Família é Atraso  
 

Pertenço a uma minoria absoluta no Brasil: o grupo dos que vivem sozinhos. Segundo dizem as estatísticas, em nosso país apenas 9% dos domicílios tem apenas um morador, enquanto em Paris esta proporção é 36%, e na Escandinávia passa dos 40%. Como toda a minoria, não deixo de sofrer certa discriminação, e como toda minoria, rebato com meu próprio radicalismo. Um homem que insiste em morar sozinho, além da pecha de solteirão, ainda carrega consigo suspeitas de homossexualismo, de misoginia, ou no mínimo a reputação de ser um indivíduo anti-social, que obstinadamente se recusa a dividir seu espaço privado com a "comunidade" - haja paciência!

Aborrecido com as críticas que são dirigidas a meu peculiar modo de vida, divirto-me embasando as acusações de misoginia com citações daquele grande frasista norte-americano, o jornalista H L Mencken, que também era um solteiro convicto. Minhas pérolas favoritas são:

"As únicas pessoas realmente felizes que existem são os homens solteiros e as mulheres casadas"

"A única coisa que os homens tem em comum com as mulheres é que nem um nem outro confia em mulheres"

Mencken era bom de copo, e acredito que também é de sua lavra aquela outra frase que muito aprecio: "Bebo para tornar os outros interessantes". O que sei com certeza é que Mencken acabou se casando depois de velho. Ignoro se o mesmo sucederá comigo, mas não procurarei forçar as coisas. Minha bisavó tinha um ditado, o que tem que ser seu cai no seu colo; o que não tem que ser seu, você nunca vai conseguir. Enquanto no meu colo não cai nada, vou vivendo feliz como solteiro, e quando me importunam em excesso, solto uma frase curta e grossa, que, dizem os conhecidos, é o meu moto: Família é atraso.

Antes que comecem a execrar-me por amaldiçoar a sagrada instituição da família, apresso-me a explicar: não tenho nada contra a família nuclear - aquela constituída por pai, mãe e filhos menores de idade. Exceto por certos hippies e uns tantos fanáticos religiosos, ninguém jamais contestou a validade da família nuclear. Refiro-me à família estendida, que ainda é relativamente comum entre nós. Neste caso, quando digo que família é atraso, não estou debochando. Esta instituição de família estendida é efetivamente um arcaísmo. Remete ao patriarcalismo, à posse comunal, a um estado débil e incapaz de prover segurança social aos jovens, aos idosos e aos solitários - e este papel invariavelmente recai sobre a família.

São tênues as fronteiras entre a família nuclear e a família estendida. Se uma casa abriga um casal e seus filhos, temos a família nuclear. Mas se os filhos permanecem morando com os pais depois de crescidos, já não se trata mais da família nuclear. Temos aí a família estendida. Se também moram sogros, avós, tios e primos, a família é estendida em grau ainda maior, até chegar à caricatura de Casa Grande & Senzala, o casarão abrigando uma enorme quantidade de parentes liderados por um patriarca, aí incluídos agregados, ex-escravos e filhos bastardos eventualmente reconhecidos. Mas não vejo esta instituição familiar tradicional como mero atraso de vida - vou além, e acredito que há, efetivamente, alguma coisa maligna nela. Pois não é por acaso que a família estendida seja característica de países atrasados e subdesenvolvidos, enquanto no Primeiro Mundo os jovens procuram sua independência desde cedo, e os idosos vêem a aposentadoria como a época de usufruir dos frutos de uma vida de trabalho, e não de bater à porta de seus filhos e netos.

O espírito de Casa Grande ainda está bem presente entre nós, infelizmente. É atávico. Lembro-me de um jogador de futebol, Renato Gaúcho, que certa vez estava negociando a renovação de seu contrato. Quando o repórter perguntou-lhe se não estaria pedindo muito, ele saiu-se com essa: "Mas eu tenho sete irmãos para sustentar!" Não é brincadeira... Li certa ocasião a respeito de uma baiana que vendia quitutes pelas ruas de Salvador. Começou com uma pequena produção artesanal, industrializou-a e passou a vender em larga escala. Tornou-se muito rica e foi morar em uma mansão com vista para a baía. Quero dizer, ela e mais quinze parentes que vieram do interior. Um filho de uma amiga minha efetivamente conviveu com um colega, filho de um jogador de futebol famoso na época, cujo nome eu omito. Ele achava graça quando ia visitar o colega em sua casa - uma suntuosa mansão em Vitória, Espírito Santo - e encontrava a casa tomada por parentes pobres, gente sem modos, que se comportavam como se estivessem em uma favela. Refletindo, o que o país ganhou com esses dois cidadãos que eram pobres e se tornaram ricos? Dois bons pagadores de impostos, presumo. Mais dinheiro circulando. Mas ao mesmo tempo, outras duas dezenas de cidadãos - sua parentela - tornaram-se improdutivos para a economia, de modo que o saldo, na realidade, foi nulo. Tudo porque se acredita que, quando se tem um parente rico, todo o resto da família tem o direito de viver como vagabundo. Bem diferente é o caso da ênfase na família nuclear, característica dos países ricos, onde o afã de obter a independência incentiva os jovens a se tornarem produtivos, bem como incentiva à poupança, já que todos sabem que não poderão contar com a ajuda de parentes na velhice.

Mas há casos piores que o Brasil. A crença de que cabe aos filhos sustentar os pais na velhice, em certas partes do mundo, faz com que a produção de descendentes seja condição sine qua non para se garantir um final de vida feliz. Para melhor garantia, cumpre gerar boa quantidade de descendentes. Isto é desastroso para países que tem grave problema de superpopulação, a qual já é um enorme obstáculo ao crescimento da economia. Mais desastroso ainda é dar preferência à geração de descendentes do sexo masculino, por serem os meninos promessa de receita, enquanto as meninas são promessa de despesa. O resultado deste desequilíbrio entre população masculina e feminina se fará sentir em um breve futuro na forma de uma brutal queda na natalidade, já que não haverá mulheres suficientes, e milhões de homens ficarão solteirões e morrerão à míngua sem ter filhos que os sustentem.

Por estas e outras, acredito firmemente que a família é um estágio inferior de vida em sociedade, uma etapa que deve ser superada. Tal como a religião, a família é uma instituição respeitável, mas também é um dente de leite que, mais dia menos dia, tem que ser arrancado caso se deseje prosseguir rumo ao desenvolvimento. Cumpre substituir a assistência da família pela assistência do estado. Mesmo porque a assistência do estado se faz de forma eqüitativa a todos os cidadãos, enquanto a assistência da família obedece aos laços de sangue. Desta forma, a persistência de fortes laços familiares é, em última análise, um obstáculo ao progresso econômico, uma vez que, ao se tratar de negócios, a consangüinidade passa a ser um fator mais importante que a competência e a honestidade. Na Europa, é bem conhecida a comparação entre o sul e o norte da Itália: no sul, as associações comerciais se fazem, em geral, entre parentes, enquanto que no norte os negócios se fazem entre estranhos, e obedecendo a critérios puramente comerciais. A diferença de desenvolvimento econômico entre o sul e o norte da Itália, sem dúvida, tem alguma coisa a ver com essa diferença de atitude. Aliás, uma organização do porte da Máfia só poderia ter surgido em um lugar onde laços familiares são importantes, pois é sabido que esta é a verdadeira fonte da extraordinária coesão que une os bandos mafiosos. É também significativo que a corrupção seja um fenômeno bem mais comum nas sociedades onde a família é mais respeitável que o estado: aos olhos do zé-povinho, é justificável roubar esta entidade impessoal chamada "estado" e distribuir para a família, sobretudo se esta "família" inclui a comunidade onde vive o político ladrão. Tudo se reduz a uma ação entre amigos. Note-se que os esquemas de corrupção quase sempre envolvem familiares. As palavras "corrupção" e "família" costumam andar juntas, sempre em um destes dois contextos: ou se rouba para a família, ou se rouba a família.

Aqueles prédios de apartamentos bem construídos, cada apartamento com seu solitário morador, tão encontradiços nas antigas metrópoles européias, para mim tem um significado especial: eles representam a vitória contra o atraso, o triunfo de um indivíduo a quem é concedida a prerrogativa de viver como bem entende, sem se ver forçado a encenar uma vida familiar de conveniência. Mas não falta quem veja nisso um sinal de que os cidadãos de Primeiro Mundo são uma turba de solitários e infelizes. Haja paciência!

 

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