguai, e no início do conflito, quem tinha relações cortadas com o Império Britânico era o Brasil, consequência da Questão Christie. Ao contrário, os ingleses tinham aceito a encomenda de navios de primeira linha por parte do Paraguai, que acabaram não sendo entregues porque a guerra eclodiu antes. Ficou mostrado que Chiavenatto queria fazer um paralelo entre o Brasil, o Paraguai e a Inglaterra do século 19 com o Brasil, Cuba e os EUA do século 20, sendo os EUA o modelo da potência imperialista que foi a Inglaterra, o Brasil o modelo do estado subalterno aos imperialistas, e o Paraguai de López uma espécie de Cuba onde toda a população era alfabetizada, não havia propriedade privada e todos trabalhavam para o Estado. Não era bem assim. No Paraguai da época, as terras pertenciam ao Estado, mas o Estado pertencia aos lopistas. Foi também oportuna a revisão do retrato estabelecido de alguns heróis nacionais. Não que o propósito fosse denegri-los, a intenção era mostrar como certas versões originadas de boatos ou pura ficção acabaram se tornando verdade de tão repetidas, ou por serem sedutoras. Todos conhecem o artista Aleijadinho, que sofria de grave enfermidade que lhe fez cair os dedos das mãos, e executava suas obras com as ferramentas amarradas ao que sobrou de seus membros. O que muitos não sabem é que quase todas as informações que se tem sobre ele provem de um livreto escrito décadas após sua morte, e as fontes do autor são desconhecidas. As escassas provas materiais da existência de Aleijadinho, além das obras atribuídas a ele, são recibos assinados pelo artista, o que prova que ele tinha dedos nas mãos que lhe permitiam, ao menos, segurar uma pena. A lenda de que ele trabalhava com as ferramentas atadas às mãos doentes sempre me despertou certa desconfiança. Ainda que fosse possível atar as ferramentas ao que lhe sobrara das mãos, ele por certo não suportaria a dor de manusea-las. Convém lembrar, as madeiras nobres utilizadas em estatutária são bastante duras, e entalhá-las é tarefa desgastante até para quem é sadio. A realidade deve ter sido menos fantástica. Lembrou o autor dos guias, a arte barroca é um trabalho essencialmente coletivo, e lembro eu, o artista apelidado de aleijadinho era bem conceituado, e é plausível supor que dispunha de um ateliê com bom número de auxiliares, e ao final da vida, já doente, ele se limitasse a supervisionar os trabalhos. Parabenizo o autor pela coragem de mexer com um dos heróis mais unânimes de nossa história, o inventor Santos Dumont. Mais uma vez, o propósito não era denegri-lo, apenas chamar a atenção para um mal entendido que vem desde o início do século passado: não foi ele o inventor do avião. Os irmãos Wright voaram primeiro. A polêmica é antiga, mas desde algum tempo eu já havia dado ganho de causa os americanos. Não vou entrar aqui no mérito de questões técnicas do voo, como o uso ou não de uma catapulta para fazer decolar. Chamo a atenção para um aspecto mais óbvio: foi a configuração da aeronave dos irmãos Wright que prevaleceu. E essa configuração era totalmente diferente daquela do 14-bis. Quase todo mundo (eu inclusive) quando vê uma foto do 14-bis imagina-o voando com a hélice na frente e o leme atrás. Mas era o contrário. A hélice ficava atrás, junto com o piloto e as asas, e o leme (ou profundor) ficava na frente. Essa configuração, batizada de canard (pato, em francês) é totalmente estranha nos dias atuais, e por um bom motivo: nunca foi encontrada uma solução de estabilidade para ela. Quando tentava fazer curvas, o 14-bis facilmente perdia a sustentação, e acabou destruído em um acidente. Santos Dumont construiu outra aeronave, batizada número 15, com uma configuração semelhante à do 14-bis, que acabou destruída em um acidente também muito semelhante. Desde então a configuração canard nunca mais foi usada por nenhum construtor de aviões, nem mesmo pelo próprio Santos Dumont. Já a aeronave dos irmãos Wright lembra em tudo um avião atual: motores montados sobre as asas, piloto na frente, leme e profundor atrás. Todos os aviões atuais utilizam esta configuração. Fora do Brasil, Santos Dumont nunca foi considerado o inventor do avião. Na realidade, ele levava mais fé em balões dirigíveis, no que aliás não estava de todo errado, pois até o acidente com o Hindenburg, os dirigíveis foram os mais utilizados em viagens transoceânicas. Isso fica implícito até no nome que deu a seu invento, 14-bis, denotando que no projeto original a aeronave seria apenas um complemento a seu balão número 14. Só depois de muita insistência de amigos ele decidiu dar meios a sua aeronave para decolar por conta própria. A pessoa de Santos Dumont é fascinante e paradoxalmente pouca conhecida de brasileiros. Eu recomendo a leitura de Asas da Loucura, escrita por um americano. O inventor foi, acima de tudo, um excêntrico. Não almejava ganhar dinheiro, mas trabalhava apenas por prazer, e conforme sua inspiração, podia tanto fazer inventos úteis quanto bizarrices estilo Professor Pardal. Foi um grande homem, mas não foi o inventor do avião. Também nesse quesito de figura histórica construída por obras literárias ao invés de fatos, eu poderia citar Dona Beja, que todos conhecem, mas poucos sabem que a história que é contada em novelas baseia-se em um romance escrito muito depois de sua morte. A personagem existiu, mas quase tudo que se diz sobre ela é lendário. O mesmo acontece com Xica da Silva. O caso é que há heróis que surgem para satisfazer uma demanda do público, e personagens históricos são escalados para este papel. Os guias citam também Lampião, até hoje herói popular, mas que na realidade foi um bandido cruel, amigo de vários coronéis do sertão e que não tinha nenhum apreço pelo zé-povinho. Os guias são tendenciosos e possuem falhas, mas a discussão suscitada por eles é sempre bem vinda. |
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