O Carnaval e a Camisinha  
 

Passou o carnaval. Fico satisfeito, pois não gosto nem um pouco desse clima de balbúrdia, calor e batucada que se inicia todo ano a partir da festa de revéillon, e só se dissipa na quarta-feira de cinzas. Na verdade, chego a considerar que, para mim, o ano só começa de fato após o carnaval.

Pois bem, se é assim, posso dizer que o ano enfim começou, e que agora posso me ocupar de coisas sérias. Mas os ecos do recém-terminado carnaval deixaram em mim um pouco mais que a lembrança de batucadas. Refiro-me a uma irritante campanha incentivando o uso de camisinhas durante o carnaval, que foi martelada em rádios, TV's e outdoors o tempo inteiro. Camisinha no carnaval? Para encher como um balão, pendurar no pescoço e sair por aí? Presumo que não. Ao que parece, alguém decidiu que o carnaval é uma época em que os brasileiros se dedicam a intermináveis orgias de sexo promíscuo, que rendem muita gravidez indesejada e AIDS, de modo que o Ministério da Saúde houve por bem educar a população.

Parece lógico? Parece. Mas continuo achando que tem uma coisa esquisita nessa história. Então o carnaval é uma época em que todos saem a fornicar doidamente? Aonde? Nos bailes? Nas ruas? Atrás do trio elétrico? Nas arquibancadas do sambódromo? Que no carnaval rola muita sacanagem, é óbvio. Basta ver o que acontece nos clubes. Já vi peito de fora, felação, masturbação. Mas coisa que ainda não vi foi uma relação sexual completa - refiro-me ao ato que faz nenê e transmite AIDS, pois não fosse por isso o Ministério da Saúde não teria nenhum motivo para interferir na vida privada de cidadãos maiores de idade. Apesar do clima de sacanagem reinante, tenho dificuldade em imaginar um casal de foliões, no fim da noite, exaustos, suados e bêbados, a andar por ruas lotadas à cata de um motel para transar, tendo todo o resto do ano para fazer isso com muito mais calma. É verdade que ninguém precisa de um motel para transar - um cantinho qualquer serve - mas também ninguém precisa que seja carnaval para transar. Particularmente, tenho dúvidas de que o carnaval seja mesmo uma época em que os brasileiros façam mais sexo do que o comum - na verdade, penso até que o carnaval seja a época do ano em que o brasileiro menos faça sexo.

Mas alguém definiu que o carnaval é uma época em que os brasileiros saem a fornicar feito coelhos, então tem que ser. Muitos outros também já quiseram convencer a si próprios e aos outros de que o carnaval teria um significado antropológico todo especial, e seria, na verdade, a própria essência do país. Um resultado da união caótica de índios e negros com suas crenças pagãs, uma celebração genuinamente popular que emergiu como resistência às imposições culturais do colonizador (como se o carnaval existisse entre índios e africanos, e não houvesse sido parte da herança do colonizador). O carnaval seria, mesmo, a própria fórmula de preservação do país face a suas contradições sócio-econômicas, e a sua supressão, dizem, causaria a dissolução do país...

Houvesse isso tudo ficado no terreno da galhofa, que é o seu lugar, não teria a menor importância. Mas essa tese foi encampada por antropólogos, historiadores, sociólogos e produtores culturais, e ganhou foros de verdade histórica e científica. Uma boa piada é engraçada, mas não há nada menos engraçado que uma boa piada que é levada a sério. Essa "carnavalização" do Brasil tem sido bastante nefasta. Ela induz uma percepção equivocada de toda a história e cultura brasileiras, ridicularizando-nos perante o mundo. Mas o mundo está pronto a aceitar esta impostura, e inclusive aceitá-la com gosto, posto que corresponde estritamente à maneira como os trópicos têm sido percebidos desde a época das grandes navegações: uma terra onde "não existiria pecado", habitada por nativos rousseaunianos, livres do peso da civilização, que podiam dedicar todo o seu tempo aos prazeres carnais. Basicamente é este o papel que o mundo em geral e o europeu em particular gosta que desempenhemos - o nativo dos trópicos tem que ser obrigatoriamente uma criatura vazia de qualquer conteúdo cognitivo ou emocional, que responde apenas aos instintos básicos - comer, beber, fazer amor; enfim, não deve ter espírito, mas ser apenas um corpo animado pela ginga. O carnaval realiza esta fantasia.

Chega a ser irônico e contraditório que a carnavalização do Brasil tenha sido proclamada sobretudo por intelectuais nacionalistas e militantes afro, como se ela fosse um resgate de nossas verdadeiras raízes, e não um atendimento às fantasias alheias. Historicamente, essa mania é relativamente recente - começou na era Vargas, em meio àquele clima nacionalista e meio fascista de "busca por raízes". Eu me lembro de haver folheado uma vez um prospecto turístico publicado em 1936. Em suas 37 páginas, não havia uma única referência ao carnaval! Mas como nossa memória é curta, a impressão que fica é que o carnaval sempre teve a importância que tem na atualidade. Daí para que o povo se convença de que o carnaval sempre foi uma orgia de sexo promíscuo, não é necessário muito esforço. Um ponto que já é considerado verdade absoluta é que o carnaval é uma festa "negra", ou africana. Ora, africano é o samba, não o carnaval. A correlação entre samba e carnaval foi mera casualidade. O carnaval é uma festa que tem suas origens na Roma Antiga; trata-se, portanto um costume "branco", trazido pelo colonizador. A insistência em vinculá-lo à nossas raízes negra e índia não revela, a rigor, nenhum sentimento lisonjeiro para com essas raças, mas sim um renitente preconceito: índios e negros seriam povos que vivem no Estado da Natureza, ao invés do Estado da Civilização, e por conseguinte, não seriam governados pelo costume, mas pelo instinto, tal como os homens primitivos, e não teriam outra ocupação a não se comer, beber, dançar e fazer amor, em um eterno carnaval. Em outras palavras, eles encaixam-se nas antigas concepções dos europeus acerca dos habitantes dos trópicos, lá onde "não existe pecado". Injusto, isso? Sim. Mas também revelador. Refiro-me a uma sensação de vazio com que o brasileiro culto até hoje se defronta ao buscar traços "genuínos" de nossa alma, repelindo a herança do colonizador como estrangeira.

Vazio é o termo certo. Se não encontramos este traço genuinamente nosso, o motivo é simples: não possuímos cultura autóctone. Temos, é certo, influências indígenas e africanas, mas estas se reduzem a vestígios aqui e ali, no vocabulário, na culinária, no folclore, nas crenças religiosas. Estritamente falando, a única cultura que efetivamente dispomos é aquela que nos foi legada pelo colonizador. A partir de um determinado momento no passado, entretanto, tornou-se moda entre nossos intelectuais a rejeição a este colonizador e a busca obstinada por peculiaridades brasileiras que supostamente seriam nossas verdadeiras raízes. O desesperado esforço que fizeram para materializar, na forma de modelos teóricos, uma criatura brasileira arquetípica que simplesmente não existe, teve como conseqüência a criação de estereótipos caricaturais, nos quais até hoje procuram enquadrar o brasileiro. Ironicamente, este brasileiro macunaímico e carnavalesco, apresentado como o genuíno brasileiro, nada mais é que a materialização daquela visão européia sobre os trópicos a que me referi anteriormente. O mesmíssimo preconceito estava presente no universo mental dos intelectuais sequiosos pelo resgate de nossas origens, o que só vem a confirmar que nossas origens estão mesmo na Europa que nos colonizou.

Passadas algumas décadas desde as manias nacionalistas do Estado Novo, o carnaval, enquanto festa popular, degenerou-se enormemente, e até o governo parece ter percebido isso, tanto que procura consertar com... camisinhas! Quanto a mim, continuo a questionar a importância do carnaval, seja em que sentido for. Afinal, para o brasileiro do século XXI, o que representa o carnaval? Um pequeno grupo adora-o, outro pequeno grupo odeia-o, e para a grande maioria, não passa de um feriado que aproveitam para viajar e ver o desfile pela televisão. Eu prefiro ficar em casa mesmo, descansando. E sem pensar em camisinhas.

 

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