Garson e Pinochet  
 

O episódio da detenção do ex-ditador Pinochet em Londres, por demanda de um simples magistrado da Justiça Comum, o juiz espanhol Garson, estrangeiro ainda por cima, causou celeuma no mundo inteiro, muito furor e alguma indignação. Não seria a primeira vez que um ex-ditador ia parar na cadeia, mas seria a primeira vez que isso acontecia por ordem da Justiça civil ordinária de um país neutro, o que deixava claro que Pinochet não era diferenciado de um escroque qualquer perseguido pela Interpol.

Como se sabe, Pinochet está de volta para a sua pátria, e livre das penas da Justiça. Mas o episódio não foi esquecido, como nunca são esquecidos os episódios inéditos que abrem um precedente. O mundo não é mais o mesmo, antes e depois da detenção de Pinochet. Nenhum ditador jamais voltará a sentir a mesma segurança de antes. Isto é indiscutivelmente benéfico: as ditaduras não vão acabar por causa disso, mas o precedente aberto surte um poderoso efeito de dissuasão sobre ditadores e candidatos a ditadores. Mas é bastante humano e compreensível que, diante de um fato até então inédito, procuremos enxergar suas implicações positivas antes de especular sobre possíveis conseqüências desagradáveis.

Em primeiro lugar, ninguém tem o direito de afirmar que o ocorrido foi uma surpresa. Nesse mundo crescentemente globalizado, na verdade era uma questão de tempo até uma coisa assim acontecer. Antes disso, já tivemos traficantes colombianos extraditados para os EUA, cidadãos julgados em seus países de origem por crimes de pedofilia cometidos em países estrangeiros, e até o panamenho Noriega apeado do poder e transferido para uma cela comum em um presídio americano. A questão é: até onde isso pode ir? Alguém já imaginou um juiz chileno pedindo a extradição de Henry Kissinger por seu apoio ao golpe que derrubou Allende? Algum chefe-de-estado europeu preso pelos bombardeios da OTAN na ex-Iuguslávia? Ou um ex-presidente ou ministro brasileiro indo passear no estrangeiro e acabar preso pelo massacre de índios supostamente ocorrido anos atrás?

São apenas hipóteses. Mas suscitam discussões em torno dos limites de cada jurisdição no mundo globalizado, e da legitimidade de uma polícia e deu uma Justiça mundial. Como se sabe, a autoridade da polícia e da Justiça emanam de um estado nacional, ao qual elas se encontram subordinadas. Mas se não existe um estado mundial, como pode existir um Poder Judiciário global? A quem este poder prestaria contas? A uma organização mundial tipo Nações Unidas? A um consenso previamente firmado entre todas as nações soberanas? A uma Corte Internacional permanente, constituída de juízes de várias nações? E a pergunta mais importante de todas: Qui custodit custodiaem? Ou traduzindo, quem nos defenderá de nossos defensores?

Enquanto nenhuma pessoa responde a essas indagações, elas são respondidas pelos fatos: a quem o Poder Judiciário Global presta contas? Ao mais forte. Quem fiscaliza esta autoridade? O mais forte. Ou ninguém. A verdade cabal é que nenhuma autoridade - mesmo uma autoridade considerada "justa e oportuna" pelo senso comum - é legítima se não estiver vinculada a um poder constituído e reconhecido por aqueles sobre quem esta autoridade se exerce. É precisamente por este motivo que é ilusório cogitar de um Tribunal Internacional com poderes para julgar os crimes de guerra e as ditaduras. Se existisse uma autoridade mundial legitimadora deste tribunal, esta autoridade poderia também arbitrar os conflitos, e então não haveria guerras, assim com não há guerra entre estados de uma mesma federação. Sem guerra, não há crime de guerra, e sem crime de guerra, não há o que julgar. Tudo permaneceria na santa paz, desde que, é claro, este governo mundial hipotético fosse do agrado de todos...

Mas como se sabe, a idéia de um Governo Mundial jamais saiu do terreno da ficção, no qual, não por acaso, é invariavelmente associado a despotismo, imperialismo e guerra de conquista. O Inconsciente Coletivo repele a idéia de uma autoridade única, e o nacionalismo é uma propensão tão atávica quanto os instintos mais básicos. O fato é que as pessoas não são iguais, não tem os mesmos costumes nem as mesmas crenças, e só admitem ser governadas de uma maneira peculiar. Os conflitos são locais, e não globais. O que é crime em um local, não é crime em outro. A priori, poderíamos afirmar que ninguém tem o direito de julgar um outro que não um membro da comunidade onde se encontra inserido.

Mas a tendência da globalização pressiona em sentido oposto. Aquilo que é indiferente de longe, torna-se acintoso de perto. Podemos dizer que não temos nada a ver com nativos da Nova Guiné que se massacram mutuamente em guerras tribais, mas é absurdo dizer que não nos diz respeito se índios brasileiros massacram posseiros que invadiram suas terras. Em ambos os casos, temos grupos que agem partindo do pressuposto de que são independentes para declarar uma guerra particular. Mas bem ou mal, os índios brasileiros estão (ou deveriam estar) sobre a jurisdição do estado brasileiro, ao contrário dos da Nova Guiné. Esta jurisdição estabeleceu-se à revelia dos índios, assim como ocorreu em toda parte. Os estados-nações formaram-se gradualmente, sem qualquer critério de justiça ou respeito a direitos adquiridos pelos antigos ocupantes do território, mas obedecendo a uma dinâmica de lutas e conflitos que a longo prazo desenhou um mapa-mundi onde as fronteiras nacionais se estabilizaram coincidindo mais ou menos com os espaços dominados por um grupo "dominante" - seja no sentido étnico ou cultural - restando alguns estados instáveis que abrigam facções em permanente conflito. O grupo dominante dá o caráter e o rumo do país, ou como se diz, a cultura segue a espada. Temos então que a divisão do mundo em estados soberanos representou uma extraordinária conquista na história da humanidade, e proporcionou a paz e o fim dos conflitos regionais, ao unir aqueles que desejavam viver juntos, e separar os que não desejavam viver juntos. Seria, então, a globalização um retrocesso?

Tudo é relativo. Como é relativo afirmar que a briga do vizinho não é da nossa conta, até que se ouve ruído de tiros ou objetos voando pela janela - e aí ela passa a ser da nossa conta. A fronteira entre o local e o global é um tanto indistinta, e não há árbitro supremo. A extensão das penalidades da lei a um ex-ditador como Pinochet, a justiça sem fronteiras, tudo isso quer dizer já existe o reconhecimento de crimes "contra a humanidade", que já não são da alçada apenas dos cidadãos do país onde o dito criminoso perpetrou seus malfeitos. Mas também significa o surgimento de um poder policialesco da parte das nações desenvolvidas, a ser dirigido contra o resto. Alguém quis saber por que motivo o juiz Garson não cuidava de fazer o dever de casa antes de dar lições a outros - pois como se sabe, nenhum criminoso do período franquista foi punido.

 

 

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