A Armadilha dos Esquematismos | ||
Se você é de minha geração, deve saber que toda a nossa percepção do mundo social e político foi, desde a juventude, moldada por um conjunto de esquematismos bem manjados. Refiro-me àqueles modelinhos teóricos simplificadores, onde havia um cenário pré-definido e um reduzido número de atores destinados a desempenhar sempre os mesmos papéis: o Bom e o Mau, o Burguês e o Proletário, o Nacionalista e o Entreguista, a Elite e as Massas, o Imperialista e o Revolucionário. Como peças em um tabuleiro, cada uma tinha que se encaixar no orifício que lhe era destinado. Não encaixava? Ora, tem que encaixar. Reconheço que o uso de esquematismos tem lá seus méritos: ele é eficaz para doutrinar indivíduos que tem escassa noção de história e sociologia. Tudo se reduz a identificar, nas pessoas reais, os personagens pré-definidos, e acreditar que elas agem com tais. Aqui estão o burguês, o imperialista, lá está o povo, o nacionalista. Aqui estamos nós, lá estão eles. Lá está o mal, aqui está o bem. Tudo muito fácil. Mas uma pitada de raciocínio honesto não tarda a revelar todo um mundo contradições, que vem nos lembrar, cruelmente, de que a realidade é mais complexa que nossos modelitos redutores. O problema é que nem todos gostam de raciocinar. Não os culpo por isso: conforme já observei antes, o hábito de raciocinar predispõe à solidão. E notem bem, eu me referi a uma combinação de raciocínio e honestidade, duas qualidades relativamente raras, e mais raro ainda é ocorrerem juntas. Vou citar só algumas das múltiplas contradições entre nossos dogmas consagrados e a realidade histórica. A primeira delas é a crença, muito arraigada, que identifica "direita" com as classes ricas e dominantes, e "esquerda" com o povão. Um governo de extrema-direita seria, então, o paroxismo da tirania exercida pelos ricos contra os pobres. Verifiquemos o regime nazista, tido e havido como o mais radical dos regimes de direita. De saída, uma coisa estranha: nazismo é uma abreviatura de nacional-socialismo. Eu disse socialismo? Disse sim, e digo mais, para quem não sabe, a cor vermelha do fundo da bandeira nazista era uma referência ao ideal socialista do movimento. É certo que estes ideais foram totalmente deturpados por Hitler, e o regime nazista, na prática, não era socialista. Mas uma coisa é inegável: Hitler era um demagogo e populista, um líder cujo poder emanava do povo, e não das elites. Foi precisamente uma massa de trabalhadores desempregados e ex-militares que levou Hitler ao poder, em 1933. Muitos destes eram ex-comunistas. O caráter populista da liderança de Hitler estava consubstanciado na própria pessoa do Führer, ex-indigente e ex-soldado raso, indivíduo profundamente plebeu, grosseiro e vulgar, que nunca escondeu o desprezo que sentia pela antiga aristocracia alemã da época do kaiser, a quem responsabilizava pela derrota na 1a guerra mundial. O sentimento era recíproco: os ricos referiam-se a ele como "o cabo Adolf". Embora tenha recebido o apoio dos grandes banqueiros e industriais, Hitler jamais foi uma cria da elite, nem jamais deixou-se manipular por ela: ao contrário, impôs-lhe um jugo rigoroso, e qualquer patrão que se atrevesse a elevar em poucos centavos o preço das mercadorias corria o risco de ir parar na prisão sem processo. Para o caso do fascismo italiano, a identificação com os ricos aparentemente procede: de fato, o regime de Mussolini, assim como o de Franco e Salazar, foram regimes apoiados pelas elites que procuraram atrair o apoio das massas mediante apelos ao patriotismo. Mas se o fascismo é, em tese, tão pró-patrão e anti-trabalhador, como se explica que nossas leis trabalhistas, tão ardorosamente defendidas pela esquerda, tenham se originado de uma cópia descarada da Carta del Lavoro, a legislação corporativa de Mussolini? Aparentemente, o Duce não era tão mau assim com os trabalhadores, ao menos na opinião dos getulistas. A realidade é que os regimes fascistas jamais tiveram o apoio inconteste das classes ricas e conservadoras, que os viam mais como uma alternativa eficaz para deter o comunismo. Efetivamente inimigos do trabalhador não são os fascistas, mas os liberais ultrapassados e os oligarcas, indivíduos que só tem uma vaga idéia do que seja o capitalismo. Na outra extremidade, também tenho dificuldade para entender por que se insiste tanto em identificar a esquerda com a porção pobre da população. Sobretudo no Brasil, a militância de esquerda não tem sido coisa de operários, mas de intelectuais, filósofos e escritores. Os principais expoentes da luta armada no Brasil não foram camponeses ou trabalhadores, mas intelectuais universitários e ex-oficiais do exército, indivíduos oriundos, em sua maioria, da classe média, que nunca sentiram na pele as reais dificuldades de quem vive do trabalho. Até hoje o decano do comunismo no Brasil é o arquiteto Oscar Niemeyer, nascido em berço de ouro, e rico foi a vida toda. Temos a contradição: o ideário socialista foi gestado, no século XIX, por pensadores e filósofos bem nutridos, ao passo que as práticas capitalistas foram uma criação do povo, no dia-a-dia da luta pela sobrevivência, e só em época relativamente recente elas foram metodizadas por uma categoria profissional especializada (os economistas). O capitalismo tanto é uma criação do povo, que o povo está sempre a recriá-lo: haja visto os cubanos que transformam a sala em restaurante e o carro particular em taxi para ganhar alguns trocados de dólar. Ao contrário do socialismo, o capitalismo não tem inventores conhecidos, nem data de surgimento: suas práticas mais elementares terão surgido, talvez, no dia em que o primeiro troglodita trocou com o vizinho um saco de aveia por um arco-e-flecha. Há outras contradições menores, tão triviais e diluídas no noticiário, que já nos habituamos com elas, como a insistência em atribuir os fracassos da economia às "políticas neoliberais" que no entanto jamais foram implementadas aqui, pois que ainda estamos em um estágio pré-capitalista. Também não entendo por que motivo a esquerda amaldiçoa tanto a globalização, se o próprio Marx foi o primeiro a clamar: "Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos!" Na verdade, tudo isso nada mais é que o teatro dos esquematismos: os personagens são permanentes, variam os atores encarregados de dar-lhe rosto. O Mal ora é encarnado pela Globalização, ora pelo Neoliberalismo, ou o Deus Mercado. O Imperialista às vezes é Portugal, às vezes os EUA, a Alca, etc. Tudo é supostamente, manobrado por forças ocultas que obedecem a interesses escusos de explorar os países pobres e os trabalhadores. Entidades impessoais, como o Mercado, ganham status de seres vivos dotados de inteligência e intenções malignas. Quanto a mim, modestamente afirmo que não tenho opinião formada quanto ao Neoliberalismo, por nunca tê-lo vivenciado. Não considero o Mundo Globalizado intrinsecamente bom nem ruim; ele é, simplesmente, o único mundo real que existe. E é pura fantasia transformar o Mercado em um monstro voraz, voluntarioso, de humor cambiante, quando ele nada mais é que a manifestação passiva dos desejos de consumo de milhões de consumidores no mundo inteiro. Presos a esquematismos, afundamo-nos em um mundo de fantasia, e dedicamos nosso tempo a propor falsas soluções para falsos dilemas. |
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