Nova Luz sobre o Brasil Pré-Cabralino  
 

Terminei de ler o livro 1499 O Brasil Antes de Cabral, de Reinaldo José Lopes. Em estilo jornalístico, leitura leve e até divertida, própria para o grande público, a obra dá conta de recentes descobertas que vem mostrar que os nativos brasileiros não eram tão primitivos nem tão parados no tempo quanto se estabeleceu no senso comum e foi endossado por professores nas escolas - ao contrário, nossos índios moravam em aldeias do tamanho de cidades, cercadas de muros e interligadas por estradas, praticavam uma agricultura evoluída e tinham redes de comércio. O livro deixa muitas revelações e algumas indagações.

A ideia de índios "diferentes", na verdade, não é tão estranha assim do público. Todos conhecem o nome do rio Amazonas, tirado da lendária tribo de mulheres guerreiras da antiguidade clássica, e segundo consta, chamado assim porque um explorador espanhol narrou haver sofrido ataque de mulheres guerreiras na região. O nome pegou, mas as tais mulheres nunca foram vistas novamente. Afirmou-se que o explorador teria tomado por mulheres homens com cabelos longos, comuns nas tribos da região. Mas outros exploradores menos imaginosos fizeram narrativas bem mais minuciosas, contudo igualmente inacreditáveis. Falaram de aldeias tão grandes que podiam ser avistadas por horas enquanto os barcos desciam o rio, ligadas por estradas largas e planas, paliçadas, roçados e muito mais.

Tal como as mulheres guerreiras, ninguém nunca mais viu tal coisa, e essas narrativas passaram ao terreno das lendas, até que recentes descobertas arqueológicas apontaram vestígios das tais aldeias gigantes e seus planos urbanísticos. Muito antes o povo da região já se referia à "terra preta dos índios", herança de antigos roçados sustentados por fertilizantes naturais. Também eram conhecidos certos "pomares naturais" na floresta, com grande concentração de uma única espécie de árvore, que dificilmente poderiam ter surgido por obra do acaso.

De fato, a pré-história brasileira é muito pouco conhecida e certos conceitos estabelecidos já sofreram reviravolta no passado, a começar pelo própria antiguidade do povoamento da América. O autor contou a história de Luzia, nome dado a um crânio feminino de características africanas e melanésias encontrado em Minas Gerais, e posteriormente datado de 15 mil anos. As características do crânio deram origem a especulações de que os primeiros habitantes dessas terras não teriam sido siberianos que atravessaram o estreito de Behring como sempre se supôs, mas habitantes do Pacífico sul que teriam de alguma forma cruzado os mares. A discussão continua aberta, mas a mim parece que a explicação é mais simples: todas as raças humanas se originaram da África, há cerca de cinquenta mil anos, e só lentamente adquiriram as características atuais à medida em que as populações migravam e se adaptavam ao clima das regiões onde se estabeleciam. Então, é possível que os siberianos de 15 mil anos atrás não fossem muito diferentes dos atuais africanos.

As revelações do autor tocam certos pontos sensíveis de nosso sentimento identitário. Ao longo de nossa história, a herança indígena tem sido alternadamente desprezada e exaltada. Há um sentimento de inferioridade em relação ao colono europeu, e mesmo às outras etnias nativas da América, bem mais evoluídas. Outros, porém, têm usado o índio brasileiro para moldar mitos fundadores que estabeleçam uma afinidade do brasileiro com sua terra ancestral, e nesse afã o índio é romantizado. Exemplos não faltam. Para uns, o índio é corajoso e varonil; para outros, é uma vítima patética, massacrado e exterminado pelo colonizador. Nesse ponto, e obra de Reinaldo Lopes é oportuna para mostrar que o índio verdadeiro não é uma coisa nem outra, mas assim como faz muitas revelações, também deixa algumas indagações.

A principal delas é: se os índios que habitavam o interior do país há apenas 500 anos atrás eram tão evoluídos, por que poucos séculos depois só restavam vestígios de suas enormes aldeias?

Sabe-se que muitas tribos do litoral foram dizimadas e expulsas pelo colonizador. Mas não há relatos de bandeirantes travando combates com exércitos de tribos populosas que habitavam verdadeiras cidades no interior de Goiás e Mato Grosso. Quando eles chegaram a essa região, os povos que encontraram habitavam pequenas aldeias e não eram mais evoluídos que os do litoral. Seja lá o que foi que aconteceu, foi antes deste momento. O autor não chega a dar uma explicação completa, e acaba levantando mais indagações. Começa por apontar uma dificuldade comum dos povos nativos da América: o conhecido Princípio de Ana Karênina, popularizado por Jared Diamond.

O princípio refere-se às dificuldades encontradas pelos domesticadores de animais e plantas, nos primórdios da Revolução Agrícola. Escreveu Tolstói em seu romance, todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz, é infeliz a seu modo. Fazendo uma analogia, Jared Diamond lembra que todas as espécies domesticáveis se parecem, posto que compartilham um conjunto mínimo de características em comum, mas cada espécie indomesticável apresenta uma não-conformidade distinta: o animal pode ter um temperamento indócil, não se reproduzir em cativeiro, ser difícil de alimentar, ser territorialista e não tolerar viver em confinamento. Nesse quesito, o desfavor do continente americano em comparação aos outros continentes é evidente. Aqui se domesticou a mandioca e o pato-bravo. A gravura de Debret que ilustra a capa do livro mostra o que parece ser um cachorro-vinagre, espécie da fauna brasileira, mas além disso muito pouco foi domesticado pelos nativos brasileiros. Mesmo na América andina, muito mais evoluída, poucas espécies foram domesticadas. Além do milho e da batata, de animais apenas a lhama, a alpaca e o porquinho-da-índia foram domesticados. Faltaram sobretudo grandes mamíferos, que além de fonte de alimento pudessem servir como animais de carga. Por aí não se admira que os maias, tão evoluídos, não conhecessem a roda (ou melhor, conheciam-na, mas só a utilizavam em brinquedos).

Por que tanto desfavor? O autor lembra que até Darwin, quando passou por aqui, espantou-se da pobreza do continente em termos de animais de grande porte, em comparação com a África equatorial, que tem um panorama físico semelhante. O naturalista, que na ocasião coletava fósseis, também admirou-se da variedade e do porte dos mamíferos que aqui viveram até o fim da última Era Glacial, com tatus do tamanho de um boi e preguiças do tamanho de um elefante.

Por que todos desapareceram? Houve extinção em massa também no norte, desapareceram mastodontes e rinocerontes da Europa, mas para a felicidade nossa sobraram os ancestrais dos atuais bois e cavalos. Aqui nem os cavalos sobraram, embora a espécie, ironicamente, tenha se originado da América. Não há ainda uma explicação, mas sabe-se que os primitivos habitantes do continente tiveram pouco papel nessa extinção, pois quando chegaram aqui há dez ou quinze mil anos atrás, a mega-fauna já estava quase toda extinta (diferente da Austrália, povoada desde 40 mil anos atrás, onde os nativos tiveram um papel importante ao exterminar a mega-fauna local).

O autor aventa outra hipótese para explicar a desaparição das grandes aldeias do Brasil central: o que chamou de um telefone-sem-fio das doenças transmissíveis. É bem conhecido o efeito das doenças trazidas pelo colonizador sobre os nativos que tiveram contato com eles, produzindo epidemias que dizimaram aldeias inteiras. Mas esse contágio pode ter acontecido também longe das vistas dos colonos, pois os índios possuíam estradas e rotas comerciais por onde circulavam os infectados. Então, quando os bandeirantes chegaram ao país central, já encontraram as grandes aldeias exterminadas. É uma hipótese, mas não se pode provar nem que sim nem que não. Mas o autor também citou evidências arqueológicas de que o povoamento da Ilha de Marajó (uma das áreas mais evoluídas da região amazônica, célebre por sua cerâmica) apresentou vários períodos de crescimento e declínio, e isso antes de 1500 e da chegada dos colonos e suas doenças infecciosas. Penso eu, é provável que as instabilidades e incertezas próprias do limiar da Revolução Agrícola tenham sido as responsáveis pelo declínio das aldeias que um dia foram cidades. Numerosos exemplos de cidades inteiras encontradas por arqueólogos engolidas pela selva são o testemunho de que povos que um dia foram evoluídos, regrediram a um estágio anterior quando alterações no ambiente inviabilizaram o sustento de tais civilizações urbanas.

O livro de Reinaldo Lopes é bem-vindo para substituir crenças equivocadas por evidência científica.

 

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