Golpe ou Revolução?  
  Nestes 50 anos do dito golpe (ou revolução?) de 1964, fervilham comentários e análises, prós e contras, mas impressiona como decorrido meio século ainda não haja um vislumbre de senso comum sobre a revolução (ou golpe?) que mudou a história do país, começando pela discussão sobre se houve de fato uma revolução ou um golpe. Por contraditório que pareça, o episódio ainda não pertence à História, e a contradição aí refere-se ao longo tempo decorrido. Mas é explicável: diz-se que um episódio já pertence à História quando existe um consenso sobre o que o episódio realmente constituiu, são identificados seus antecedentes e a dinâmica histórica em que se encontra inserido, e seus impactos no futuro até a época atual já se encontram devidamente mensurados e não há mais surpresa. Nada disso se aplica ao que ocorreu no Brasil em 31 de março de 1964.

Sem procurar fazer uma análise completa e detalhada sobre o ocorrido, vou me ater aqui a responder a uma questão específica: foi um golpe ou uma revolução?

Os apoiadores dizem que foi uma revolução, os inimigos juram que houve um golpe. Quanto a mim, tenho uma conclusão definitiva: foi uma revolução que terminou em golpe. Ou se preferirem, uma revolução abortada por um golpe.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar as manifestações que antecederam à derrubada de Goulart: só a Marcha com Deus pela Família reuniu quinhentas mil pessoas. A Marcha da Vitória consta haver reunido mais de um milhão. São cifras impressionantes, de longe as maiores manifestações públicas já realizadas no país até então, de fato, só superadas vinte anos mais tarde pelas Diretas-Já. Os detratores afirmam que foi uma "marcha de dondocas", mas os números falam por si, ainda mais se considerada a população total bem menor naquela época: nenhum país do mundo tem tantas dondocas assim. Então, ainda que se considere que foi um equívoco, é preciso reconhecer que, naquele momento, a oposição ao governo Goulart era um movimento de massas, e não de reduzidas elites. A economia do país vinha em queda, e o medo de uma guerra civil era crescente. O movimento teve o apoio de numerosas lideranças civis e partidárias, não houve apenas um golpe militar. Então, eu concluo que, naquele momento inicial, houve uma revolução no país.

Mas o termo revolução, em seu sentido estrito, quer dizer uma volta completa na roda. O fim de um ciclo e o início de um novo ciclo. Entretanto, desde o início não ficou claro onde terminava um e começava o outro. Os pretensos revolucionários, ao mesmo tempo em que mostravam-se dispostos fazer uso de plenos poderes, afirmavam que sua presença no poder seria temporária e tinha um caráter meramente provisório, reparador. Inclusive foi preservada boa parte do arcabouço legal do regime deposto. Afinal, eles pretendiam ou não criar um regime novo? E se não pretendiam, então por que agiam com tanta violência? O que queriam, afinal?

Desde o primeiro momento os novos donos do poder não apresentaram nenhuma nova ideologia, e ao contrário, reafirmaram sua fé na democracia (mas democracia não era o que já havia antes deles chegaram ao poder?) Diziam só ter como meta combater a corrupção e a subversão (mas existe algum regime que se proclame a favor da corrupção e da subversão?) A empostação moralista dos ditos revolucionários era tão ostensiva, que a revolução ganhou o apelido de "redentora", que se mantém até hoje. Em conformidade com esses propósitos moralistas, patrióticos e apartidários, os revolucionários estenderam sua cruzada anti-corrupção e anti-subversão aos apoiadores do regime, e o fizeram de forma devastadora: toda a cúpula civil que lhes dera apoio foi cassada e excluída da política, de Carlos Lacerda a Juscelino Kubitschek, passando por Adhemar de Barros, sem esquecer de Janio Quadros e Pedro Aleixo. Na mesma leva, foram descartados militares revolucionários de primeira hora, como os generais Olympio Mourão e Amaury Kruel, sem dúvida porque tinham relações muito próximas com os líderes supra-citados. De forma ostensiva ou discreta, quase toda a cúpula original foi varrida.

Mas como pode ter acontecido isto? Estes homens não eram os vencedores, não estavam em uma posição de poder? Com certeza! Indivíduos que se encontram em uma posição de poder só podem ser derrubados pela força, então eu concluo que nesse momento houve de fato um golpe. Ao contrário da derrubada de Goulart, a derrubada dos próceres civis da revolução não foi precedida de manifestações ou de articulações na sociedade, foi um típico golpe de estado, sob os auspícios de um grupo conhecido vagamente como a linha dura, que parecia invisível, mas sua invisibilidade era garantida porque na verdade, encontravam-se no próprio núcleo do poder. Somente após desvencilhar-se desses indivíduos o regime instaurado em 1964 pôde adquirir a tipicidade característica dos regimes militares sul-americanos, que manteve até o final. Neste ponto, já posso responder à questão que foi levantada: houve uma revolução ou um golpe? Eu diria que foi uma revolução que terminou com um golpe.

Mas por que houve o golpe? Aqueles indivíduos não estavam ideologicamente alinhados com os militares que tomaram o poder? Da maneira como foi formulada, a pergunta já contém parte de sua resposta: e quem disse que o grupo que tomou o poder estava interessado em ideologias?

De modo geral, afirma-se que aqueles homens eram de direita. Pelo menos, opunham-se à esquerda. Mas um episódio hoje pouco conhecido foi a mensagem de um jovem político maranhense enviada ao presidente João Goulart no dia 31 de março, garantindo-lhe apoio. Esse político chamava-se José Sarney. O que devemos concluir? Que Sarney era de esquerda, e no dia seguinte tornou-se de direita? Em meio a tanta contradição, a conclusão que se impõe é que política e ideologia não guardam entre si nenhuma obrigação de coerência, e que aqueles indivíduos não agiam movidos por razões ideológicas. José Sarney, bem como outros próceres que viriam a se destacar no partido governista durante o regime militar, como Célio Borja, Teotônio Vilela, Francelino Pereira e Antonio Carlos Magalhães, eram membros de uma classe de políticos cujos propósitos e linha de ação limitavam-se à obtenção de recursos para suas bases eleitorais. Basicamente vassalos, sem pretensões no terreno das ideias. Os verdadeiros direitistas, ideologicamente falando, eram aqueles que foram afastados. O que restou da base política do governo militar foi esse baixo-clero provinciano, muitos dos quais, dez anos antes, provavelmente nem imaginavam que um dia seriam presidentes de seus partidos, governadores de seus estados e presidentes da câmara. Essa classe de políticos-vassalos sempre existiu, mas é preciso reconhecer que pelo menos até 1964, as lideranças partidárias eram ocupadas por indivíduos de um maior brilhantismo intelectual, como um Carlos Lacerda, que até podia ser odiado por seus inimigos, mas mesmo eles tinham que reconhecer sua competência como ideólogo.

Esse brilhantismo intelectual da direita deixou de existir após 1964, e não se recuperou após a redemocratização. Isso aconteceu sobretudo porque o regulamento criado pelos militares invariavelmente privilegiava os rincões do interior, em detrimento dos grandes centros. Os antigos líderes foram sobrepujados pelos provincianos, e mais tarde preferiram mudar de partido e de discurso ideológico. Vinte anos depois, os efeitos podiam ser percebidos: quem, em 1964, por mais pessimista que fosse, poderia imaginar que em 1984, a nova versão de um Adhemar de Barros seria um Paulo Maluf?

Claramente, para o regime de 1964, a base política não era uma questão de qualidade, mas de quantidade: tudo o que importava era computar o número necessário de deputados para os colégios eleitorais das eleições indiretas, e a legislação eleitoral impunha o que era necessário para este fim, sempre privilegiando os rincões em detrimento dos centros. Era assim porque, na realidade, pouco importava quem fossem os políticos, já que o poder de fato era exercido pelos militares. Para entender o motivo da rejeição dos militares brasileiros à política partidária e aos políticos em geral, é necessário recuar no tempo até o final do século 19: nessa época, os jovens que cursavam as escolas militares eram intelectualmente irrequietos, membros de uma nascente classe média que não contava com o apadrinhamento do poder, e por este motivo insatisfeitos, interessados em política e ávidos por novas ideias. Boa parte deles aderiu às ideias de um certo filósofo francês chamado Auguste Comte, que já havia saído de moda na França, mas que encontrara novos adeptos em terras tropicais. Seu credo político, denominado positivismo, foi de fato a primeira ideologia de engenharia social da História, preconizando a substituição dos usuais atores políticos oriundos da sociedade civil por uma casta de indivíduos superiores, supostamente capazes de agir estritamente orientados por princípios científicos neutros e desvinculados de qualquer compromisso com setores particulares da sociedade civil, a qual deixava de ser agente para se tornar objeto, tal como uma massa de modelar. Um dos corolários dessa tese era que a política tradicional exercida por políticos profissionais e parlamentos representaria um estágio superado e ilusório, que jamais obteria a plena satisfação dos anseios coletivos.

O positivismo, sabe-se hoje, foi a base das grandes doutrinas de engenharia social do século 20, o fascismo e o comunismo, e isso reflete-se na própria história pessoal dos militares brasileiros, que após a revolta tenentista dos anos vinte, ocasião em que as ideias gestadas germinaram, dividiram-se entre o fascismo e o comunismo, com predominância para este primeiro. A doutrina positivista, excessivamente abstrata, nunca foi implementada na prática, mas os regimes dela derivados o foram, e esses regimes nada tinham de abstrato; muito pelo contrário, eram bem concretos, e quem sofreu na própria pele a repressão sabe muito bem o quão concreto um regime pode ser. A moda intelectual do positivismo passou, bem como os rompantes totalitários dos anos trinta, mas a mentalidade daí produzida perpassou de geração em geração entre os militares brasileiros. Conhecendo-se um sumário da doutrina positivista, é fácil identificar paralelos como regime que foi instituído em 1964:

- Os positivistas estipulavam a forma ideal de governo como uma "ditadura republicana". Os generais-presidentes tinham plenos poderes, mas alternavam-se no poder, mantendo o formato republicano do regime.

- Os positivistas pregavam uma "ditadura racional e científica". O regime assumiu rapidamente a forma de uma tecnocracia, conduzida por super-ministros (Delfim, Simonsen, Andreazza) cujas atribuições ultrapassavam em muito o escopo de suas pastas. Os tecnocratas que fervilhavam pelos ministérios eram especialistas em diversas áreas, profissionais que antes de 1964 seriam apenas funcionários, mas os militares concederam-lhes o poder decisório que antes cabia aos políticos. Desta maneira julgava-se que as questões nacionais seriam equacionadas e solucionadas de uma maneira isenta, orientada por ditames puramente técnicos e científicos, em substituição às demandas provinciais, corporativas ou meramente pessoais dos políticos profissionais. Os militares, na condição de membros de uma classe profissional vinculada ao país, e não a partidos ou facções, viam-se naturalmente como destinados a exercer esse papel de governar "cientificamente" acima das demandas setoriais.

- O positivismo prega a ordem e o progresso. Toda a propaganda triunfalista do regime instaurado em 1964 concentrou-se no setor econômico e suas estatísticas, e ignorou o lado político, social e cultural.

Conforme é sabido, regime de 1964 teve alguns bons momentos na economia, mas no cômputo geral não se afastou do nacional-estatismo que vinha dominando a economia brasileira desde os anos 30, oscilando entre sua vertente nacionalista (Vargas, Geisel) e sua vertente entreguista (Kubitschek, Castelo). Na realidade foi o regime militar que levou o nacional-estatismo ao auge, nos anos setenta, e depois ao esgotamento nos anos oitenta. Enfim, a ditadura esclarecida, "racional e científica", não se mostrou nem tão superior nem tão original como supunham seus executores, que afirmavam só querer botar a casa em ordem e se retirar em seguida, esquecidos de que, caso fizessem mesmo um bom serviço, não faria sentido em ir embora, e caso não fizessem um bom serviço, não botariam a casa em ordem de jeito nenhum e não teriam justificativa para sair. Politicamente, sua obra não foi duradoura. O maior legado do regime de 1964 foi haver interrompido o curso dos acontecimentos que tinham lugar no início dos anos sessenta, ao quebrar a violenta polarização direita X esquerda de então: a esquerda foi neutralizada em um primeiro momento, subjugada em um segundo momento e deixou de ser revolucionária, passando à estratégia gramsciana enquanto se distrai com a prática da antes desprezada democracia burguesa e seu rosário de roubalheiras, até cair na vala comum do populismo. Já a direita foi praticamente extinta pela cassação de seus líderes e pela submersão dos demais na vala comum da política provinciana. E assim chegamos aonde estamos.

 

  Início

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