O
que é a democracia? |
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Recentemente escrevi sobre o capitalismo, e expliquei porque eu o apóio. Não expliquei porque eu o amo - uma vez que eu não o amo - mas expus meus argumentos no sentido de mostrar que o capitalismo é preferível a outros sistemas econômicos. O mesmo tom que empreguei ao discutir o capitalismo pode ser empregado para discutir a democracia, e seria bastante oportuno fazê-lo, uma vez que este binômio - democracia e capitalismo - é uma constante nas nações mais prósperas e mais justas do planêta. Não admira que democracia rime tão bem com capitalismo, pois a definição de ambos é bastante análoga: democracia é a liberdade no terreno político, e capitalismo é a libedade no terreno econômico. Tanto a eleição como o mercado são a expressão do desejo da maioria. Pelo candidato preferido, pelo produto preferido. Tal como referi-me em relação ao capitalismo, contudo, recuso-me a ver uma benignidade intrínseca na democracia, posto que a benignidade - assim como a malignidade - é uma característica que se aplica a indivíduos, e não a sistemas políticos ou econômicos. Se a democracia é a vontade da maioria, ela só pode conduzir ao poder o mais benigno dos candidatos, certo? Errado. Qualquer um com um mínimo de conhecimento de História é capaz de enumerar uma lista de canalhas que um dia venceram uma eleição. Análogamente, o mercado não é um instrumento de justiça, mas uma arena de luta onde nem sempre vence o melhor. Às vezes vence o produto que foi revestido de uma melhor estratégia de marketing, ou que beneficiou-se de subsídios ou outras coisas menos éticas. A definição de Winston Churchill foi lapidar: a democracia é o pior dos regimes políticos... bem, excetuando-se todos os outros. Abrahan Lincoln definiu o governo democrático como "remar um bote, tendo sempre a água pelas bordas". Ele sabia o que estava dizendo, pois é até hoje o paradigma do governante democrático. Um candidato eleito democráticamente não é, de modo algum, uma garantia de que seu governo realizará a vontade da maioria. Quando dizemos: "Fulano foi eleito presidente", o que estamos afirmando, strictu sensu, é que houve um dia no passado - o dia da eleição - em que a vontade da maioria era de que Fulano fosse presidente. Mas nada impede que, no dia seguinte a sua posse, Fulano tome medidas impopulares, e não mais represente daí por diante o desejo da maioria. De maneira análoga, a História registra abundantes exemplos de déspotas que não chegaram ao poder democráticamente eleitos, mas que ainda assim desfrutaram da aprovação de seu povo por largo período de tempo (embora a moda seja todos negarem isto escandalizados quando o ditador é derrubado). Um bom exemplo foi Mussolini. Não, Hitler não, este foi eleito de forma plenamente democrática, fato que até hoje é embaraçoso para os alemães. Se, conforme demonstrei, é altamente improvável que a vontade da maioria coincida com o melhor dos candidatos, qual é, então, a utilidade da democracia? A democracia vale pelo contexto jurídico no qual ela se encontra inserida. É inconcebível a democracia sem o pacote de liberdades e garantias individuais. Quando nada, a democracia propicia uma maneira ordenada e pacífica de substituir o mandante incompetente a intervalos peródicos. Em regimes ditatoriais, a mudança de governo só pode ocorrer pela força, e o trauma da ruptura é sentido em vários campos, inclusive o econômico. Manter deputados e senadores custa caro, mas a revolução e a guerra civil são mais caras ainda. A prática democrática, a longo prazo, fomenta a solução negociada de conflitos, a estabilidade política e a civilidade dos cidadãos. Um antigo ditado inglês dizia: "Os criados conversam a respeito de pessoas, os lordes conversam a respeito de coisas". Com isto queriam dizer que a análise dos conceitos abstratos é própria das mentes mais elevadas, enquanto as mentes rasteiras só conseguem perceber aquilo que é concreto a seus sentidos. Não se deve, portanto, julgar as coisas pelas pessoas: a pessoa pode ser má, mas a coisa é boa. O presidente eleito pode ter sido um desastre, mas isto não invalida a eleição como método de escolha. O deputado pode ser um ladrão, mas nem por isso a instituição do parlamento deixa de ser a garantia do povo contra o poder absoluto. A democracia é uma coisa. Por vezes, para destruir a pessoa, se destrói a coisa junto. E depois se descobre que aquilo que foi fácilmente destruído não pode ser refeito com igual facilidade. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando um golpe militar depôs o presidente argentino Irigoyen em 1930, e desta forma interrompeu a normalidade constitucional que já durava décadas, e dentro da qual as classes médias vinham paulatinamente tomando o terreno da velha oligarquia agrária. Quando se tentou retomar a normalidade constitucional, já não era possível. Como se sabe, a Argentina viveu 60 anos de caos político, cujos efeitos até hoje não foram superados, e viu seu promissor destino de nação democrática e desenvolvida ser substituído por um prosaico fado terceiro-mundista. Aqueles que destruíram a democracia não perceberam que os regimes são mais longevos que as pessoas, e que a fórmula do progresso não é o brilhantismo individual do presidente, mas a estabilidade do sistema político como um todo.
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