África e Africanismo | ||
Soube recentemente de um decreto que torna obrigatório o ensino da história africana nas escolas de ensino médio. O motivo? É inegável a herança cultural africana em nossa gente, e essa influência não pode ser entendida se não se reportar às origens, isto é, à história africana, desde seus primórdios. Ao menos é essa a explicação oficial. Mas é perceptível um ar de desforra, de reparação a uma injustiça: desta forma se estará "resgatando" nossa herança africana, tão longamente escamoteada por uma historiografia etnocêntrica, que reduzia a figura do africano a um escravo amarrado no tronco. Que a herança cultural africana existe entre nós, é um fato, assim como é um fato a ausência da história africana dos currículos escolares, ao mesmo tempo em que se prioriza a história de nossos ancestrais europeus. Mas a questão é: que história africana é essa que se propõe ensinar em nossas salas de aula? Como se sabe, a África é um imenso continente habitado por variadas etnias - povos que não falam as mesmas línguas, não tem os mesmos costumes, nem as mesmas religiões, e que não gostam necessariamente uns dos outros. Cada um destes povos tem a sua história específica, e essas histórias não se entrelaçam obrigatoriamente. A única coisa que todos os africanos tem em comum - se é que isso tem qualquer importância - é ter a pele mais ou menos preta. Mas sabe-se, também, que a África possui um poderoso significado simbólico para multidões de afro-descendentes e intelectuais de qualquer raça residentes nas antigas colônias americanas que receberam influxo de populações africanas no passado. Esses indivíduos, via de regra, nunca puseram os pés em solo africano, mas vêem este continente como a matriz de uma vasta herança cultural, que engloba desde a música e a culinária até a linguagem corporal e a maneira de viver. Chamam essa herança de "africanidade", ou então "negritude", definição com forte conotação racista. Esta síntese que se procura extrair de toda uma multidão de povos distintos é, forçosamente, uma fantasia. O mesmo se diz do ponto de vista racial: na África não há pretos, na África há africanos. "Pretos" existem no Brasil, nos EUA, na Jamaica, no Haiti. O que se convencionou chamar de africanidade, na verdade é um amálgama de aspectos periféricos e folclóricos, veiculados em larga escala pela cultura de massas. Mas não se pode negar que há uma propensão muito forte em proclamar a vitalidade de uma "africanidade" latente dentro de nós, mesmo se quem proclama isso é um branco: a África é alvo de intensa vitimização por parte de jornalistas, escritores e antropólogos. É o continente-mártir, espoliado e brutalizado, cuja população foi arrancada e escravizada em prol do progresso de outros continentes. Exaltar a negritude é, portanto, rebelar-se contra o "opressor" de nosso povo, ir de encontro às origens supostamente genuínas de nossa cultura. É precisamente com este espírito que se propõe adotar o ensino obrigatório da história africana em nossas escolas. Tendo sido a questão de nossa herança africana colocada de forma tão emocional, é difícil manter uma opinião isenta. Mas pode-se tentar. Qual é a real dimensão de nosso lado africano? Qual o real valor de nossa dívida com a África? Por que motivo o continente africano foi tão espoliado por europeus, e é tão pobre nos dias de hoje? A história africana que se pretende ensinar em nossas escolas irá responder a essas perguntas, ou só vai deprimir ainda mais a auto-estima dos afro-descendentes, contando a epopéia de um continente de passado triste e futuro incerto? Respondendo por partes, podemos afirmar que a contribuição africana mais visível por aqui é aquela que diz respeito à composição racial brasileira. Cerca de metade de nossa população é descrita como "parda", "morena", ficando subentendido que essa tez escura é devida a uma ancestralidade africana. De fato, incontáveis milhões de brasileiros tem algum parente ou ancestral negro. Mas eu já observei em meu ensaio Brasil, Paraíso do Sexo como tem havido de nossa parte um obstinado esforço no sentido de celebrar e proclamar para o mundo essa nossa propensão em misturar raças, como sendo uma grande virtude de nosso ethos. Quanto a mim, sem questionar se trata-se de virtude ou defeito, identifico nessa atitude causas psicológicas, um remorso pelo destino que foi reservado no passado aos povos de pele escura, índios e africanos. Tentamos absolver o pecado da escravidão substituindo-o pelo pecado da luxúria, este mais humano e aceitável - afinal, onde há sexo não há ódio - e endossamos nosso auto-conceito de "povo cordial", que prefere o amor à guerra, e elege a confraternização em lugar da discriminação e do racismo. Mas qualquer pessoa minimamente informada sobre nossa História percebe as falhas deste modelo. A miscigenação não reporta necessariamente à confraternização entre as raças. Ela pode ser um produto da dominação - afinal, as índias e as africanas eram escravas - ou de mera necessidade reprodutiva. É neste ponto que se encontra o verdadeiro diferencial entre o Brasil e os demais lugares onde houve escravidão. O abuso sexual de escravas não é de forma alguma exclusividade nossa - isso ocorreu em todos os locais e épocas onde existiram senhores e escravas - mas ao contrário do que sucedia em outras paragens, no Brasil inexistiam mulheres européias entre os colonos durante as primeiras décadas de nosso povoamento. Neste quadro, a par de numerosos e inevitáveis estupros, a constituição de famílias racialmente mistas impôs-se como necessidade cabal de sobrevivência em uma terra estranha, habitada por índios com os quais era imperioso estabelecer alianças. Foi por este prosaico motivo que nos tornarmos uma nação de mestiços, e não por uma suposta (e decantada) vocação tropicalista do colono português, que teria, segundo se afirma, uma atração atávica por mulheres de pele escura. Isso refuta, também, outro mito cuidadosamente acalentado entre nós: de que os mestiços brasileiros são afro-descendentes. Na realidade, a tez escura da maioria dos brasileiros é muito mais devida aos índios que aos africanos. Além de mulatos, temos caboclos, mamelucos, cafuzos - sem contar que muitos colonos ibéricos já tinham a pele escura por serem descendentes de mouros. Definições como "afro-descendente" ou "nativo-americano", tão cheias de sentido em lugares como os EUA, aqui carecem de qualquer significado. O mestiço nacional é uma mistura de tantas raças, que a única maneira honesta de classifica-lo é, simplesmente, como "brasileiro". Dar-lhe outra definição é desnacionaliza-lo, é forjar uma identidade inexistente. A proposta de se adotar aqui o critério norte-americano que não reconhece o mestiço, conhecido como "one-drop rule", revela-se, na realidade, uma tentativa de "provar" que o Brasil é um país de maioria negra - e aí já não estamos falando de africanismo, mas de negritude, definição que, conforme já me referi, carrega forte componente racista em sua arrogante suposição de que pessoas de pele negra devem necessariamente ser iguais e equivalentes onde quer que se encontrem. Esta fantasia é cultivada, sobretudo, por intelectuais universitários (freqüentemente brancos) e não pelo afro-descendente médio, que pouco se interessa pela história de seus antepassados e está mais preocupado com questões comezinhas de sobrevivência e ascensão social. Qualquer pessoa que ouse referir-se a uma "branquitude" seria imediatamente considerada racista, com razão. Mas o cultivo de uma "negritude" é visto com simpatia, pois trata-se de uma justa compensação para quem sofreu os horrores da escravidão. A contribuição africana a nossa composição racial é, portanto, tão ampla quanto difusa, e sobretudo, destituída de maior significado. No brasileiro, a tez escura é indiscernível, seja do africano, do índio ou do longínquo mouro. Segundo dados do último censo, apenas cerca de 6% de nossa população é definida como etnicamente africana, ao passo que entre 1/3 e metade dos brasileiros se definiam vagamente como "morenos". Quanto à contribuição cultural africana, os mesmos qualificativos podem ser aplicados: ela também é tão ampla quanto difusa. Nossos africanismos - palavras da língua, comidas, danças, ritmos, os cultos afro-brasileiros - são fragmentos, e não arcabouços. Não espanta que tenha sido assim, pois a cultura dominante foi aquela trazida pelo colonizador europeu, que via de regra reprimia as manifestações culturais e religiosas dos povos escravizados. Como se sabe, os africanos contornavam esta proibição cultuando suas divindades disfarçadas de santos cristãos, ou praticando a capoeira disfarçada como se fosse uma dança. Mas percebe-se a nítida diferença que existe entre a cultura dominante e a cultura marginal: no Brasil, o elemento cultural europeu, mesmo eventualmente descaracterizado, é arcabouço e não fragmento. Se um brasileiro, negro ou branco, é considerado culto, subentende-se que ele tem uma bagagem cultural de origem européia - não se deve confundir falta de cultura com cultura diferente. Um bom exemplo é a religião. Apesar de todas as concessões que os padres tiveram que fazer ao longo desses cinco séculos para agradar aos fiéis índios e africanos, o culto católico que se pratica no Brasil de hoje é igual ao que é praticado em qualquer outro país católico-romano. Já os cultos afro-brasileiros se parecem muito pouco com as religiões africanas que lhes deram origem tempos atrás, e quanto à capoeira, não há sequer um consenso a respeito de qual região da África ela teria se originado. Isso dito, fica patente que a inserção da História Africana no currículo obrigatório obedece muito mais a um sentimento de remorso e desejo de reparação, do que propriamente à crença de que o estudo da África do passado é essencial para se entender o Brasil do presente. É oportuno, aqui, analisarmos outra questão freqüentemente levantada: a verdadeira relação existente entre a colonização européia e o notório estado de pobreza e turbulência generalizados por todo o continente africano. O tema é polêmico, e a argumentação, quando ocorre, em geral reduz-se a uma troca de acusações. A espoliação sofrida pela África no passado colonial foi flagrante, como flagrante é o seu pauperismo no presente. Uns acusam os europeus de haverem despovoado regiões inteiras e abalado toda a infra-estrutura econômica e demográfica do continente com o tráfico de escravos; outros respondem-lhes que a escravidão era instituição antiga na África, já existia antes da penetração européia, e continuou a existir após a descolonização - em alguns países, até o século XX - ao que os africanos respondem que a escravidão tradicional da África nada tinha a ver com a escravidão massiva e selvagem dos europeus, que instigava conflitos e por vezes carreava povoações inteiras. Uns afirmam que a violência empregada por europeus contra africanos foi pequena se comparada à fúria inaudita dos conflitos étnicos que até hoje ensangüentam o solo africano; outros lembram que a colonização contribuiu largamente para acirrar estes conflitos, por traçar fronteiras artificiais que ignoravam as antigas fronteiras tribais. Uns lembram das riquezas minerais, ouro e diamantes, que forma levadas por europeus, e estes respondem que também fizeram benfeitorias, construíram portos, cidades e estradas de ferro. O regime de apartheid da África do Sul foi ignominioso e execrado pela comunidade internacional, mas outros lembram que, apesar de toda a dureza deste sistema, os negros sul-africanos tinham (tem) padrão de vida bem superior ao do resto do continente, a ponto de a África do Sul atrair mão-de-obra estrangeira. Como se vê, o debate está longe de se encerrar, e a única atitude honesta da parte dos debatedores é reconhecer que a questão é complexa e nenhum argumento é definitivo. Mas isto nos afasta da formulação original da questão, que é identificar as causas da miséria africana. Dilatando a perspectiva histórica para além do intervalo de domínio europeu, colocam-se estas perguntas: por que motivo foi a Europa que dominou a África, e não o contrário? Por que motivo o fim do colonialismo não causou o enriquecimento do continente, nem o empobrecimento das potências que perderam suas colônias? Claramente, outros fatores já vinham atuando bem antes da chegada dos invasores europeus, e continuaram a agir depois da partida destes. Não há resposta definitiva, mas há pistas. O melhor estudo de que tenho conhecimento aponta as causas remotas da debilidade africana à carência de espécies animais e vegetais domesticáveis, enquanto que os eurasianos, apesar de donos de uma fauna e uma flora menos exuberante, tiveram a sorte de contar com espécies como trigo, aveia, arroz, galinhas, bois e suínos. Isso atrasou a Revolução Agrícola na África, e quando estas criações por fim foram introduzidas no interior continente, estava já configurada uma situação de atraso em relação aos povos de pastores circundantes: a África estava sempre um passo atrás da Ásia Menor. Um bom exemplo foi a história do Egito. Por volta do segundo milênio a.C., os egípcios estavam no auge de sua civilização, quando de súbito o Vale do Nilo foi invadido por hordas de um povo semita de pastores oriundo da Ásia Menor - os hicsos. Estes invasores derrotaram os egípcios e dominaram toda a região. A causa de tão fácil vitória? Conheciam o cavalo, e também os carros de combate, que eram desconhecidos no civilizado Egito dos faraós. Esta história iria se repetir muitas vezes. Antes da Era Cristã, todo o litoral mediterrâneo da África já se encontrava dominado por povos semitas vindos do oriente, e o mesmo aconteceria nos séculos seguintes ao litoral leste - o "chifre da África". O domínio europeu, que iria se iniciar no século XV, foi um episódio relativamente breve na história africana. Na época atual, o atraso da África é conseqüência, sobretudo, das lutas internas e da inépcia dos dirigentes, no que concordam os habitantes do continente, que sempre que podem emigram para outras paragens. Mas entre nós, bem longe dessa história de intrincadas disputas entre etnias inimigas, persiste a miragem de uma África vitimizada, porém vigorosa e unificada por sua cultura - concepção originada da suposição arrogante de que todas as pessoas de pele escura devem necessariamente ser iguais. |
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