Homenagem a Christiane Schier  
 

 

Uma modalidade de crime que tem crescido cada vez mais no país é aquela que vitima adolescentes. Os casos são numerosos. Alguns são tristemente notórios, consequência do envolvimento de jovens com o mundo do crime. Outros acontecem em circunstâncias tão inesperadas quanto assustadoramente prosaicas. Alguém já imaginou uma menina de 16 anos voltando da escola, em plena luz do dia, saltando do ônibus, e no meio do caminho ser surpreendida por um marginal, estuprada e assassinada a poucos metros de sua residência, sem que nenhum vizinho a visse? E seu corpo ser encontrado depois por seus familiares?

Pois isso aconteceu em Joinville, Santa Catarina, no dia 23 de setembro de 2013. A jovem Vitoria Schier, no caminho de volta da escola, foi agarrada e levada a um matagal que fica em um lado da rua, a apenas 100 metros de sua casa. Ali foi esganada, estuprada e deixada morta dentro de um córrego. Ninguém escutou seus gritos, os únicos protestos vieram dos cães da rua, cujos latidos foram ouvidos. Horas depois seu corpo foi descoberto por seu avô e seu pai, que faziam buscas nos arredores.

O episódio tem a marca de um exemplar cada vez mais presente nos meios criminosos, o estuprador assassino. Antigamente estuprador só estuprava, agora também mata. O modo de ação é sempre o mesmo: emboscam a vítima em um local ermo, primeiro agridem-na violentamente a fim de impossibilitar qualquer resistência, depois estupram-na, e ao final terminam de matar. Foi exatamente assim no caso das quatro meninas de Castelo do Piauí, que pesquisei e publiquei uma análise. Outro dia mesmo, assistindo a TV a cabo, fiquei sabendo de outro caso notavelmente semelhante, ocorrido nos EUA (não me lembro o local). O criminoso abordou a menina de 17 anos no próprio carro dela, conduziu-a a um bosque fora da cidade, ali arrebentou a cara dela a pauladas e estuprou-a. O corpo só foi encontrado anos depois.

Ocorrências tão generalizadas só podem ter uma causa também geral. A meu ver, a causa é a droga. Não que eu acredite que a droga possa transformar alguém em outra pessoa. Mas acredito que o uso prolongado da droga pode potencializar todas as más propensões de um indivíduo, e eliminar qualquer freio interior. Alguém se lembra da sinistra Família Manson? Também se aplica ao já citado caso das quatro meninas do Piauí. Os quatro menores envolvidos eram pivetes, bandidinhos pé-de-chinelo, até que conheceram o maior envolvido, este um traficante tarimbado, que possibilitou-lhes amplo acesso a drogas pesadas. Transformaram-se em monstros.

O assassinato de Vitoria Schier poderia ter sido mais uma estatística com esse perfil. Mas ao pesquisa-lo, notei algo singular na atitude da mãe dela, que se chama Christiane Maccione Schier. Ao invés de recolher-se à sua dor, como é regra nas vítimas deste tipo de crime, ela preferiu elevar a voz. Seu facebook tornou-se uma tribuna onde passou a externar diariamente sua revolta. Gravou vários vídeos no youtube, confeccionou cartazes, fez abaixo-assinados e atos públicos cobrando providências das autoridades e a condenação do culpado, embora não tivesse nenhuma experiência anterior em militância, nem contato com pessoas influentes. Notei nela, sobretudo, uma grande desenvoltura em demolir lugares-comuns largamente invocados para explicar ou justificar ocorrências deste tipo, os quais, incorporados ao senso comum, vão formar uma barreira de pensamentos paralisantes que fazem abortar qualquer reação contra esse estado de coisas. Já havia denotado isso no meu artigo sobre a ausência de propostas consistentes contra a criminalidade da parte dos pré-candidatos, coisa que se repete a cada eleição.

A revolta desta mãe que teve a filha morta expõe sentimentos compartilhados por milhões de cidadãos anônimos, que contudo não ousam verbaliza-los, presos que estão pela muralha destes pensamentos. Por este motivo intitulei este artigo de Homenagem a Christiane Schier, e nele pretendo enumerar e refutar um a um os ditos pensamentos paralisantes.

 

A vítima

Vitoria Schier, de 16 anos, foi descrita como uma menina meiga e tímida, muito ligada à família, que gostava de animais. Tocava violão e escrevia poesias. Queria estudar arquitetura. Seu sonho era casar-se ao som de música sertaneja e morar em uma casinha de madeira com fogão a lenha, em um local retirado, onde pudesse manter todos os cães e gatos abandonados que pudesse. Deem uma olhada nessas imagens.

 

 

 

 

Com certeza tiveram a mesma impressão que eu. Não precisa dizer muita coisa, né? Basta olhar a expressão doce, a ternura dos olhos, a boca delicada, para ter a imediata certeza de que a descrição que foi dada é pura verdade. Mas o que é isso, eu estou julgando pelas aparências? Diz a sabedoria popular, quem vê cara não vê coração. É claro que existem exceções. Quem não se lembra de Suzane von Richtofen? Não era exatamente angelical, mas tinha um rosto anódino, que não sugeria nenhuma expressão de maldade, muito menos que seria capaz de matar os próprios pais. Contudo, a coincidência entre fisionomias e personalidades é algo que se observa com demasiada frequência para que se julgue mera obra do acaso. Retomarei este assunto mais adiante.

Mas Vitoria Schier morreu. Se o rostinho bonito escondia alguns segredos, ninguém sabe, ninguém saberá. Entretanto, um blog que ela iniciou, e onde vinha ensaiando suas primeiras poesias, revela um lado sombrio de sua pessoa. Em uma linguagem hermética, fala de uma floresta fria, de um rio, de uma criatura sem rosto e sem nome que a persegue.

"O frio agora me atormenta aqui na floresta (...) Volto á minha barraca, e vou dormir coberta pelo pano que comprei. Acordo de manhã com uma poça de água vermelha ao meu lado, e sem o pedaço de pano que cobria meu corpo..."

"Ela corre, mas por algum motivo não consegue me alcançar. Ao seu lado vejo uma sombra (...) Acordo assustada. Acordo sob as águas da cachoeira. No desespero vou até a superfície. Enquanto penso que tudo não passava de um maluco sonho, algo vem voando em minha direção, algo totalmente sem feição, sem beleza, algo vazio..."

"Não... Não é uma pessoa. É um... 'Qual o seu nome?', pergunto assustada. 'Não tenho nome', a criatura responde, e ouço a voz por todos os lados..."

 

O criminoso

Chama-se Carlos Alberto de Andrade. As informações a seu respeito são sumárias. Trabalhava como pedreiro, mas cometia roubos, segundo disse, para sustentar seu vício em crack. Afirmou que o assassinato da menina Vitoria não foi premeditado. Ele vinha andando pela rua quando a encontrou, e resolveu roubar seu celular para comprar mais crack. Como estava sob efeito da droga, não se conteve e acabou por estupra-la e matá-la. Posteriormente descobriu-se que ela já havia estuprado pelo menos mais uma outra jovem. O celular roubado de Vitoria, recuperado pela polícia, forneceu pistas para seu paradeiro. Três meses após o crime, foi preso em Paranaguá, onde estava escondido na casa da irmã. Condenado a 42 anos de prisão por latrocínio e estupro, cumpre pena em Joinville, mas já obteve várias reduções da pena por conta de benefícios previstos na legislação.

Este é o rosto dele, ao ser apresentado após sua prisão.

Nada extraordinário, certo? Expressão patética. Um tipo totalmente comum, daqueles que todo dia cruzam conosco no ônibus ou na rua, e nem reparamos. Nada que indique um assassino.

Mas esta outra imagem, tirada de um facebook que ele mantinha, é mais inquietante.

Dá para perceber um esgar de desafio, uma expressão de velhacaria por detrás do cenho franzido e dos lábios retos, algo totalmente sem propósito para uma inocente foto de rede social. Mas o que é isso, estou julgando de novo pela aparência? Sou eu um seguidor de Cesare Lombroso, o criminologista italiano autor da tese de que todo bandido tem cara de bandido?

Como se sabe, as teses de Lombroso serviram de base para o racismo pretensamente científico e hoje se encontram refutadas e desmoralizadas. Mas eu acredito que possuem algum fundamento. Proponho a experiência. Vejam as fotos abaixo e respondam: quem é o bom e quem é o mau?

 

 

Responderam que o bom é o menino de cima, e os maus são os dois de baixo, não? Pois estão totalmente certos. O menino de cima foi assassinado pelos dois mostrados abaixo. Quem quiser saber mais sobre o caso clique aqui.

Acredito que o erro de Lombroso foi julgar que os traços que identificavam os bandidos fossem inatos e pudessem ser descritos como qualquer outra anomalia congênita. Mas os traços da "cara de bandido" na verdade são adquiridos ao longo da vida, em consequência de vícios, maus hábitos e maus pensamentos. Diz a sabedoria popular, quem vê cara não vê coração. Mas a sabedoria popular também diz que os olhos são o espelho da alma...

Deem agora uma olhada nesta cara.

Não precisa dizer nada. Você gostaria de cruzar com este indivíduo em uma rua escura?

Pois ele é Adão José da Silva, o adulto que comandou quatro menores no estupro coletivo das quatro meninas de Castelo do Piauí, do qual resultou a morte de uma delas. Chamava-se Danielly Rodrigues, e tal como as outras três, foi atirada de um despenhadeiro, e depois ainda jogaram-lhe na cabeça uma enorme pedra.

Danielly, de 17 anos, era uma menina doce, irmã mais nova, religiosa, não tinha namorado e gostava de ficar com a família. Muito parecida com Vitoria Schier. Veja o que fizeram com esse anjinho. Ela é a da direita. A da esquerda sobreviveu não se sabe como.

Mas que coisa, todas as vítimas se parecem, e seus assassinos também se parecem. Uma conspiração dos maus contra os bons?

Adão José da Silva foi condenado em fevereiro de 2018 a 100 anos de cadeia. Mas todos sabem que não vai passar a vida inteira atrás ds grades, pois mesmo que não receba nenhum benefício de redução de pena, no Brasil ninguém pode ficar mais de 30 anos sob regime fechado. Um dia ganhará condicional. Os três menores que participaram do estupro coletivo (o quarto foi morto pelos comparsas) foram condenados à pena máxima permitida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, 3 anos de medidas sócio-educativas. Isso foi em 2015. Se ainda não foram soltos, o serão em breve. Que tal cruzar com um deles em uma rua deserta? O assassino da menina americana cujo caso tomei conhecimento na TV a cabo foi condenado à prisão perpétuo. Descobriu-se que ele já havia matado outra adolescente. A condenação não trará de volta à vida suas vítimas, mas o impedirá de cometer novos crimes. Ninguém nunca mais vai cruzar com ele em uma rua deserta.

Enquanto isso Carlos Alberto de Andrade permanece preso, mas sabe-se que em poucos anos estará de volta às ruas. Diga-se de passagem, Adão José da Silva estava em liberdade condicional quando cometeu o crime. Sempre fora um criminoso costumaz. Já Carlos Alberto, ao que parece, levava vida dupla; era trabalhador, tinha mulher, filhos e facebook, mas esporadicamente cometia crimes. Talvez o vício em crack tenha tornado sua rotina criminosa mais frequente. Isso é que dá mais medo, um criminoso que se esconde sob uma pele de cordeiro. Sabemos que existem monstros, mas é confortante a certeza de que podemos identifica-los porque monstro tem cara de monstro. E se não tiver?

 

Christiane Maccione Schier

É a mãe de Vitoria Schier. O enredo do crime pode ser lido em uma busca pelo Google, mas o drama pessoal da família aparece em capítulos no facebook de Christiane. Eu normalmente evitaria expor aqui uma pessoa vítima de tal tragédia, mas os escritos dela, que fez de seu facebook uma tribuna, fizeram-me ver que eu estaria ajudando-a com esta exposição.

As postagens mais antigas mostram uma família tranquila em feliz. Até que no dia 23 de setembro de 2013 surge uma mensagem dando conta de que a filha desapareceu às 13 horas no caminho de volta da escola, e pede ajuda para encontra-la.

O que vem em seguida é o relato de um sofrimento pungente, dia após dia.

"Essa dor chega a ser física, dói o corpo, dói o peito, dói tudo, meu corpo está cansado, com sono , mas minha mente ainda não descansou até agora, meu sonho e meu pedido a Deus de todas as noite é que Ele tenha misericórdia de mim e me leve pra junto dela o mais breve possível, muito breve, só assim vou descansar e voltar a ser feliz"

"Infelizmente acordei para mais um dia sem minha filha, INFELIZMENTE, tudo é ao contrário na minha vida, então vou gritar bem alto que quero viver..tá: Deus, eu quero viver. (quem sabe assim ele tira a minha vida de vez, se tanto eu e pedi que cuidasse da minha filha, que a protegesse, e Ele fez ao contrário,) vou pedir tudo ao contrário então"

Mas a dor e a revolta vão aos poucos sendo sucedidos pelo desejo de justiça.

Em suas próprias palavras, sua dor foi transformada em uma grande batalha. Chamou-me a atenção, sobretudo, a disposição de confrontar abertamente certos tabus contra os quais raramente alguém investe, e que são a substância dos pensamentos paralisantes que enumerarei em seguida. A mim fica a impressão de que a revolta de Christiane Schier é a revolta de milhões de brasileiros aterrorizados pelo crime, mas que não ousam expressa-la em palavras, temerosos da condenação por haverem profanado certos tabus tidos como palavras sagradas.

"Não é só dor da perda, não é só saudade, é uma revolta interminável, é um ódio muito grande do monstro que tirou a vida do meu anjo, é uma tortura diária, é um rancor interminável"

"me deu vontade de avançar quando alguém me disse que eu devia orar por ele e não sentir este +odio.... pasme... por Deus quase avancei.. por isso tenho até medo de ir na igreja, de falar com padre.. só de medo de ouvir isto.. por isto.. neste momento quero distância de igreja.. nem que o PAPA me peça para perdoá-lo.. nem Deus.. nem deus pedindo.. NUNCA NUNCA NUNCA.."

Christiane também reviu suas convicções religiosas. Teve uma ferrenha discussão com uma intitulada pastora que afirmava que ela devia perdoar o assassino. Lembrou-a de que ela não havia aparecidopara conforta-la quando a filha foi assassinada, só apareceu quando o assassino foi pego, o quem mostra sem dúvida de que lado ela estava.

"buscávamos respostas, e o que ouvíamos eram as mais absurdas possíveis, inclusive de líderes religiosos, coisas do tipo: "Deus quis assim", "ela cumpriu sua missão" , "você tem que parar de sofrer senão ela não descansa" "ela era uma flor e foi enfeitar o jardim do céu", "é um anjo no céu" , "tudo tem um propósito" (ahh que belo propósito, morrer assassinada)... e mais um monte de besteiras. E tudo isso só me machucava, me destroçava mais do que eu já estava, todas estas besteiras nunca me consolaram, só me revoltavam ainda mais, e me afastavam cada vez mais de Deus"

Embora não tivesse experiência em militância nem contato com pessoas influentes, Christiane moveu uma campanha com cartazes, marchas e abaixo-assinados, pedindo a punição do culpado. Admirei-me da força que pessoas inteiramente comuns são capazes de revelar.

Também fez uma petição para que no matagal onde sua filha foi assassinada fosse erguidoum Centro de Educação Infantil com o nome de Vitoria Schier.

Christiane Schier teve a satisfação de ver o assassino pego e condenado à pena máxima, mas ainda faz campanha para que ele não seja solto por força de benefícios de redução de pena concedidos pela lei.

Fica no ar a pergunta: uma vez atingido por uma tragédia, qual a atitude mais sábia? Alimentar um rancor autodestrutivo, ou o esquecimento como autopreservação?

Podemos comparar com o já citado caso das quatro meninas do Piauí, que pesquisei. Uma das vítimas declarou: "se o passado fosse bom, era presente". Outra escreveu: "guardar rancor é tomar veneno e esperar que o seu inimigo morra". Uma terceira, ao sair do hospital, disse que ia orar pelos estupradores.

"Para a equipe médica, a menina disse que var rezar pelos estupradores. 'Esperávamos revolta, raiva, não uma reação dessas', afirma o médico Gilberto Albuquerque. Ela frequenta a Igreja Batista. 'Tem muita fé em Deus. É isso que sustenta ela', explica o pai"

É ainda mais revoltante ver o que fizeram com uma menina de tão bom coração, capaz de rezar pelos seus carrascos! Mas essa atitude seria a mais sábia? Cada um que preste contas a sua consciência. De uma coisa, entretanto, não fica dúvida. Casa um é livre para perdoar as ofensas cometidas contra si. Mas não é livre para perdoar as ofensas cometidas contra outros, no caso, um ente querido. Da parte dos pais das meninas agredidas, não li nenhum comentário deste teor.

Um ano após o crime, os pais de Danielly Rodrigues ainda não haviam tocado no quarto fechado da filha assassinada.

 

Dois Juízes

O julgamento de Carlos Alberto de Andrade foi marcado. Christiane e seus apoiadores fizeram manifestações em frente ao forum, pedindo a pena máxima.

A 26 de março de 2014, o esforço foi recompensado. Carlos Alberto foi condenado pela juíza Karen Schubert à pena máxima de 42 anos.

Mas conhecendo o Brasil, sabemos que ser condenado a tantos anos não significa que o criminoso ficará esses tantos anos atrás das grades. A legislação prevê inúmeros benefícios que permitem a redução da pena. Meses depois, o juiz João Marcos Buch concederia a Carlos Alberto a oportunidade de estudar na cadeia, tendoem contrapartida a redução da pena, que poderia ser limitada a meros 16 anos.

Qual juiz agiu certo? Na realidade, tanto Karen Schubert quanto João Marcos Buch agiram estritamente dentro da lei. A diferença foi que uma procurou a pena máxima dentro do que possibilitava a legislação penal, e o outro procurou todos os meandros possíveis a fim de dar a pena mínima. O hiato entre a primeira e o segundo mostra toda a elasticidade das leis brasileiras. Entre uma e outro residem nossas possibilidades de defesa contra os criminosos.

Por que é assim?

Estes benefícios são responsáveis por diariamente atirar nas ruas centenas de criminosos perigosos, prontos a cometer mais crimes. A justificativa para conceder a diminuição da pena em troca de horas de estudo baseia-se em uma premissa simplória: de que o bandido comete crimes porque não teve estudo. Supostamente ele não teve oportunidade de cursar uma escola, então não tem emprego, portanto não consegue sustentar-se por meio de um trabalho honesto, e comete crimes para poder comer.

Até entendo que uma pessoa faminta roube para comer. Mas por mais força que eu faça, não consigo entender que uma pessoa faminta estupre e mate. A menos que esteja faminta por outra coisa que não comida.

É o vício do enfoque "social" em substituição ao enfoque moral à questão da criminalidade: o indivíduo só comete crimes porque não tem outro jeito, a sociedade obriga-o, é um problema social. Não sei quantos realmente acreditam nisso; na verdade não sei nem se o juiz João Marcos Buch realmente acredita nisso, ou se só concedeu os benefícios porque assim dá menos trabalho. Mas acredito que a finalidade mais pragmática desta política é aliviar a superlotação das cadeias. Construir cadeia custa dinheiro e não dá voto; abrir as portas das cadeias e jogar os presos na rua sai de graça. E tem os aplausos garantidos de uma claque de comentaristas com "consciência social".

 

Os pensamentos paralisantes

Defino os pensamentos paralisantes como um conjunto de aforismos, incorporados ao senso comum e assumidos como verdades evidentes, mas que no entanto, ao invés de conduzir a ações, produzem o efeito de barrar qualquer ação capaz de surtir algum efeito contra a criminalidade que assola o país. São em geral derivados de teorias pseudo-sociológicas ou duvidosos princípios religiosos. São bastante conhecidos da maioria das pessoas, que acreditam neles por ingenuidade, medo de enfrentar a realidade, desejo de ser aceito pela maioria ou por haverem sido essas ideias disseminadas maliciosamente por indivíduos interessados em fomentar a confusão. Vu aqui enumera-los e discuti-los um por um. Uma conclusão, porém, eu já tirei: a grande aceitação desses pensamentos por parte daqueles que detêm o poder público se deve ao desejo de evitar despesas com segurança, como a construção de cadeias ou o aparelhamento da polícia, pois são prioridades tidas como impopulares.

"A prisão não recupera"

Verdade. A prisão não recupera. Mas de onde surgiu a ideia de que a finalidade da prisão é recuperar?

Deriva da abordagem rousseaunica que afirma que todo indivíduo é naturalmente bom. assim, se ele se torna mau, alguma coisa aconteceu que desviou-o de sua natureza original, tal como uma doença desvia do estado natural que é ser saudável. A finalidade da prisão seria, portanto, análoga à de um sanatório, cabendo recuperar o interno.

Mas em um sanatório as pessoas se internam por vontade própria, e desejam ser curadas. O ser humano não nasce naturalmente bom. Alguém já viu algum bebê ceder voluntariamente sua mamadeira a outro?

O ser humano nasce naturalmente "mau", no sentido de estar provido unicamente dos instintos básicos de sobrevivência. São as mediações necessárias à vida em sociedade que o tornam bom. O detento em uma prisão é dono de sua consciência individual, e por conseguinte, só pode recuperar-se se desejar ser recuperado. Se não o deseja, o Estado não pode ser responsabilizado.

A prisão não é um serviço para o preso. A prisão é um serviço para a sociedade, cabendo-lhe isolar os indivíduos perigosos. A recuperação de tais indivíduos é incerta, mas é certo que, enquanto eles ali permanecerem, não estarão nas ruas cometendo crimes.

"Mais escolas, menos cadeias"

Pressupõe que o indivíduo se torna criminoso porque não teve escola. Podia fazer algum sentido 80 anos atrás, quando muitas crianças moravam na roça, longe de qualquer escola, cresciam analfabetos, depois não encontravam emprego e viravam ladrões de galinha. Hoje em dia a grande maioria dos criminosos teve escola, mas abandonou-a ao contatar que uma vida de crimes propiciava mais lucro e uma razoável certeza de impunidade. Ou pior ainda, nem abandonaram a escola, mas ali permanecem porque a têm como um espaço dominado, onde podem vender drohas, aliciar colegas e surrar os professores.

Mais escola não é igual a menos cadeia. A escola só é um espaço de educação enquanto os professores têm ali autridade. Se não têm, funciona ao contrário. Se no passado, a prevenção contra o crime supunha botar os delinquentes na escola, hoje o que urge fazer é tira-los da escola, para que cessem de ameaçar e corromper seus colegas.

"Bandido bom é bandido morto"

Muitos acreditam nisso. Mas é uma frase de efeito que vale apenas para descarregar a raiva, pois ninguém pensa ou tem condições de sair por aí matando bandidos, então não se faz nada. Preferível é ser mais pragmático.

Eu pessoalmente não acredito na eficácia da pena de morte, pois em geral os bandidos não têm muito medo da morte, já que a veem em seu quotidiano desde pequenos, e de qualquer modo sabem que não terão uma vida longa, daí o afã de aproveita-la ao máximo.

Mas se não têm medo da morte, têm, sim, medo de uma vida longa atrás das grades, sem grana, sem farra, sem bebida, sem droga, sem mulher, sem nada daquilo que os motivou a entrar para o crime. Medo da cana dura. A prova disso é a reação quase suicida que os criminosos manifestam quando ameaçados de um regime carcerário mais severo. Está bem vivo na memória maio de 2006 em São Paulo.

Bem, se é ali que lhes aperta o calo, então é ali que se deve apertar. Penso que a solução é o endurecimento da legislação penal, com penas mais longas e diminuição dos benefícios. É claro que a população carcerária vai aumentar, e será necessário construir mais cadeias. Se a polícia não está aparelhada para cumprir tantas ordens de prisão, podia começar por não soltar os que já estão presos.

"Acabar com a cultura de estupro"

Esta é muito repetida por intelectuais. Afirma-se que o povo brasileiro é violento, machista e misógino, e disto resulta o número elevado de estupros.

Mas se é assim, então devemos concluir que também existe uma cultura de assaltos, uma cultura de sequestros-relâmpagos, uma cultura de explosão de caixas automáticos, pois tudo isso acontece aos montes por aí. Se somos tão maus, então a solução para nós é o suicídio coletivo!

Antes de se usar certas palavras, deveria-se conhecer o seu significado. Uma cultura, no sentido antropológico, denota uma prática estabelecida, repetida por muitos e endossada pela mentalidade vigente. Existe o machismo sem dúvida, mas se aqui ocorrem 50 mil homicídios por anos, eles não se devem necessariamente a discussões no trânsito, brigas de botequim ou maridos violentos. A grande maioria deles não é da autoria de cidadãos comuns imbuídos de uma cultura de violência, mas de criminosos costumazes, quando não profissionais.

Na realidade, a menção a uma cultura de estupro é um subterfúgio para dissolver a culpa dos criminosos no corpo da sociedade. Quer-se que cada homem brasileiro se sinta um estuprador, e fique sem moral para condenar os verdadeiros estupradores. O crime, no país, não está espalhado igualmente por todo o corpo social, mas fortemente concentrado em alguns setores.

"A culpa é da sociedade"

Ou do capitalismo, ou do neoliberalismo, ou do consumismo, dá no mesmo. São todas abstrações, e como não se pode colocar uma abstração na cadeia, então não se faz nada.

"Deveria-se recorrer a penas alternativas"

Baseia-se na premissa - falsa - de que as cadeias do país estão atulhadas de ladrões de galinha, que poderiam estar fazendo serviços comunitários ou cumprindo penas alternativas. Na realidade, a grande maioria dos detentos no país é culpada de crimes graves. No fundo, mais uma desculpa para se resolver o problema da superlotação esvaziando as penitenciárias.

"Basta descriminalizar as drogas"

Parte da premissa de que os traficantes serão privados de seu negócio, então abandonarão o crime. Se fosse assim, o bando de Al Capone teria sido liquidado no dia seguinte à revogação da Lei Seca nos EUA, em 1933. Sabemos que não foi isso o que aconteceu.

E depois, a descriminalização das drogas esperimentada em outros lugares foi apenas a liberação da maconha em quantidades controladas. Ninguém nunca pensou em liberar drogas pesadas irrestritamente. Se um viciado comete crimes para comprar drogas ilegais, igualmente cometerá crimes para comprar drogas legais.

Os pensamentos acima (e há outros que não me lembro agora) são derivados de uma pretensa abordagem sociológica do fenômeno da criminalidade, na realidade viciada por um viés ideológico que procura sempre remover a culpa do criminoso, como se ele, isento de uma consciência individual, não fosse mais que uma massa mole a ser colocada em uma forma. Excesso de condescendência? No caso de alguns comentaristas ingênuos, sim, mas há também os que repetem esse discurso com segundas intenções. Militantes lisonjeiam os marginais com planos de fazer deles seu novo público, em substituição aos trabalhadores, que há tempos abandonaram a ideia de revolução para aderir à sociedade de consumo. Sim, esse pessoal acredita que os marginais, corretamente orientados por eles, irão fazer a revolução que vai alça-los ao poder, e por isso os defendem, não só a bandidos mas a todo e qualquer grupo de inconformistas e desajustados. Quem quiser (e tiver estômago) para ter uma amostra do humanismo desta gente, pode ler estas palavras aqui escritas pela jornalista Marilene Felinto a respeito de Champinha, o assassino de Liana Friedenbach, que tinha a idade de Vitoria Schier.

Mas há outra família de pensamentos paralisantes, esta de viés religioso. Tal como aqueles pretensamente sociológicos, estes também torcem as palavras bíblicas, e por vezes igualmente revelam uma segunda intenção, da parte de pregadores, de fazer de bandidos e marginais um rebanho de sua propriedade.

"Deus quis assim"

Ensina a religião que os designos de Deus escapam à compreensão humana, e portanto, o fiel deve acreditar que tudo aquilo de ruim que aconteceu deve-se a um propósito elevado. Ótima desculpa para não fazer nada. Mas pessoas que não criticam os outros, desacostuma-se também a criticar a si próprias. Não demoram a jogar em Deus a culpa de seus próprios malfeitos.

"Deus chamou-a para sua glória"

Este pensamento sugere que não devemos lamentar a morte, pois o falecido foi para junto de Deus. Como ninguém nunca retornou da morte para contar como é lá do outro lado, é uma questão de fé. Os cristãos dizem que há uma recompensa, ou um castigo após a morte, a alma vai para o céu ou para o inferno, e ali permanece para sempre. Os espíritas afirmam que a alma retorna à terra para pagar seus erros e depurar-se mediante sucessivas encarnações. Alguns acreditam que os mortos ressuscitarão no final dos tempos. De minha parte, não há lógica que uma existência finita redunde em uma recompensa ou um castigo infinitos no tempo. E aos que acreditam na reencarnação, falta explicar quem cria as almas, e para onde vão depois que atingem a redenção.

"Jesus mandou perdoar"

Então, você também deve perdoar, e desistir de qualquer cobrança de reparação. Sabe-se que Jesus perdoou o ladrão que foi crucificado a seu lado. Mas pelo que sei dos evangelhos, Jesus perdoou porque esse ladrão, dito o Bom Ladrão, arrependeu-se de seus pecados. O outro foi direto para o inferno.

"Ele/ela já cumpriu a sua missão na terra"

Em alguns casos até concordo. Diz o ditado, as pessoas têm medo de morrer porque não fizeram nada a vida toda. Os grandes homens não dizem suas últimas palavras para a posteridade porque já disseram todas as palavras que tinham para dizer. Mas não consigo acreditar que pessoas jovens já teriam cumprido a sua missão, seja qual for.

E Vitoria Schier, cumpriu sua missão na terra?

Isso só quem pode dizer é ela. Mas se a lembrança de seu martírio servir para cutucar corações de pedra e convencê-los a fazer alguma coisa contra bandidos e estupradores, posso dizer que ela não passou pela terra em vão. Não sei se, em vida, essa questão ocupava seus pensamentos. Mas ela mantinha um twiter, onde escrevia reflexões e poesias curtas, e citou:

"Será que existe alguém, ou algum motivo importante que justifique a vida ou pelo menos esse instante?! (Kid Abelha)"

Vitoria Schier vai um dia ressuscitar dos mortos, como creem os religiosos? Não posso discutir aqui questões de fé. Mas se Vitoria vai voltar, que alguém tome cuidado! No mesmo twiter, certa vez ela escreveu:

"Pode me matar, mas vou te avisar, quando eu voltar vou estar puto! (Sobrenatural)"


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