Casa-Grande e Senzala  
 

"Este país ainda continua no tempo da Casa-Grande e Senzala"

Já ouvi esta afirmação inúmeras vezes. E tenho que admitir que, na nossa sociologia, poucas sentenças foram tão sintéticas quanto o título da obra memorável de Gilberto Freyre: Casa-Grande e Senzala, riqueza extrema, pobreza abjeta. E nada de classe média.

Mas o que ontem foi uma definição em sentido literal, hoje é repetido em tom de mofa. É certo que a distância entre ricos e pobres continua abissal, e empregados domésticos continuam acessíveis até aos membros da baixa classe média. Mas até que ponto, nos dias de hoje, nosso quadro social ainda se enquadra no modelo arcaico definido por Freyre? Difícil responder com exatidão. Olhando ao redor, exemplos de modernidade esparsa são abundantes, assim como exemplos de arcaísmo renitente. Nossa sociedade é extraordinariamente complexa e diversificada em todos os sentidos, o que torna o chavão "Brasil, terra de contrastes" tão repetitivo quanto o velho Casa-Grande e Senzala. Podemos mandar vir os economistas e os sociólogos com seus números e gráficos, e tediosamente ouvi-los discutir em que grau, numa escala de 1 a 10, nossa sociedade se encontraria em seu trânsito do arcaísmo rumo à modernidade. Mas como talvez nem eles consigam chegar a uma conclusão, penso ser oportuno alterar a abordagem desta questão.

E sem querer discutir se ainda somos um imenso engenho de cana-de-açúcar pernambucano, chamo a atenção para um fato que, este sim, é cristalino e não admite discussão: a imagem da Casa-Grande de um lado e da Senzala do outro foi introjetada em nosso imaginário e permeia todas as construções que erigimos para modelar nosso quadro social. Não importa se somos ou não uma gigantesca Casa Grande e Senzala; é somente assim que conseguimos nos conceituar. Isto fica patente na debate político e nas discussões do dia-a-dia. É impressionante como ainda está presente, entre nós, a idéia da Luta de Classes, originalmente um conceito marxista do século XIX. Um bom exemplo dessa deformação é o debate em torno da reforma agrária. Demoniza-se ad nauseaum o tal do latifúndio, como se nas grandes propriedades rurais dos dias de hoje ainda existissem as relações sociais descritas por Gilberto Freyre. A rigor, nem se deveria dar tanta ênfase à questão agrária em um país que já é predominante urbano como o Brasil, mas a freqüência com que o termo "latifúndio" aparece nos discursos é a prova de que nossa visão política continua congelada em uma imagem do passado - a Casa Grande e a Senzala, sempre. O latifúndio, como célula social, simplesmente não existe mais. As grandes fazendas da época atual empregam mão-de-obra temporária, não têm mais colonos vivendo sob regime patriarcal, nem tampouco dono das terras vive lá em um casarão: o "patriarca" agora é um empresário que vive na cidade. E estas fazendas são grandes, não por terem sido parte de uma sesmaria concedida por el-rei ao donatário tataravô do fazendeiro, mas por prosaicas razões de mercado: o produto que cultivam (soja, por exemplo) tem baixo valor por hectare e só dá lucro se produzido em larga escala. Mas não adianta dizer nada disso: o tal do "latifúndio" continua sendo a nossa maldição; afinal, não se concebe uma Casa Grande sem o respectivo latifúndio. Mesmo se ele não existe mais.

Outro cacoete atroz criado por nossa imaginação é a mania de interpretar o fenômeno da criminalidade como sendo uma expressão da Luta de Classes. Note-se que a mídia já procurou tanto apresentar os chefes de quadrilha como heróis populares, que eles resolveram vestir a carapuça. A tipificação do bandido como "vítima da sociedade injusta" é recorrente em dezenas de livros, ensaios, teses e produções cinematográficas que volta e meia concorrem ao Oscar. A este cenário urbano não se aplica a metáfora da Casa Grande & Senzala, mas se encaixa com perfeição em outro título de Gilberto Freyre: Sobrados & Mocambos. As patroas seriam, então, as ditosas moradoras dos sobrados - mesmo se o "sobrado" é um apartamentinho de sala/quarto/dep emp - e as domésticas seriam as infelizes habitantes dos mocambos - mesmo se não moram na favela. O sentimento de culpa da classe média face à violência urbana é visível no ar compungido que se segue a qualquer crime mais espalhafatoso. Lembro-me que o movimento Viva Rio organizou uma marcha de moradores da Zona Sul rumo à Favela da Rocinha, cada um levando uma rosa na mão (ou era uma vela?). O cronista Diogo Mainardi objetou: "Não seria melhor a polícia subir com algemas?" Bem, no dia que a polícia fizer isso, os moradores dos morros agradecerão, pois ninguém gosta de ter bandidos como vizinhos. Mas até o momento só ganharam uma flor, simbolizando um humilde pedido de armistício da parte dos moradores do asfalto, contra quem eles supostamente estão em guerra... Os traficantes devem ter dado boas risadas neste dia.

Mas nada disso supera o maior de todos os malefícios: a crença, fortíssima entre nós, quanto à necessidade de um Estado-pai. Este Estado tantas vezes encarnado na figura do estadista, como foi o caso de Vargas. É compreensível: tendo sido oriundo de um universo patriarcal tipo Casa Grande & Senzala, nossa população continua ansiando por um Estado paternal, que supostamente irá confiscar o dinheiro dos ricos malvados e distribui-lo entre os pobres bonzinhos na forma de "obras sociais". É esta a verdadeira origem de nossa arraigada cultura anticapitalista: para o brasileiro médio, a idéia de prosperidade não é abrir um negócio, é tirar mais dinheiro do governo. Acredita-se piamente que cabe ao governo a tarefa de fazer crescer a economia e gerar empregos, e quando isso não acontece, clama-se por um Estado ainda mais intervencionista, na suposição de que assim ele agirá com mais energia na condução deste objetivo. Isto dá origem a uma espiral perversa: quanto mais se deprime a economia, mais se clama pelo crescimento do Estado, que por sua vez cria mais impostos e se endivida ainda mais, sugando a riqueza do país e tirando os meios de ação dos empresários, os únicos que podem efetivamente fazer crescer a economia e gerar empregos. Nota-se que a degradação dos serviços oferecidos pelo estado têm ocorrido concomitantemente a seu agigantamento, processo que se iniciou nos anos 30 e teve sua fase de maior sucesso nos anos JK e na época do "milagre". Os mais velhos devem se lembrar que, no passado, o ensino das escolas públicas tinha qualidade perfeitamente aceitável, e os hospitais públicos eram os melhores - e naquela época os impostos eram bem menores do que hoje em dia. O sintoma é claro: quanto mais o Estado se agiganta, mais perdulário ele se torna, e sobretudo, quanto mais ele se imiscui no que não é de sua alçada, menos ele cuida do que efetivamente é de sua alçada - saúde, educação, segurança.

Mas convém lembrar que este Estado, embora paquidérmico, perdulário e corrupto, nada tem de usurpador ou ilegítimo: ele representa a encarnação dos desejos das massas, por quem foi eleito. No Brasil, a Casa Grande e a Senzala nunca entraram em rota de colisão, ao contrário, sempre viveram em simbiose. O povo continua clamando por um Grande Pai? Ele o terá. O povo continua achando que cabe aos políticos a titânica tarefa de resolver os graves problemas do país e conduzi-lo à prosperidade? Os políticos agradecem, comovidos, e envidarão todos os esforços para cumprir esta nobre missão. E envidarão todos os esforços, também, para resolver seus problemas particulares e conduzir a si próprios à prosperidade. Depois o cidadão comum se enfurece com a corrupção. A única maneira de reduzir a roubalheira dos políticos consiste de reduzir a quantidade de dinheiro que passa por suas mãos, mas é difícil explicar isso para aquele cidadão comum, que vê no governo a encarnação do Grande Pai, e no patrão explorador, a encarnação do mal. Talvez o patrão até seja explorador. Mas é ele quem puxa o trem da economia, principalmente o pequeno empresário, que, sem poder arcar com os pesados impostos e com os pesados trâmites burocráticos que o Estado lhe impõe, vê-se constrangido a passar à informalidade.

Mas na informalidade ele fica à margem da fiscalização (que pode ser pouco racional, mas também é saneadora) e privado de acesso ao crédito bancário. Mesmo se ele o conseguisse, os juros são proibitivos; só um negócio que permitisse alto retorno e a curto prazo seria compatível com a atual taxa de juros. Na informalidade ele pode até ganhar algum dinheiro "explorando" seus empregados, se os tiver, mas sem crédito ele nunca poderá ir longe, e sua gestão será sempre amadorística, nunca profissional. O resultado é: só podem prosperar os grandes empresários, que já dispõem de capital e dependem menos do governo; os pequenos empresários, carentes de capital e sem ter como obtê-lo, ficam esmagados ante os enormes entraves que o governo coloca para o livre exercício da atividade econômica. Acrescente-se que são os pequenos empresários que, proporcionalmente, contratam mais trabalhadores (pois eles não tem como investir em alta tecnologia), isso quando não são eles próprios os trabalhadores (caso de um camelô ou pequeno produtor rural). Dificultar a vida do pequeno empresário é, pura e simplesmente, impedir a ascensão social da maior parte da população. O quadro social fica congelado: quem já é rico permanece rico, quem é pobre continua pobre. Tal como em Casa Grande & Senzala.

Descansando à sombra da Casa Grande de nossa imaginação, distraídos por esta metáfora simplista, não vemos que nossa pirâmide social aos poucos vai adquirindo a forma de um sanduíche. Em breve só restarão duas classes sociais no Brasil: os pagadores de impostos e os consumidores de impostos. Classes absolutamente distintas: quem paga impostos não se beneficia deles, e quem se beneficia deles não os paga. Parece estranho? Pois o típico assalariado de classe média há muito vive assim. É mordido em mais de 1/3 de seu ganho bruto, carga tributária só inferior à de certas social-democracias do norte da Europa. Mas nestes lugares o contribuinte tem retorno de qualidade, na forma de bons serviços públicos; aqui o cidadão classe média, já descontado em folha, ainda tem que arcar com a escola particular dos filhos, o plano de saúde privado, o fundo de pensão privado, até mesmo os seguranças particulares que patrulham a rua onde mora. Ué, mas a finalidade dos impostos não é dar escola, pensão, hospital, polícia? Sim, é. Mas não para quem os paga. Vai para o bolso do governo, que cobra os impostos, e para o amparo ao pobre, que está isento de paga-los. Nada estranho. Afinal, no Brasil, a Casa Grande e a Senzala nunca entraram em rota de colisão, mas sempre viveram em uma espécie de simbiose.

 

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