Scrooges e Micawberes  
  Quem já leu Charles Dickens deve lembrar de seus personagens marcantes e caricaturais, de sua fina sátira aos costumes vitorianos e sua contundente crítica à situação de miséria e exploração reinantes. Quem não se lembra de Oliver Twist? De David Copperfield? Do avarento Scrooge? Não devia ser mesmo agradável a vida neste mundo sombrio, onde órfãos vagavam pelas ruas e agiotas prosperavam. Tipo emblemático deste meio era o tal de Wilkins Micawber, o pobretão que sonhava enriquecer, contraía dívidas que não podia pagar, ia parar na cadeia (havia prisão por dívidas naquele tempo), saía da prisão e... começava tudo de novo, sem perder a pose.

Hoje em dia, a Londres de Dickens parece um mundo de pesadelo, mesmo para os habitantes destas plagas terceiro-mundistas. De fato, parece-nos um total absurdo meter um cidadão honesto em uma prisão imunda só porque ele não conseguiu saldar uma duplicata - se livre já lhe é difícil pagar suas dívidas, muito mais o será estando ele preso (mas em geral os parentes se compadeciam e iam quebrar o galho para o sujeito, era assim que as coisas funcionavam na época). Mas, no entanto, isso era o capitalismo na genuína acepção do termo. Um capitalismo bárbaro e primitivo, mas capitalismo no sentido de que a riqueza é expressa e medida pelo conceito abstrato de capital, e não como um bem concreto e tangível. O que possuíam os Scrooges agiotas de cada esquina que exploravam os incautos Micawberes não era ouro, terra, diamantes. Era esta coisa incorpórea chamada capital, que está relacionada, não a um bem ou a um empreendimento específico, mas à capacidade de adquiri-lo, ou de realiza-lo. O capital, por si, não é nada, mas pode se transformar em qualquer coisa. Bem como pode desmaterializar-se e tornar-se novamente capital. Pode dormir na forma de ativos de longo prazo, em tempos desfavoráveis; cochilar na forma de ativos de curto prazo, esperando a oportunidade; empregar-se em empreendimentos lucrativos, bem como refluir de empreendimentos fracassados. Pode aumentar ou diminuir, mudar de mãos, ser produzido ou destruído. Simplificando, pode-se afirmar que uma economia atingiu o estágio do capitalismo quando a atividade econômica não mais gira em torno de formas rígidas, negócios imutáveis e passados de uma geração para outra, mas ao invés disto torna-se um terreno de múltiplas possibilidades, cabendo àqueles que possuem o capital decidir o que deve ser feito. Não é difícil compreender como este dinamismo, esta fluidez, esta facilidade com que o capital sai dos negócios não-lucrativos e ruma em direção aos negócios lucrativos foi o agente causal de um considerável ganho em eficiência das primeiras economias capitalistas (Países Baixos, Inglaterra) em relação aos modelos mercantilistas então reinantes (Portugal, Espanha). O capitalismo é o sistema econômico de um mundo em constante mutação, ao passo que o mercantilismo sobrevivia em um mundo estático.

Mas se o capitalismo é tão funcional, por que a Londres de Dickens era tão miserável?

Primeiro de tudo, eu me pergunto se devemos atribuir ao capitalismo a pobreza vitoriana retratada por Dickens. Não estou de acordo. A miséria não era novidade, o que era novidade era aquela miséria urbana criada pela Revolução Industrial que veio no rastro do capitalismo (é inconcebível o surgimento de uma Revolução Industrial sem o capitalismo, pois pelos sistemas anteriores, a massa não era livre para vender sua força de trabalho a quem quisesse. Um industrial não poderia arcar com o duplo encargo de montar a fábrica a adquirir de uma só vez todo um lote de escravos para trabalhar como operários). A miséria antiga era um fenômeno essencialmente rural, e desde muitos séculos atrás as crônicas referiam-se a multidões de camponeses caindo mortos de fome pelas estradas em períodos de más colheitas. Isto acontecia tanto na Irlanda e na Inglaterra quanto na China e na Índia. No entanto, se nos antigos bairros operários havia horrenda promiscuidade e jornadas de trabalho exaustivas, não há relatos de gente morrendo de fome em massa pelos becos. A miséria urbana era menos aguda que a rural. A Revolução Industrial não ampliou a miséria; urbanizou-a, tornou-a visível a pessoas educadas e sensíveis como Charles Dickens, capazes de se comover e escrever libelos contra ela, ao contrário do que sucedia nos campos, onde por séculos a miséria era vista como um fato natural da vida. É por certo chocante que houvesse um Ebenezer Scrooge em cada esquina, pronto a arrancar até o último tostão de um infeliz Wilkins Micawber. Mas isto é o capitalismo: importa mais o capital que o bem de raiz, vale mais possuir crédito na praça do que ouro em um cofre. E o crédito farto é justamente o dispositivo que permite ao capital fluir rapidamente do mau investimento em direção ao bom investimento, preferir o que é eficiente e desistir do que é ineficaz, e com este movimento dinamizar toda a atividade econômica. O crédito faz a riqueza fluir daqueles que têm o capital, mas não têm idéias, em direção àqueles que têm idéias, mas não têm capital. Se muitos arruinaram-se, também muitos prosperaram.

Na época de Dickens, podíamos nos considerar afortunados: ora veja, aqui não havia um agiota em cada esquina! Quando Mauá fundou o primeiro Banco do Brasil, as casas bancárias desta terra contavam-se nos dedos, e serviam aos grandes fazendeiros e comerciantes, não ao zé-povinho. Muito justo! Assim o pobre povo não era explorado. Dívidas eram raras, e difíceis de se cobrar. Se o devedor era o governo, então, o credor podia esperar sentado. Mas sem o dispositivo distribuidor de riquezas inerente ao crédito, à que me referi anteriormente, a riqueza não fluía daqueles que tinham dinheiro mas não tinham idéias, em direção àqueles que tinham idéias mas não tinham dinheiro. A riqueza fluía do pai para o filho, daí para o neto, e as idéias morriam irrealizadas. Esta nossa cultura anticapitalista persiste até hoje, com os juros altos inviabilizando o crédito aos pequenos empresários e cidadãos comuns, a pesada burocracia e a dificuldade de se cobrar dívidas e fazer valer seus direitos, a falta de hábito de poupar, a tolerância ao calote, que leva muita gente até a acreditar que se deixássemos de pagar nossos credores externos estaríamos fazendo uma coisa muito natural e até meritória... O resultado é o que se vê. Paralisados pelo atraso, sonhamos com o socialismo sem haver sequer chegado ao capitalismo. Pois a impressão que tenho é que sequer à Londres de Dickens conseguimos chegar até agora. Que falta faz Tio Scrooge!

 

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