A Cultura do Outro | ||
Uma palavrinha que tem estado muito na moda ultimamente é cultura. Ela é repetida todos os dias em artigos e discursos, quase sempre referindo-se à cultura do "outro", sendo frisado que deve ser respeitada e preservada. Tudo, enfim, é cultura, e todas as culturas são igualmente respeitáveis; aprender a respeitar a cultura alheia seria, enfim, um exercício de civismo, tolerância e sabedoria - parece ser essa a mensagem que se deseja passar. Em meus dias de jovem essa palavrinha tinha outra conotação. Recendia a Machado de Assis, Guimarães Rosa e Camões, sei lá, para nós naquele tempo não havia muita diferença entre um e outro. Evocava, enfim, coisas sérias e formais, tão importantes quanto desinteressantes. Hoje, porém, ela é empregada em outros contextos - a cultura dos ianomâmis, a cultura dos caiçaras, a cultura dos camponeses, a cultura afro, a cultura das periferias. Trata-se, portanto, do sentido antropológico do termo, isso é, refere-se ao conjunto de crenças, valores, usos e costumes de determinada comunidade, não necessariamente sua produção intelectual e artística de valor, que era o que eu entendia por cultura em outros tempos. Não estou aqui para concordar ou discordar desta definição - são diferentes acepções do mesmo termo, e ambas constam nos dicionários. Mas o fato é que definir qualquer diferença entre duas comunidades distintas como sendo a expressão de culturas diferentes nos conduz a certas conclusões meio esquisitas. Somos levados a crer que não somos bem um povo, mas um arquipélago de culturas - todas elas, relembrando, igualmente respeitáveis e que nada têm a aprender com os demais. Que nesses dias de globalização e massificação sem graça, sentimos despertar o instinto de preservar o exótico antes que desapareça, isso eu até compreendo. Que os ianomâmis tenham uma cultura diferente da minha, eu também concordo, muito embora o próprio termo ianomâmi seja controverso, e ao que parece foi inventado para rotular índios de diversas etnias que habitavam a área que se desejava transformar em reserva. Que os caiçaras tenham uma cultura diferente, aceito menos. Sem dúvida que são comunidades isoladas que preservam alguns costumes arcaicos, mas desde a chegada da televisão e da escola pública eles têm ficado mais em dia com o resto da população. Mas agora, ruim mesmo de engolir é essa tal de "cultura da periferia". E é justamente essa que mais tem sido falada por aí. Houve até uma matéria recentemente publicada na revista Veja a respeito. O articulista Reinaldo de Azevedo cunhou uma expressão para definir essa mania de ver uma "nova cultura" em quaisquer manifestações de vulgaridade e falta de civilidade, quando não de franca delinqüência, que vicejam nas periferias tomadas pelo crime: trata-se da Antropologia da Maldade. Escreve o articulista: "Um antropólogo da maldade não acredita ser possível ensinar matemática ou a poesia de Camões e Manuel Bandeira ao morro ou à periferia, mas está certo de que o morro e a periferia é que têm de ensinar funk e rap aos 'imperialistas' e aos 'playboys', já que se trataria da expressão de um novo sistema de valores. (...) Os nossos antropólogos da maldade não chegam exatamente a se identificar com a 'civilização' do morro e da periferia, mas têm por ela um respeito basbaque e reverencial. Lutam para preservá-la da nefasta influência da cultura central, esta nossa vocês sabem, corroída pelo materialismo, pelo capitalismo e por um moralismo de fachada." Esse respeito basbaque e reverencial por tudo o que vem dos morros não começou ontem. Vem pelo menos desde os tempos do Estado Novo, com sua busca por nossa "identidade nacional", pelo "resgate das raízes", obsessão que bem denota a influência do fascismo italiano no regime. Decidiu-se que o Brasil autêntico seria o das favelas, e em base nisto, o samba, ritmo de negros e malandros, saiu de sua posição marginal para o posto de dança nacional. O carnaval, antes mal visto, foi revestido de pomposo significado antropológico e alçado à condição de núcleo de nossa cultura e própria síntese da brasilidade. Poucos deram atenção na época, tal como poucos hoje dão atenção, àqueles que argumentam que as verdadeiras raízes de nossa cultura popular não deveriam ser buscadas nas favelas urbanas, e sim no interior. Mas isso é um aspecto secundário da questão. O aspecto central consiste em assinalar à favela o papel de Brasil mais genuíno, como se os favelados fossem de uma população autóctone que supostamente sempre ocupou os morros, e que acabou cercada pelo povo do asfalto que ali chegou como colonizador. Se o samba deve ser reconhecido como o ritmo nacional por excelência apenas porque surgiu naquele território que se definiu como o Brasil "genuíno", pelo mesmo motivo o funk e o rap devem ter igual reconhecimento. Não importa que as letras dos sambas antigos sejam poéticas e ricas em melodia, e que as letras dos raps sejam obscenas, sem musicalidade e incitadoras à violência: o que importa é que elas vieram das favelas, e como tal estão legitimadas como manifestações autênticas da cultura das periferias, ou melhor dizendo, da cultura nacional, posto que o resto é excrescência de colonizador. E é precisamente a este argumento que têm recorrido os defensores do funk e da cultura das periferias em geral. Criticá-las é politicamente incorreto - trata-se de arrogância do colonizador contra o colonizado - mas em contrapartida, os compositores de raps estão autorizados a utilizar toda sorte de incorreção política em suas letras, inclusive mandando desrespeitar e agredir as mulheres (um tapinha não dói...) Tudo isso poderia ser apenas uma tolice inócua, não fosse uma vertente realmente perigosa em que o respeito pela "cultura do outro" tem nos metido: a questão da segurança pública. Não é de hoje que as favelas e outras áreas da periferia têm se tornado "territórios liberados" onde a polícia não entra sem ordem superior, e onde mandam efetivamente os chefões das quadrilhas. O reconhecimento da cultura da periferia vem a dar uma justificativa perfeita para a omissão do Estado: tratar-se-ia do respeito que é devido ao território alheio. Já ouvi esta argumentação colocada de inúmeras maneiras, sempre da boca de sociólogos, ongueiros e demais pessoas interessadas na cultura da periferia: a polícia não deveria entrar nas favelas sem a autorização da comunidade local. Não se trata, como parece à primeira vista, de uma preocupação quanto à possibilidade da ação da polícia atingir inocentes ou desrespeitar os direitos humanos; na verdade, nem entram no mérito desta questão. O que eles querem dizer é que a ação da polícia seria, a priori, irregular, por se tratar de intromissão em um território fora de sua jurisdição, um território que pertence a uma outra cultura, no sentido antropológico do termo. A favela é equiparada a um enclave étnico, e a presença da polícia configuraria uma "invasão". Quanto aos crimes que acontecem ali dentro, eles seriam não mais que questões internas da comunidade, perfeitamente compreensíveis sob a ótica peculiar de sua cultura. Trocando em miúdos, querem convencer-me de que devo ter, quanto aos homicídios que acontecem a duzentos metros de minha janela, o mesmo olhar neutro que é devido a uma guerra tribal entre índios que estão a dois mil quilômetros de minha janela. Sob qualquer prisma que se examine essa argumentação, ela é absurda. Ainda que os habitantes das periferias fossem mesmo praticantes de uma outra cultura no sentido antropológico, isso não os isentaria das prerrogativas da autoridade pública. Mesmo porque, pedir a autorização dos líderes comunitários antes de entrar em uma favela seria como pedir autorização aos bandidos antes de prendê-los, pois é sabido que as facções criminosas que dominam as periferias não permitem que permaneça no cargo nenhum líder comunitário que não seja de seu agrado, e todos eles são, no mínimo, coniventes com os bandidos, quando não seus porta-vozes. Mas para economizar palavras o melhor é ir ao centro da questão e chamar a atenção para um ponto: a cultura da periferia simplesmente não existe. Se existisse, teríamos que falar, igualmente, de uma "cultura da zona sul" e uma "cultura da zona norte", de uma "cultura dos Jardins" e uma "cultura da Moóca", de uma "cultura da Cidade Alta" e uma "cultura da Cidade Baixa". Peculiaridades todos temos, e o que se convencionou chamar de cultura da periferia não passa de um apanhado de modismos, em geral importados dos guetos norte-americanos, não raro grotescos e caricatos, freqüentemente anti-sociais. A preocupação obsessiva que a turma dos "movimentos sociais" tem manifestado no sentido de separar as minorias - índios, negros, habitantes de periferias - em verdadeiros guetos psicológicos, ao convencê-los de que constituem uma cultura distinta e única, realmente dá o que pensar. O que pretendem eles, afinal? O que ganham com isso? O que os bandidos das favelas ganham com isso, é fácil de ver; quanto à garotada das ONG's, não é tão óbvio. Penso que essa mania de "respeito basbaque e reverencial" pela marginália é conseqüência de uma transformação por que vem passando a esquerda brasileira já há algum tempo, mas que se intensificou desde meados dos anos setenta, após a derrota da luta armada, que conforme é sabido, não teve o apoio dos trabalhadores - quase todos os guerrilheiros eram líderes estudantis, ex-militares, padres. Constatando que os trabalhadores não estavam do seu lado, os esquerdistas resolveram substituí-los pelos marginais das favelas no papel de classe-oprimida-revolucionária. A partir de então, seus produtores culturais pararam de idealizar operários e passaram a idealizar bandidos, invariavelmente mostrados como criaturas vítimas do "sistema" perverso, mas com caráter forte e preocupações sociais. Até mesmo o bandoleiro Lampião foi reciclado pelo cinema de Glauber Rocha para o papel de Pancho Villa tupiniquim. O fascínio que os esquerdistas têm pelos traficantes das favelas é compreensível: eles foram bem sucedidos exatamente onde a guerrilha fracassou, em angariar o apoio da população carente. Enquanto os herdeiros ideológicos desse pessoal sonham em transformar as quadrilhas do PCC na tropa de choque que vai alçá-los ao poder após um oportuno esclarecimento político, os bandidos, bem capitalistas, contabilizam lucros cada vez maiores. O irônico de tudo é que essa postura é diametralmente oposta à mentalidade do brasileiro pobre, para quem "trabalhador" e "vagabundo" são duas categorias que não se misturam. O "trabalhador" odeia intensamente o "vagabundo", e não sem motivo, pois desde que nasce sofre nas mãos dele. Começa na escola, apanhando dos garotos da gangue. Depois, camelô, vê a féria do dia ser levada por um pivete. Dia desses tem uma irmã estuprada. Sempre que volta para a casa, cruza com os soldados do tráfico, armados com metralhadoras, arrogantes e cheirados. Não raro é achacado por eles, e tem que pagar pedágio. Se o seu barraco tem o azar de possuir uma localização estratégica, pode ver-se despejado, ou obrigado a guardar armas e drogas. Um filho começa a freqüentar bailes funk, logo torna-se avião dos traficantes, e um dia aparece morto. Outro filho, trabalhador como ele, morre de uma bala perdida. Na verdade, penso que se um dia a polícia resolver invadir a favela dando mostras de que pretende mesmo aniquilar as quadrilhas e levar todos presos, a dificuldade maior será evitar que os bandidos rendidos sejam linchados pelos moradores. Será essa a real cultura da periferia? |
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